- Author, André Biernath
- Role, Da BBC News Brasil em Londres
- Twitter, @andre_biernath
Okinawa (Japão), Sardenha (Itália), Loma Linda (Estados Unidos), Icaria (Grécia) e Nicoya (Costa Rica). Nos últimos anos, essas cinco regiões ganharam fama internacional com o título de “zonas azuis“, ou locais que concentram uma alta taxa de pessoas com idade avançada.
Por trás dessa longevidade admirável, os criadores do conceito alegam que existe um estilo de vida pra lá de saudável, baseado numa dieta equilibrada, na prática de exercícios físicos e numa série de outros hábitos.
Mas será que essas observações correspondem mesmo à realidade? O demógrafo Saul Newman, do Centro de Pesquisa Longitudinal da Universidade College London, no Reino Unido, resolveu colocar a ideia à prova.
E ele encontrou uma série de erros e inconsistências nos registros de nascimento e de morte dos supostos “supercentenários” que vivem nas zonas azuis e também em outras partes do planeta.
Vamos pegar Okinawa, no Japão, como um exemplo inicial. Uma revisão feita pelo governo japonês em 2010 descobriu que 82% dos cidadãos que supostamente tinham passado dos 100 anos já estavam mortos há tempos — eles só não tiveram o óbito devidamente registrado.
Além disso, um acompanhamento nutricional feito no país asiático desde os anos 1970 indica que Okinawa apresenta alguns dos piores índices de saúde do Japão. Em comparação com toda a população, os habitantes dessa região são aqueles que ingerem menos vegetais.
Um padrão parecido foi observado nos outros bolsões de longevidade, como você pode conferir ao longo desta reportagem.
Newman, que também é pesquisador do Instituto de Envelhecimento Populacional da Universidade de Oxford, na Inglaterra, compilou todos os achados num artigo, disponível no site BioRxiv em formato preprint (o que significa que o texto ainda não foi revisado por especialistas independentes).
O trabalho garantiu a ele um Prêmio IgNobel em 2024. A homenagem, concedida pela revista de humor científico Annals of Improbable Research com direito a uma cerimônia na Universidade Harvard, nos EUA, tem como lema “fazer as pessoas rirem e depois pensarem” e pretende “celebrar o incomum, homenagear a imaginação e estimular o interesse das pessoas na ciência, na medicina e na tecnologia”.
Em entrevista à BBC News Brasil, o demógrafo admitiu estar satisfeito com a repercussão de sua pesquisa.
“É muito divertido derrubar ideias estabelecidas num campo científico e por uma empresa bilionária”, diz ele.
Com o slogan Live Better, Longer (“Viva melhor, por mais tempo”, em tradução livre), as zonas azuis — ou Blue Zones, no original — são hoje uma marca comercial registrada.
No site oficial, a empresa vende cursos, cremes, livros de culinária, moletons, sacolas reutilizáveis e alimentos — como um café Centenarios, cultivado na Costa Rica.
As zonas azuis também viraram tema de uma série da Netflix e aparecem frequentemente em reportagens, algumas delas publicadas na BBC.
A BBC News Brasil buscou a empresa por trás da marca Blue Zones por meio do endereço de e-mail de contato disponível no site, para que ela pudesse se posicionar sobre o assunto. Não foram enviadas respostas até a publicação desta reportagem.
Dados que não batem
Newman começou a investigar estudos que fazem alegações sobre supercentenários nos últimos anos — e revelou que artigos publicados em revistas prestigiadas, como Science e Nature, apresentavam uma série de problemas técnicos.
“A partir disso, desenvolvi um modelo matemático simples, que sugere que virtualmente todos os nossos dados sobre pessoas muito idosas são um lixo”, resume ele.
Segundo o pesquisador, as alegações sobre a longevidade extrema — algo que pode ser resumido como ultrapassar a marca dos 100 ou dos 110 anos de vida — não param em pé.
Ele analisou as informações disponíveis sobre 80% das pessoas que diziam ter comemorado mais de 110 aniversários. Desses, quase nenhum tinha uma certidão de nascimento.
Nos Estados Unidos, onde foram registrados 500 indivíduos com mais de 110 anos, apenas sete possuíam um documento desses — e cerca de 10% dos casos contavam com uma certidão de óbito.
