- Author, Mariana Sanches
- Role, Da BBC News Brasil em Washington D.C.
- Twitter, @Mariana_Sanches
Para quem passa pela calçada de uma das ruas de Washington D.C., a máquina ali instalada pode parecer só mais uma daquelas com opções de refrigerantes, isotônicos e água, comuns na capital americana.
Mas as prateleiras estão carregadas de sprays nasais anti-overdose por opioide, fitas de testagem rápida de drogas, testes rápidos de HIV, preservativos femininos e masculinos, kits de higiene básica e de tratamento para ferimentos.
Para consumir, basta digitar o número do produto escolhido e, em vez do cartão de crédito, inserir um código recebido imediatamente — e anonimamente — por quem liga para o número telefônico inscrito na própria máquina.
Tudo de graça e disponível 24 horas por dia, nos sete dias da semana.
As sete máquinas automáticas de redução de danos começaram a ser instaladas a poucas quadras da Casa Branca e do Capitólio há quatro meses — e uma oitava entrará em operação na capital americana nas próximas semanas.
A estratégia é a um só tempo atestado da gravidade da epidemia de overdoses por opioides que os Estados Unidos enfrentam e exemplo da criatividade e da agilidade que lidar com o problema tem exigido das autoridades públicas do país.
Enquanto, em 2015, o número de mortes por overdose de drogas em Washington ficou em 114 (ou 17 por 100 mil habitantes), em 2021, já eram 426 (ou quase 62 por 100 mil), mais do que o dobro da taxa de homicídios da cidade, segundo dados oficiais.
Nacionalmente, a tendência na escalada das mortes é similar. Segundo informações do National Institute of Health, em 2015, 52,4 mil pessoas morreram nos Estados Unidos por overdose. Em 2022, foram 106,7 mil.
Este opioide sintético é aproximadamente cem vezes mais potente que a morfina e 50 vezes mais forte que a heroína.
Dada a potência do fentanil, o consumo de apenas 2 miligramas por um usuário adulto já pode ser letal.
Os obituários não deixam dúvidas. Em 2016, o fentanil estava por trás de 62% das mortes por overdose em Washington. Em 2022, ele foi a causa de 96% das fatalidades ligadas a abuso de drogas.
Especialistas no assunto acreditam que ao menos parte dos mortos sequer sabia que estava consumindo fentanil.
“Um dos maiores problemas nos Estados Unidos é que o fentanil está misturado às drogas em geral. Portanto, qualquer que seja a substância que a pessoa vá consumir, precisamos ajudá-la a saber se há fentanil ali”, explica à BBC News Brasil Angela Wood, chefe da Family and Medical Counseling Services, organização sem fins lucrativos que oferece redução de danos em Washington e opera cinco das oito máquinas da cidade.
“Tentamos educar todo mundo, até mesmo as pessoas que usam apenas maconha, que se você estiver comprando uma droga vendida nas ruas, você precisa se preocupar, porque o fentanil pode estar misturado a ela, e uma única dose pode ser uma dose letal.”
De acordo com Wood, desde a instalação das máquinas nas ruas, 1700 itens já foram distribuídos em Washington.
O produto mais buscado foi a naloxona, o antídoto nasal contra overdose de opioide capaz de salvar uma vida se aplicada em até 90 minutos após o consumo da droga.
Em segundo, ficaram as fitas que testam imediatamente qualquer droga e identificam a presença de fentanil misturada a elas.
Para Wood, que coordena programas presenciais de distribuição de seringas e de acompanhamento de usuários de drogas na região metropolitana de Washington, o trunfo das máquinas é, por um lado, não exigir qualquer informação do usuário para garantir acesso aos itens de proteção pessoal. Por outro, assegurar que eles estejam disponíveis a qualquer hora do dia e da noite, em qualquer dia da semana.
“Entre aqueles que usam as máquinas, temos visto tanto pessoas que já acompanhamos em outros programas de redução de danos quanto pessoas totalmente novas para nós”, explica Wood.
“Há tanto os usuários de opioides, que buscam se prevenir e ter em mãos uma dose de naloxona, como familiares ou amigos de usuários, que querem poder cuidar de sua pessoa querida caso haja uma overdose.”
Segundo o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês), mais de 80% das mortes por overdose acontecem dentro de casa e, em cerca de 40% das vezes, há mais alguém presente no momento da morte — e que poderia ajudar a revertê-la se tivesse o antídoto à mão.
Empurrão da pandemia
Experimentos com “máquinas de refrigerante” para distribuir produtos de redução de danos a usuários de drogas não são necessariamente novos. A estratégia é usada há ao menos 30 anos em países como Dinamarca e Noruega.
Mas foi só durante a pandemia de covid-19 que essa ideia começou a ganhar tração nos Estados Unidos.
