- Author, Sofia Quaglia
- Role, BBC Future
Quando tinha 20 anos de idade, Randolph Nesse estava intrigado com os motivos que nos fazem envelhecer.
Ele não conseguia entender por que a seleção natural não erradicou o envelhecimento. Nesse passou meses estudando teorias que pudessem explicar o fenômeno, sem conseguir resolver o quebra-cabeça.
Mas as divagações da sua mente curiosa depositaram as sementes de uma forma inteiramente nova de pensar na medicina.
Foi preciso que alguns anos se passassem até que seus amigos do museu de história natural indicassem a Nesse a teoria de que o envelhecimento é simplesmente um efeito colateral da pressão evolutiva, que seleciona alguns genes em vez de outros. E, se uma condição se manifestar apenas depois que um organismo superar o auge da sua reprodução, não haverá pressão seletiva para evitar que ela seja transmitida para as gerações seguintes.
Como médico, Nesse percebeu que, apesar de compreender como essas forças podem modelar as espécies, ele não fazia ideia de como funciona a seleção natural dentro do corpo humano.
“Aprendi metade da biologia. Ninguém nunca havia falado sobre a importância da biologia evolutiva [na medicina]”, ele conta. “Comecei imediatamente a me perguntar se haveria explicações similares para os genes que causam as doenças.”
Hoje, Nesse é considerado o pai da medicina evolutiva, também conhecida como medicina darwiniana – uma disciplina relativamente nova e em crescimento, que aplica a teoria da evolução a questões sobre a saúde e as doenças humanas.
Enquanto a maioria das pesquisas médicas modernas concentra-se nas causas físicas e moleculares das doenças, a medicina evolutiva tenta entender, em primeiro lugar, por que podemos ter evoluído para sermos susceptíveis às condições e como podemos usar a evolução para combatê-las.
“Aqui, estamos lidando com uma ciência básica totalmente nova que não foi aplicada à medicina”, explica Nesse.
Mudar por completo o nosso entendimento sobre o que é o corpo humano e como ele funciona é uma tarefa gigantesca. Mesmo assim, cada vez mais cientistas estão tentando aplicar o pensamento evolutivo para fazer avançar a medicina.
Este trabalho já está começando a mudar nosso conhecimento sobre o desenvolvimento do câncer e das doenças autoimunes. E também está revelando novas estratégias para lidar com as adversidades da assistência médica, como a resistência antimicrobiana.
“Fico surpreso ao ver que houve tantas implicações práticas em tão pouco tempo”, afirma Nesse.
O câncer é uma demonstração do processo evolutivo em um microcosmo. Ele é formado por aglomerados de células em concorrência e cooperação contínua entre si, de formas que ajudam o tumor a crescer e florescer.
Um estudo recente destacou a capacidade “infinita” das células cancerosas de evoluir e sobreviver.
Quando um paciente recebe terapia medicamentosa, por exemplo, surge uma nova pressão seletiva que elimina as células mais vulneráveis ao tratamento. Mas as células menos vulneráveis, ou até imunes aos efeitos daquela terapia, sobrevivem e transmitem suas características genéticas para os seus descendentes.
É por isso que as terapias contra o câncer — mesmo as altamente bem sucedidas — deixarão de funcionar em muitos pacientes em algum momento, já que as células cancerosas desenvolvem resistência ao tratamento e sua população irá crescer de forma descontrolada.
“Pode-se afirmar que esta é a causa imediata da morte da maioria dos pacientes”, segundo Robert Gatenby, um dos diretores do Centro de Excelência de Terapia Evolutiva do Moffitt Cancer Center, na Flórida (Estados Unidos).
E, utilizando o pensamento evolutivo, o laboratório de Gatenby está desenvolvendo duas estratégias diferentes para combater o câncer: a terapia adaptativa e a terapia de extinção.
Terapia adaptativa
A terapia adaptativa pretende controlar a propagação do câncer, em vez de tentar eliminá-lo completamente.
O princípio do tratamento do câncer nos últimos 50 anos é a aplicação da mesma medicação, ou de uma combinação de medicamentos, em ciclos, até que haja claras evidências da progressão do tumor (quando o tumor começa a crescer de forma descontrolada) ou do excesso de toxicidade, segundo Gatenby. Este momento, normalmente, fica muito além do ponto de reação máxima do tratamento.
