- Leandro Prazeres
- Da BBC News Brasil em Brasília
O Supremo Tribunal Federal (STF) deve começar nesta quarta-feira (20/04) o julgamento do deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ). Ele é acusado de ameaçar autoridades e de tentar impedir o exercício do Poder Judiciário. Desde que foi eleito, Silveira se transformou num dos principais porta-vozes do bolsonarismo e seu julgamento começa permeado por uma série de símbolos.
Desde 2020, ele faz parte de um grupo de empresários, políticos e militantes bolsonaristas investigados por atos como pedir o fechamento do Supremo e defender uma intervenção militar. Em diversos vídeos e entrevistas, Daniel Silveira atacou ministros como Alexandre de Moraes, chamando-o de “medíocre” e defendeu que alguns membros da Corte fossem afastados.
A defesa de Silveira alega, contudo, que todas as suas declarações deveriam ser protegidas pela imunidade parlamentar garantida na Constituição Federal, que ele estaria sendo alvo de uma espécie de perseguição e que por isso não poderia ser alvo de nenhuma punição.
O caso é visto como um dos mais importantes do STF nos últimos meses e fez com que o tribunal montasse um esquema especial de segurança. Mas além de envolver um deputado federal, o que faz o julgamento de Daniel Silveira tão especial?
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que o caso do parlamentar poderá ter repercussões tanto no campo jurídico quanto no universo político.
Segundo eles, esse caso chama tanto atenção porque os ministros e ministras terão que enfrentar quatro pontos delicados no julgamento: limites da liberdade de expressão; até onde vai a imunidade parlamentar; como lidar com um caso em que o tribunal é vítima e julgador ao mesmo tempo; e quais os limites da tensão entre o STF e a militância bolsonarista.
Quem é Daniel Silveira?
Até 2018, Daniel Lúcio Silveira era apenas policial militar do Rio de Janeiro com um histórico de faltas disciplinares. A partir daquele ano, porém, ele passou a fazer parte do grupo de militantes adeptos do bolsonarismo que dominou o ambiente político naquelas eleições.
Silveira ganhou notoriedade no período eleitoral quando participou de uma manifestação no Rio e quebrou uma placa com o nome da vereadora Marielle Franco, assassinada em março daquele ano. Foi eleito com 31 mil votos como deputado federal pelo PSL, mesmo partido ao qual Bolsonaro estava filiado.
Depois de eleito, Silveira continuou sua vinculação com o grupo bolsonarista no Congresso Nacional, apoiando pautas caras ao movimento como a flexibilização do porte de armas.
Em 2020, em meio ao aumento das tensões entre o presidente Jair Bolsonaro e o Poder Judiciário, o deputado passou a ser investigado pelo STF e pela Procuradoria-Geral da República nos inquéritos que apuravam a realização de ataques ao tribunal e a disseminação de informações falsas.
Em fevereiro de 2021, já sob investigação, ele foi preso por ordem do relator do caso, o ministro Alexandre de Moraes.
A prisão aconteceu depois que Silveira divulgou vídeos defendendo o Ato Institucional Nº 5 (AI-5) e a destituição de ministros do Supremo. O AI-5 foi o ato mais severo da ditadura militar no Brasil (1964 a 1985), que suspendeu liberdades individuais e decretou o recesso do Congresso Nacional.
No vídeo, ele atacou cinco ministros do tribunal: Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, Dias Toffoli e Gilmar Mendes. Ele chamou Fachin de “moleque” e “menino mimado” e Alexandre de Moraes de “idiota”.
Em novembro de 2021, ele foi solto e passou a responder ao processo em liberdade. Ele foi denunciado pela PGR e é réu por coação no curso de processo, incitação à animosidade entre Forças Armadas e o Supremo e tentativa de impedir o exercício de Poderes da União. Coação é quando há o uso de ameaça ou violência contra alguma parte de um processo judicial.
Mesmo após a prisão, ele continuou a questionar decisões do STF e chegou a se recusar a cumprir uma ordem de Alexandre de Moraes para que usasse tornozeleira eletrônica.