Uma das mais longevas iniciativas do tipo no país foi adotada na cidade de Cincinnati, em Ohio, a partir de fevereiro de 2021.
“Quando a covid começou, a maior parte dos serviços de saúde para usuários na nossa área fechou”, explica Suzane Bachmeyer, diretora de prevenção da Caracole, organização sem fins lucrativos de prevenção ao HIV que opera a máquina de redução de danos em Ohio, um dos cinco Estados com mais alta taxa de mortalidade por overdose por opioides do país, com cerca de 14 mortes por dia.
“Nós precisávamos estar seguros, mas não queríamos deixar de atuar na prevenção ao HIV e à overdose e precisávamos de uma solução que eliminasse o contato, mas ainda assim fosse efetiva.”
O que parecia uma solução emergencial se mostrou um sucesso para atingir um público mais amplo para a redução de danos.
“Há um componente de confiança que é realmente importante. Muitos dos nossos usuários são pessoas social e economicamente vulneráveis, que enfrentaram estigmas, questões raciais e que tinham muitos motivos para se questionar se, em uma interação com pessoas para receber seringas, não poderiam acabar sendo presos”, afirma à BBC News Brasil Daniel Arendt, professor de Farmácia da University of Cincinnati, que atua no programa e faz pesquisas sobre seus resultados.
“Quando você exclui o elemento da interação humana, usa uma máquina de venda automática, garante o anonimato, isso realmente traz uma nova população para a redução de danos que de outra forma jamais teríamos alcançado.”
Em Cincinnati, aqueles que querem retirar um produto da máquina podem telefonar para o número na máquina e obter um código pessoal válido por 90 dias.
Ao longo deste período, a pessoa pode retirar um item de cada tipo por semana.
Entre os produtos estão: seringas, kits de cachimbo, naloxona injetável e inalável, testes para fentanil em drogas, teste de gravidez, preservativos, entre outros.
Caso a pessoa decida seguir usando a máquina depois de 90 dias, precisa ligar novamente para receber um novo código.
É nesse momento que os pesquisadores aproveitaram para, sem quebrar o anonimato, descobrir um pouco mais sobre seu perfil e sobre o uso que fizeram dos itens que pegaram na máquina.
A pesquisa permitiu descobrir, por exemplo, que quase uma a cada cinco pessoas que consumiram produtos da máquina jamais tinham se engajado em serviços presenciais de redução de danos antes.
E, embora a maioria dos que consomem redução de danos tanto da máquina quanto das interações pessoais sejam de pessoas brancas, o público da máquina é mais diverso, com percentual mais significativo de negros, por exemplo.
Reversões de overdose ou não?
“Em dois anos e meio de operação, revertemos 2,5 mil overdoses com naloxona distribuída via máquina automática. E as fitas para teste das drogas detectaram fentanil na droga dos usuários em ao menos 5,5 mil ocasiões. Destas, em 2,9 mil situações, os usuários relataram ter mudado seu comportamento por causa do resultado, descartando a droga ou ingerindo uma quantidade menor”, relata Arendt, que chegou aos números graças às perguntas respondidas por mais de 500 usuários que renovam seus códigos a cada 90 dias.
“Enquanto nacionalmente o número de overdoses aumentou 15% no primeiro ano de operação da máquina, aqui no Condado Hamilton, onde estamos, reduzimos em cerca de 10% o número de mortes.”
Nos anos 1980, quando o conceito de redução de danos surgiu como uma ideia de facilitar o acesso de usuários de drogas injetáveis a seringas e meios seguros de uso para prevenir contaminações por vírus como a hepatite e o HIV, houve um temor de que essas práticas não repressivas acabassem estimulando o aumento do consumo de drogas.
Décadas de pesquisas mostraram que o receio não se tornou realidade e que os programas de redução de danos realmente reduziram o número de infecções entre usuários de drogas.
Mas uma pesquisa publicada em meados de 2019 pela pesquisadora Analisa Packham no Journal of Public Economics sugeriu que a chegada do fentanil à praça poderia ter alterado esse cálculo vantajoso em favor da redução de danos.
Packham comparou os resultados do programa de trocas de seringas em condados americanos entre 2008 e 2016.
Ela observou que, originalmente, as taxas de infecção por HIV eram semelhantes nas localidades selecionadas.
Quando algumas delas começaram seus programas de redução de danos, porém, seus caminhos se dividiram.
Naquelas com troca de seringas, infecções por HIV diminuíram em 15% em relação àquelas sem trocas de seringa.
Ainda assim, as mortes de usuários não caíram — na média, na verdade, mortes por opioides cresceram 22% nos condados com redução de danos.