Para Gatenby, isso é “inútil”, pois a maior parte das células remanescentes é resistente à droga. Por isso, ao prosseguir com a mesma terapia, o oncologista oferece a estas células a oportunidade de proliferar-se, de forma que sua população fique maior e mais diversificada.
Já sua teoria de terapia adaptativa pretende ajustar a dosagem dos medicamentos para que o tratamento seja personalizado — apenas o suficiente para reduzir o tumor e mantê-lo com o menor tamanho possível, sem eliminar totalmente a população sensível. E, em seguida, a terapia é suspensa.
Este procedimento permite que as células sensíveis ao tratamento continuem a disputar o espaço dentro do tumor, evitando que outras células, resistentes à medicação, tornem-se dominantes devido à vantagem adaptativa.
“Como não podemos controlar as células tumorais que são resistentes à terapia, precisamos fazer com que as células sensíveis ao tratamento trabalhem para nós”, afirma Gatenby. Ele vem desenvolvendo esta ideia desde sua primeira publicação sobre o assunto, em 1991.
“Você pode simplesmente continuar o tratamento em ciclos e seguir reduzindo, deixando crescer, reduzindo e deixando crescer”. Para ele, a esperança é que os médicos consigam manter os pacientes vivos por um longo período, sem que precisem sofrer os efeitos colaterais do tratamento em cerca da metade desse tempo.
Seu grupo de pesquisa, considerado o mais avançado neste campo, já demonstrou que esta técnica funciona em um pequeno teste piloto entre pacientes com câncer da próstata.
Os pacientes que passaram pela terapia adaptativa receberam a metade da dose normal de um medicamento quimioterápico ao longo do teste e passaram 46% do tempo sem receber medicação.
O tempo desde o início da terapia até o momento em que o câncer parou de reagir ao tratamento foi 19 meses maior no grupo que recebeu esta terapia adaptativa, em comparação com os que receberam quimioterapia padrão. E os pacientes que receberam a terapia adaptativa também tiveram sobrevivência geral 2,26 anos maior do que com o tratamento padrão.
“Como esses pacientes receberam apenas cerca da metade da droga que teriam recebido com outro tratamento, o custo anual da sua terapia também foi US$ 70 mil [cerca de R$ 340 mil] menor por paciente”, afirma Gatenby.
Terapia de extinção
Na terapia de extinção, Gatenby pretende dar mais um passo adiante. Ele quer usar o que sabemos sobre a extinção das espécies animais para projetar terapias curativas que causem a extinção de populações cancerosas.
A ideia seria não esperar pelo novo crescimento do tumor após a aplicação da terapia inicial, mas sim atingir o tumor com uma terapia totalmente diferente antes que ele possa se recuperar – pegando as células tumorais de surpresa com um ciclo rápido de uma medicação diferente, durante o pico da sua reação ao primeiro tratamento.
Mas, até agora, foi apenas publicado um modelo matemático explorando esta ideia, embora a equipe de Gatenby tenha proposto testes clínicos usando a terapia de extinção contra câncer do pâncreas e câncer de mama.
Na verdade, a grande questão ainda é como esta espécie de pesquisa irá sair dos testes clínicos, se for bem sucedida, para a aceitação no mundo real, segundo Michael E. Hochberg, renomado diretor de pesquisa do Centro Nacional de Pesquisas Científicas da Universidade de Montpellier, na França.
“A parte principal do quebra-cabeça é transformar isso em medicina”, afirma Hochberg. “Qual é o seu uso realista, em termos de utilidade?”
Para ele, a medicina evolutiva talvez seja, realmente, a perspectiva científica mais provável para lidar com grandes questões como estas, mas os médicos ainda precisam tratar pacientes todos os dias com soluções conhecidas, melhores práticas testadas e comprovadas, e com pouco lugar para hipóteses.
“Eles têm a obrigação de ‘antes de tudo, não prejudicar'”, afirma Hochberg – e, no momento, estas descobertas ainda são preliminares.
“Acho que esta talvez seja a maior crítica não declarada a este respeito”, segundo ele. “Algum dia, isso irá ver a luz do dia?”
A resistência aos antibióticos
A medicina evolutiva também é aplicada na busca por uma solução para um dos problemas que crescem mais rapidamente no mundo atual: a resistência antimicrobiana.