No entanto, na avaliação de Newman, nem mesmo quando esses papeis existem é possível confiar cegamente naquela informação. “Esses documentos, como as certidões de nascimento ou morte, levam em conta algo dito por alguém. E isso é bastante problemático”, diz o demógrafo.
“Não podemos nos basear neles, porque muitos desses documentos podem ao mesmo tempo ser consistentes do ponto de vista legal e estarem completamente errados”, complementa ele.
Como exemplo desse paradoxo, Newman cita o que descobriu na Grécia, país que abriga uma das zonas azuis na ilha de Icaria.
“Segundo minhas estimativas, 72% dos centenários gregos já estão mortos, desaparecidos ou são essencialmente casos de fraudes da previdência”, calcula ele.
“O governo da Grécia calcula que mais de 9 mil pessoas que ultrapassaram os 100 anos estão mortas e ainda recolhem a aposentadoria.”
Ou seja: há uma parcela expressiva desses indivíduos que já morreu faz tempo. Mas, por uma razão ou outra, continuam a aparecer como vivos nos registros públicos, pois não houve a notificação do óbito deles.
Essas inconsistências se repetem em outras zonas azuis.
“De 128 regiões com análises sobre expectativa de vida, Icaria aparece na 109ª posição. Já a Sardenha está no 51º lugar.”
“Ou seja, essas alegações de que esses são os melhores lugares do mundo para envelhecer estão absolutamente erradas”, raciocina o especialista.
Já Loma Linda, uma pequena cidade californiana com 23 mil habitantes, aparece na 16.101ª posição entre as regiões americanas em termos de expectativa de vida, segundo uma avaliação independente do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA citada por Newman.
Algo similar acontece com os dados que vêm da Costa Rica.
“Em 2008, um estudo revelou que pelo menos 42% dos costarriquenhos com mais de 99 anos tinham mentido sobre a idade no censo realizado no país durante o ano 2000”, revela Newman.
“A partir dessa descoberta, a expectativa de vida na zona azul de Nicoya encolheu cerca de 90% e se tornou uma das piores do país.”
Para o pesquisador, as zonas azuis são “apenas um dos absurdos construídos a partir de dados que apresentam uma série de problemas”.
Erros ignorados
Mas por que ninguém havia questionado as informações sobre expectativa e longevidade até agora?
“Para mim, esses erros eram ignorados porque, em primeiro lugar, há algo muito lucrativo para ser vendido aqui”, opina Newman.
“Em segundo lugar, as pessoas querem soluções fáceis para problemas que exigem um trabalho árduo.”
“Todos adoraríamos se existisse um ‘leite com cúrcuma’, um ‘mirtilo mágico’, ou alguma outra coisa que fizesse a gente chegar aos 100 anos sem precisar ir à academia, parar de beber ou abandonar o fumo”, complementa o demógrafo.
O pesquisador também critica a falta de ceticismo e senso crítico da comunidade científica a respeito das conjecturas feitas a partir das zonas azuis.
“Um dos primeiros trabalhos a avaliar a Sardenha chegou à conclusão de que um dos fatores por trás da longevidade local eram os relacionamentos consanguíneos, como se múltiplas gerações de casamentos entre primos tivesse trazido algum benefício”, exemplifica ele.
“Essa é uma conclusão ridícula, que tiraria gargalhadas de qualquer geneticista.”
Newman lembra que os “segredos” da vida longa em Okinawa seriam supostamente uma alimentação vegetariana, baseada em vegetais (especialmente em batata doce), a prática de jardinagem e uma vida comunitária e religiosa.
Segundo ele, os dados oficiais mostram o cenário oposto.
“O governo japonês avalia constantemente a alimentação da população, e os moradores de Okinawa são os que menos consomem batata doce. Eles também apresentam um dos piores índices de ingestão de vegetais. Cada cidadão de lá come uma média de 40 quilos de carne por ano, e isso sem contar os frutos do mar.”
“Okinawa está apenas na terceira posição entre as regiões com mais adeptos de jardinagem, atrás de Tóquio e Osaka, apresenta a quarta maior taxa de suicídios entre idosos do país e 93,4% dos indivíduos de lá se declararam ateus, a maior porcentagem de todo o Japão”, complementa o cientista.