Em meio ao impasse, ele chegou a se refugiar dentro do Plenário da Câmara dos Deputados para impedir que policiais federais pudessem cumprir a determinação do ministro. Isso aconteceu porque, por lei, a PF não pode entrar no Plenário sem autorização da própria Câmara.
O imbróglio foi resolvido no dia seguinte, quando Silveira recuou e aceitou usar o dispositivo.
Vítima e julgador ao mesmo tempo
Para o professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Gustavo Badaró, o caso de Daniel Silveira é “sui generis” e “paradigmático” porque vai colocar o STF na posição de vítima e julgador ao mesmo tempo.
Isso acontece porque a origem das investigações contra Silveira remonta o inquérito das Fake News, instaurado pelo ministro Dias Toffoli, em março de 2019, quando o tribunal começou a ser alvo de críticas da militância bolsonarista.
À época, Toffoli foi criticado porque a medida significava que o STF seria, ao mesmo tempo, vítima dos ataques, o responsável pela investigação e a instância julgadora.
O ministro justificou a decisão com base em um artigo do regimento interno do STF que diz que o tribunal poderia instaurar um inquérito nos casos em que ele for alvo de crimes. Badaró avalia que essa interpretação deu início ao imbróglio que resultou no caso de Daniel Silveira.
“Minha interpretação é de que o regimento autoriza o inquérito quando há crimes nas dependências do STF. Toffoli entendeu que a regra se aplica a qualquer crime supostamente praticado contra membro da Corte, independentemente do local físico onde isso teria ocorrido. Foi isso que gerou essa situação”, afirmou Badaró.
O também professor da USP e advogado criminalista Pierpaolo Bottini explica que como Silveira é parlamentar e os supostos crimes atribuídos a ele teriam sido praticados durante o seu mandato, a única instituição competente para julgá-lo era, de fato, o STF.
“Certamente, essa é uma questão peculiar. Mas não haveria outro jeito porque estamos diante de um caso em que os únicos com atribuição para julgar o deputado são os ministros do STF, justamente por ele ser parlamentar”, explica Bottini.
Limites à liberdade de expressão e imunidade parlamentar
Um dos pontos mais sensíveis do caso é o fato de que, em um ambiente político extremamente polarizado, o STF terá que discutir quais os limites da liberdade de expressão. Isso acontece em meio a uma série de críticas, lideradas principalmente pelo presidente Jair Bolsonaro, contra a atuação do ministro Alexandre de Moraes, relator da ação penal contra Daniel Silveira.
Em março, por exemplo, o ministro determinou a suspensão temporária do funcionamento do aplicativo Telegram por não atender aos contatos da Justiça. O Telegram é um dos aplicativos mais usados por apoiadores bolsonaristas. Entre eles, a medida foi vista como uma tentativa de prejudicar Bolsonaro a poucos meses das eleições.
O julgamento também vai delimitar até onde vai a imunidade parlamentar prevista na Constituição Federal. Segundo ela, deputados e senadores são “invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. Em tese, isso quer dizer que os parlamentares não podem ser punidos por expressarem suas opiniões no exercício dos seus mandatos.
Na avaliação da PGR, que denunciou Silveira em fevereiro de 2021, os ataques do deputado ao STF não estariam respaldados pela imunidade parlamentar porque atiçariam a população contra o tribunal.
“Cumpre destacar que as manifestações contidas nos vídeos que serviram como plataforma para a prática das infrações […] escapam à proteção da imunidade parlamentar, que não abrange esse propósito […] suas expressões ultrapassam o mero excesso verbal, na medida que atiçam seguidores e apoiadores do acusado em redes sociais”, diz um trecho da denúncia.
A defesa de Silveira, no entanto, vai na direção contrária e afirma que ele não poderia ser punido pois tudo o que disse estaria coberto pelo direito à liberdade de expressão e pela imunidade parlamentar.
“O que restou patenteado (provado), é que nesta Suprema Corte, quando figuram seus integrantes como vítimas, tudo pode para se manter um cidadão, legitimamente eleito, em pleno exercício de sua liberdade de expressão e imunidade parlamentar, cerceado abusivamente de sua liberdade”, diz um trecho da defesa de Silveira.