À medida que a medicina moderna desenvolveu poderosos antibióticos para eliminar bactérias prejudiciais que infectam os seres humanos e causam doenças, o seu uso indiscriminado também fez, inadvertidamente, com que as bactérias evoluíssem, criando resistência a esses medicamentos por meio da seleção natural.
Estima-se que as bactérias com resistência antimicrobiana tenham causado mais mortes do que o HIV/AIDS ou malária em 2019, somando mais de 1,2 milhão de vítimas fatais.
Atualmente, os médicos combatem as doenças causadas por bactérias com resistência a antibióticos substituindo os medicamentos por outros, na esperança de poder vencer as defesas bacterianas contra outras drogas.
Mas esta prática traz o risco de fazer avançar o risco de resistência, em vez de interrompê-lo. Na verdade, as bactérias estão evoluindo para se tornarem geneticamente cada vez mais resistentes aos medicamentos.
As bactérias também desenvolvem resistência de diversas formas, desde a troca de material genético até o acúmulo de mutações aleatórias. Por isso, os cientistas evolutivos estão testando diversas abordagens diferentes para interromper esses processos.
“Se quisermos solucionar este problema, precisamos compreender a evolução e, então, ir atrás dos pontos fracos”, segundo Andrew Read, diretor do Instituto Huck de Ciências da Vida da Universidade Estadual da Pensilvânia, nos Estados Unidos. A equipe de Read está desenvolvendo “drogas antiantibióticos” para ajudar a controlar o avanço da resistência antimicrobiana em locais onde os medicamentos podem prejudicar mais do que beneficiar os pacientes.
Nos hospitais, a resistência antimicrobiana normalmente surge porque alguns dos antibióticos fortes administrados por via intravenosa – cerca de 5-10%, segundo Read – chegam ao aparelho digestivo dos pacientes.
Ali, eles encontram uma enorme comunidade de micróbios, causando alterações prejudiciais para o equilíbrio daquela comunidade e deixando alguns que adquiriram resistência ao antibiótico. É o que ocorre no caso de doenças como Clostridium difficile (C. diff), uma bactéria que infecciona o intestino de pacientes tratados com antibióticos por alguma outra razão.
Se os pacientes puderem tomar “antiantibióticos” que anulem o efeito dos medicamentos depois que eles atingirem o intestino, a probabilidade de desenvolvimento de resistência pelas bactérias será reduzida. As drogas de desativação propriamente ditas não fazem nada clinicamente, mas impedem a ação do medicamento no intestino.
“O que eu gosto nesta técnica é que o mecanismo de resistência realmente não importa”, explica Read. “Não importa se existe resistência ali. Não importa se e como ela foi adquirida, ela simplesmente elimina a força que faz aumentar a resistência da população.”
Seu laboratório já demonstrou que este mecanismo funciona bem em camundongos para evitar a difusão da superbactéria Enterococcus faecium após tratamento com antibióticos.
Outros pesquisadores conseguiram demonstrar que alguns compostos, como um adsorvente à base de carvão ou uma enzima chamada ribaxamase, podem ajudar a evitar a disseminação de C. diff em camundongos com a mesma técnica.
Mas esta é uma solução geral que não inibe a resistência se as bactérias encontrarem os medicamentos.
A ‘conjugação’
Uma razão da dificuldade para combater a resistência bacteriana é o fato de que ela não aparece simplesmente pela via evolutiva típica, regida pelo acaso – quando uma mutação qualquer faz com que algumas bactérias fiquem mais fortes e consigam resistir aos medicamentos.
Ela também acontece graças à transferência horizontal de genes, que faz com que fragmentos circulares de DNA conhecidos como plasmídeos possam ser transmitidos diretamente de uma bactéria para outra.
Já se descobriu que este processo acontece tanto na mesma espécie de bactéria, quanto entre espécies diferentes, o que permite que as mutações que geram resistência a drogas se disseminem com muito mais rapidez.
O grupo de pesquisa da professora Anne Farewell na Universidade de Gotemburgo, na Suécia, está tentando reduzir a velocidade de um dos mecanismos utilizados pelas bactérias para compartilhar DNA horizontalmente, conhecido como “conjugação”.
A conjugação é uma espécie de sexo entre as bactérias. Nela, as células entram em contato direto entre si, muitas vezes por meio de um tubo que corre entre elas.