A conclusão de Packman é a de que o acesso a meios seguros de consumo pode ter aumentado a frequência de uso de uma droga altamente letal, por isso o aumento no número de mortes.
Em 2018, outras duas pesquisadoras, Jennifer Doleac e Anita Mukherjee, chegaram a conclusões correlatas ao verificar que o aumento no acesso ao antídoto naloxona não reduziu as ocorrências de emergências médicas relacionadas às overdoses por opioides.
“Existe a preocupação de que o acesso generalizado à naloxona, que reduz o risco de morte por overdose, possa levar involuntariamente a um consumo aumentado ou mais arriscado de opioides”, escreveram as autoras no estudo.
Em dezembro de 2022, os até então pouco conhecidos estudos foram mencionados em um artigo da revista britânica The Economist cujo título era: “A troca de seringas nos EUA está matando usuários de drogas”.
As conclusões dos dois estudos (e também a reportagem da Economist) causaram furor no meio científico.
Em resposta, Helen Clark, ex-primeira-ministra da Nova Zelândia e uma das líderes da Global Commission on Drug Policy, acusou a publicação britânica de optar por jogar luz sobre as raras pesquisas sobre redução de danos com resultados negativos entre centenas de trabalhos com resultados positivos e extensamente revisados por outros cientistas.
“A evidência é clara: as trocas de agulha e seringa não incentivam o uso de drogas. Pelo contrário, uma literatura de longa data mostra que esta abordagem tem sido eficaz na prevenção da transmissão de doenças transmitidas pelo sangue, como o HIV e a Hepatite C (e, de fato, de outras infecções com complicações graves, como os abcessos)”, escreveu Clark em sua resposta pública.
“A Nova Zelândia, que foi uma das primeiras a adotar programas de troca de seringa e agulha na década de 1980, evitou em grande parte as taxas endêmicas de HIV entre as pessoas que injetam drogas — um resultado muito diferente daquele observado em países que não implementaram tais programas cedo.”
Arendt reconhece que as estratégias de redução de danos podem soar contraintuitivas para a maior parte das pessoas, mas argumenta que a evidência científica mostra que seus resultados concretos desafiam a lógica do senso comum.
“As pessoas podem imaginar que alguém receba uma seringa e só aí vá pensar em obter uma droga para injetar. Não acontece assim. As pessoas querem usar a droga, têm a droga e vão consumir, com ou sem seringa nova disponível”, diz o pesquisador da Universidade de Cincinnati.
Tanto Wood como Bachmeyer notam que seu trabalho não se encerra nas máquinas automáticas ou na entrega presencial de seringas aos usuários.
Ambas as instituições oferecem uma gama maior de cuidados de saúde e de opções para tratamento da dependência química, caso assim deseje o usuário.
Segundo Arendt, usuários recorrentes da máquina automática se tornaram mais interessados em aprofundar seus cuidados pessoais e, eventualmente, até mesmo se engajar em algum tipo de tratamento.
“Não estamos aqui para dizer ao usuário: ‘parou, agora você não vai usar mais nada e qualquer coisa menos que abstinência não será uma vitória’. A estratégia é outra. A máquina é muitas vezes um primeiro passo”, diz Arendt.
“A cada vez que o usuário volta à máquina, a confiança dele no serviço aumenta. Alguns começam a nos dar seus nomes e seus contatos, reduzem um ou dois usos na semana, aceitam aos poucos outras abordagens, buscam mais informações de saúde, melhoram suas condições. O passo seguinte é sempre mais fácil do que o anterior. Não é tudo ou nada.”
Em favor das máquinas automáticas de redução de danos há ainda um argumento adicional: o baixo custo do programa.
Embora haja um investimento inicial de cerca de US$ 15 mil (R$ 73,34 mil) para bancar o aparelho, sua manutenção e reposição dos itens pode ser feita de modo barato.
Em Washington, Wood estima que manter cada máquina custe US$ 1,3 mil (R$ 6,4 mil) por mês, um valor que tem sido repassado à organização pela Prefeitura.
No caso de Cincinnati, a Caracole custeia o programa sem fundos públicos.
“Em termos de custo-benefício, sai muito mais barato repor os itens da máquina e mantê-la funcionando do que empregar um educador ou assistente social por 40 horas semanais”, diz Bachmeyer.
Segundo a diretora de prevenção da Caracole, ao menos 70 cidades americanas já consultaram Cincinnati sobre sua experiência com máquinas automáticas de redução de danos, entre as quais Nova York, que recém-instalou modelos em Brooklyn.
Além de Washington, Nova York e Ohio, há experiências em Nevada e Porto Rico.
Em meio a uma epidemia de overdoses, ao menos parte da solução pode estar na velha maquininha de refrigerantes.
Fonte: BBC
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