Para Gustavo Badaró, o que os ministros e ministras do STF vão delimitar no julgamento de Daniel Silveira é até onde vai a liberdade de expressão e a imunidade parlamentar.
“Se o STF condenar Daniel Silveira, será feito um balizamento do que é liberdade de expressão e imunidade parlamentar e do que escapa esses dois direitos e acaba se transformando em ataque, incitação à violência”, explica Badaró.
Para o professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Davi Tangerino, o STF deverá seguir a jurisprudência já existente sobre o assunto que separa a liberdade de expressão do ataque.
“Não há liberdade de expressão que compreenda o direito de atacar as instituições democráticas. O Direito penal limita há décadas o direito geral de expressão, por exemplo, nos crimes contra a honra. Esse é o mérito do caso”, explicou.
Dimensão política
Além das questões jurídicas do caso, os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que o julgamento deverá ter implicações políticas, uma vez que Daniel Silveira acabou se transformando em um “símbolo” do embate entre o bolsonarismo e o Poder Judiciário.
A proximidade entre Silveira e Bolsonaro existe tanto em público quanto nos autos do processo que o deputado responde no STF. No fim de março, em evento no Palácio do Planalto, Bolsonaro saiu em defesa do parlamentar.
“Não podemos aceitar o que vem acontecendo passivamente. Ele (Daniel Silveira) pode ser preso? Deixa para lá. Pode ter os bens retidos? Deixa para lá. Vai chegar em você”, discursou Bolsonaro.
No STF, Silveira fez questão de mencionar em sua defesa que, segundo ele, o Supremo não atuaria da mesma forma na defesa do Judiciário e do chefe do Executivo.
“Parece inquestionável que somente os membros do Poder Judiciário, não podem ser alvo de críticas, ao passo que ainda que graves os atentados à moral do chefe do Executivo, o judiciário não age de ofício […] Na verdade, mantém a venda em seus olhos e fecha, igualmente os ouvidos aos reclames do povo”, diz um trecho da defesa.
A cientista política e professora do Laboratório de Estudos Eleitorais, de Comunicação Política e de Opinião Pública da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Carolina Botelho diz que o caso envolvendo Silveira vem sendo usado pelo bolsonarismo para “descredibilizar” o STF e que isso deverá se intensificar nos próximos dias. Segundo ela, o julgamento será usado para corroborar a narrativa de que o STF seria um “obstáculo” ao governo de Bolsonaro.
“A base bolsonarista usa o caso pra descredibilizar o STF neste momento em que ele atua como uma espécie de freio às ações do presidente. A base eleitoral de Bolsonaro elegeu o STF como inimigo e suposto responsável pelas dificuldades enfrentadas pelo presidente para governar”, explica a professora.
O coordenador do Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Fábio Malini, diz que, no universo das redes sociais, o caso de Daniel Silveira é usado pela militância como uma espécie de “degrau” para atingir o STF.
“Daniel Silveira virou um degrau pra fazer crítica ao STF. A narrativa que se criou é de que Bolsonaro não consegue governar porque tem inimigos. O primeiro era (ex-presidente da Câmara dos Deputados) Rodrigo Maia. Depois, foi o STF. Assim, uma condenação de Silveira, que é próximo de Bolsonaro, seria uma prova de que o STF está perseguindo Bolsonaro”, explicou o professor.
Gustavo Badaró admite que o caso extrapola as questões meramente legais.
“Se Silveira for punido severamente, a mensagem que o STF vai enviar é: ‘Não mexam com o tribunal’. Por outro lado, como esse deputado é visto como representante do bolsonarismo, uma condenação elevada vai acirrar ainda mais os ânimos dos apoiadores do presidente contra o STF”, avalia o professor.
Carolina Botelho concorda com Badaró.
“É difícil dizer se o STF sairá mais forte ou mais fraco desse julgamento. Parte da população vê o tribunal como um amortecedor contra a radicalização do governo. Outra parte, como um obstáculo ao governo. Ao final, a sociedade tende a continuar dividida sobre como enxergar o tribunal”, disse a professora.
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