“Sei que não conseguimos vencê-las”, afirma Farewell, que leciona biologia molecular. “Mas a nossa ideia é que, em vez de um antibiótico ser útil por 20 anos, talvez ele mantenha sua utilidade por 40 ou 50 anos.”
A professora está selecionando grandes variedades de micróbios para indicar exatamente quais pares de espécies bacterianas podem se misturar e combinar-se por meio de conjugação. Ela também está pesquisando se existem condições ambientais específicas – como pesticidas ou contaminação por metais pesados – que facilitam ou dificultam a conjugação entre essas bactérias.
Suas pesquisas já demonstraram que Escherichia coli – uma bactéria comum que pode causar intoxicação alimentar e uma ampla variedade de outras infecções – pode ter sua conjugação bloqueada se entrar em contato com cobre, que reduz sua capacidade de conjugar-se em quase 100 vezes.
Pesquisas anteriores também sugerem que uma certa classe de ácidos graxos sintéticos pode inibir a conjugação, da mesma forma que o óleo essencial de sálvia.
E estudos encontraram as mesmas propriedades anticonjugação em isotiocianato de benzila, um composto antimicrobiano encontrado em plantas da família da mostarda, bem como nos ácidos tanzawaicos, que são substâncias de ocorrência natural.
“Entender quais moléculas impedem a conjugação poderá ajudar a desenvolver ‘drogas anticonjugação’ que sejam eficazes”, segundo Farewell, “mas as pesquisas neste campo ainda são preliminares e existem também muitas outras formas de compartilhamento de DNA entre as bactérias que não serão afetadas por esta técnica.”
A professora explica que as bactérias são incrivelmente astutas. “Não acho que haverá uma [única] solução. Haverá diversas técnicas.”
‘A ciência sempre vence’
Embora os campos da pesquisa do câncer e da resistência bacteriana sejam os mais avançados da medicina evolutiva, ainda existe um longo caminho pela frente.
Os críticos defendem que, mesmo conhecendo mais sobre a teoria da medicina evolutiva, não está claro até que ponto este novo conhecimento pode ser utilizado na prática.
“O problema, na minha opinião pessoal, é o entusiasmo desmedido a este respeito”, afirma Michael Hochberg. Ele é o autor de um recente comentário sobre a medicina evolutiva, publicado na revista científica Frontiers.
“Raramente observei conversas que realmente se dedicassem à questão da logística, dos lucros e de outras questões sobre a transferência do laboratório para a clínica”, explica ele. “É uma caixa de Pandora, totalmente diferente.”
E existem também os atritos intelectuais.
Os acadêmicos darwinianos podem estar muito entusiasmados, mas os que recebem estas novas teorias tendem a ser mais céticos. A medicina evolutiva sozinha não pode curar a todos – ela é uma forma de abordagem dos problemas da medicina.
“A medicina é praticada por pessoas que, tipicamente, não receberam formação em nada que tenha relação com a biologia evolutiva”, afirma o biólogo evolutivo Bernard Crespi, da Universidade Simon Fraser, no Canadá. Ele também escreveu recentemente sobre as limitações da medicina evolutiva.
Para Crespi, “o principal desafio é estabelecer uma ponte entre os acadêmicos, a formação dos médicos e sua mentalidade no contexto da instituição médica das grandes companhias farmacêuticas como um todo”.
Robert Gatenby acredita que as técnicas de terapia adaptativa em câncer, por exemplo, exigirão que mudemos nossa forma de pensar nessas doenças — abandonando, por exemplo, grande parte da nossa terminologia de guerra, como “batalha” e “luta” para “destruir” o câncer, e pensando mais em gestão da doença. Será preciso muito trabalho de convencimento, segundo Gatenby.
A forma em que a medicina evolutiva irá encontrar um caminho para colaborar com a indústria farmacêutica ainda é uma grande interrogação. Mas Nesse — que deu início a todo este processo — afirma que a medicina evolutiva ainda tem o poder de oferecer novas questões e respostas sobre as doenças.
“Você pode achar que fico meio exaltado com isso porque é ridículo”, afirma ele. “Existe um fosso entre a biologia evolutiva e a medicina, que está realmente prejudicando a saúde humana.”
“O processo é lento, mas a ciência sempre vence.”
Fonte: BBC
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