Para Newman, todas as alegações sobre os melhores lugares do mundo para envelhecer estão “evidentemente erradas”.
“Se você olhar as estatísticas das Nações Unidas sobre países com mais centenários, vai ver que Tailândia, Malawi e Porto Rico aparecem no top 10”, acrescenta ele.
Mais uma vez, o especialista duvida que esses dados representam a realidade. “Porto Rico, por exemplo, praticamente descartou as certidões de nascimento porque elas estavam gerando inúmeras fraudes de aposentadoria”, informa ele.
Newman chama a atenção para a necessidade de desenvolver outros métodos de avaliar a verdadeira idade de uma pessoa, que seja independente dos documentos — como, por exemplo, algum tipo de exame capaz de fazer essa medição no organismo.
O ‘mito’ mediterrâneo
O demógrafo lembra que, ainda nos anos 1970, surgiram as primeiras versões do que viria a ser conhecido futuramente como “zonas azuis”.
“As primeiras áreas de longevidade foram supostamente encontradas no Equador, no Paquistão e na Geórgia”, diz ele.
“Mas elas foram abandonadas porque, pouco depois, descobriu-se que muitas pessoas mentiam sobre a idade e não havia documentos suficientes.”
“Uma vez que os dados foram corrigidos, não sobrou nada. Tudo era uma fantasia”, complementa ele.
Mas será que aquelas recomendações gerais sobre alimentação equilibrada, prática de atividade física, vida em comunidade — alguns dos padrões observados nas “zonas azuis” — não se mostram benéficas em outras pesquisas?
“Quando Icaria foi incluída como uma zona azul, a Grécia tinha uma taxa de obesidade maior que a dos Estados Unidos”, compara Newman.
“Ou seja, existe uma desconexão entre o que se considera uma vida saudável e o que as pessoas desses lugares realmente fazem no dia a dia.”
Nesse contexto, o pesquisador destaca que a famosa dieta Mediterrânea seria um exemplo desse descompasso entre o que é dito e o que acontece na prática.
“A dieta Mediterrânea pode ou não ser saudável, não é isso que estou discutindo aqui. Mas essa não é a maneira que as pessoas comem de verdade no Mediterrâneo.”
Newman destaca que esse conceito surgiu a partir do trabalho do fisiologista americano Ancel Keys (1904-2004), que estudava a relação entre a alimentação e a longevidade.
Ele elaborou a hipótese de que substituir a gordura saturada (encontrada em manteiga, queijo, leite e carnes) pela insaturada (de óleos vegetais, abacate, oleaginosas…) seria benéfico para a saúde cardiovascular.
Ao observar alguns povoados italianos que supostamente tinham muitos centenários, Keys teria desenvolvido a ideia da dieta Mediterrânea, que é baseada no azeite de oliva, nos vegetais e nos pescados.
“Só que ele excluiu da análise a ilha de Córsega, que pertence à França e fica no Mediterrâneo, porque a população local tinha um alto consumo de gordura saturada e uma baixa frequência de doenças cardíacas”, continua Newman,
O demógrafo lembra que “o Mediterrâneo é composto por mais de duas dezenas de países, que são extraordinariamente distintos e não consomem apenas azeite de oliva”.
“Em partes do Egito e do norte da África, que fazem parte do Mediterrâneo, a população adora comer pombos. Por que será que os pombos não fazem parte da dieta Mediterrânea?”, questiona o demógrafo.
“É por que a ideia de comer pombos não vende tão bem”, responde ele.
“Assim como um dos pratos mais consumidos na Grécia é um delicioso queijo frito coberto de mel. É gostoso? Sim, é absolutamente fantástico. Mas faz bem para a saúde? De jeito algum.”
Newman defende que a dieta Mediterrânea “é essencialmente um mito ocidental”.
“Todos os elementos que integram essa dieta vendem bem nos países do Ocidente e formam essa ideia muito frágil, baseada em mitos, para pessoas ricas sobre o estilo de vida dos mais pobres”, conclui ele.
Fonte: BBC
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