- Igor Zahir
- De Recife para a BBC News Brasil
A última semana de dezembro, que costuma ser especial para algumas pessoas, pode se tornar uma tortura para outras, com sentimentos que vão de comparações frustradas nas redes sociais, a problemas como depressão e ansiedade.
A psicanalista Fernanda Fazzio se refere à contemporaneidade como “Era da Pre(s)sa”, marcada pela aceleração e pelos excessos: tudo é online e urgente. Não podemos parar, estamos sempre atrasados, cansados e sem tempo.
“Nos tornamos presas de um tempo voraz. Como estudo nas minhas pesquisas, o sujeito se vê diante da abundância de estímulos e bombardeio de informações, com efeitos tóxicos, o que afeta o nosso modo de se relacionar com o outro semelhante. Nesse cenário, corremos contra um tempo insuficiente, empobrecendo as nossas experiências”, explica Fazzio, que é doutoranda em psicologia clínica pela USP e idealizadora do podcast “Era da Pressa: psicanálise entre esperas e extremos”.
A profissional destaca que, como não escapamos da pressa, fica difícil encontrar intervalos suficientes para digerir psiquicamente o que nos acontece: é como se estivéssemos sempre cheios e, ao mesmo tempo, vazios de experiências significativas.
“Na pausa do fim do ano, há uma desaceleração compartilhada repleta de angústias e inquietações. Nessas horas, algumas perguntas perigosas podem nos alcançar: ‘Será que vivo uma vida que vale a pena ser vivida?'”.
Não por acaso, muitos psicanalistas veem na clínica os sofrimentos aumentados entre o período do Natal e do Ano Novo.
“No fim do ano, quando a festa acaba, no nosso íntimo, sabemos que há uma distância entre onde estamos e onde queríamos estar em nossas vidas”, diz Fazzio. “Sabe aquelas listas de fim de ano que não foram cumpridas? E aquela viagem com os amigos a que você não foi convidado? O projeto que não aconteceu, será que vai dar certo no próximo ano? Vemos uma tendência de humores ansiosos e deprimidos nessa época”.
A psicanalista, cuja dissertação de mestrado pela PUC-SP se chamou “O tempo e o impacto da experiência estética na era da Pre(s)sa: psicanálise e teatro performático”, ressalta que, com a aceleração de cada dia, fica difícil encontrar tempo e espaço psíquico para que as experiências nos atravessem, deixem marcas.
“E, no fim de ano, buscamos tais marcas para nos agarrarmos, para sentirmos que a vida vale a pena ser vivida, apesar dos pontos finais. Quando o ano se encerra, traz também uma ilusão de recomeço necessária para suportarmos essa transição. Desejar um feliz ano novo, muitas vezes, traz a dor de um ideal inatingível de felicidade, bem como uma dose de esperança”.
Arestas da polarização
Para o psicanalista Alexandre Starnino, as questões envolvendo o fim de ano estão enraizadas na cultural ocidental: renovação, mudança, despedidas, promessas, perdão, tudo em família.
“Todos esses ideais de grupo são aflorados a partir da ideia do espirito fraterno que é legitimado na maioria das casas. Uma coisa interessante na psicanálise é o que chamamos de aparamento das arestas”, diz Starnino.
“Todo esse mal-estar em relações de grupo ou familiares, aquele discurso que ficou engasgado, a discussão com um parente, a intriga com alguém que era seu amigo de infância. Em alguma medida, tudo fica camuflado, para não estar presente nesses momentos, por mais que vez por outra escape algo. Mas tem que desaparecer para que o espírito fraterno ocorra. Tudo isso gera expectativa e ansiedade”.
Outro fator que pesa muito, segundo o profissional, é o atravessamento da questão política, por conta da polarização nas duas últimas eleições presidenciais que deixou marcas em relações familiares, amorosas e de amizade.
“Muitas pessoas foram habituadas a terem contatos carinhosos com amigos e familiares, e do nada elas passaram a ser vistas como um inimigo. Filho imaginando o pai como rival e vice-versa. Amigos que cresceram juntos, do nada se veem em lados opostos”, explica o psicanalista.
Do ponto de vista da saúde mental e psíquica, ele destaca três sentimentos que afloraram nesse fim de ano eleitoral: angústia, frustração e desamparo.
“Angústia porque é natural o atravessamento discursivo que a política operou: 90% dos meus pacientes, na semana das eleições, só falavam do cenário político. Isso tem efeitos nas festas de fim de ano. Essa disputa não foi suturada ainda. Há essa angústia com quem está no outro polo, do lado oposto”, diz ele, prosseguindo a respeito da frustração e do desamparo:
“É por esperar do outro uma posição que você considera a correta, que você acha o melhor para o país. E também o desamparo porque tem coisas que não foram resolvidas. Há pais e filhos, maridos e mulheres que ainda não conseguiram manter o mínimo de aparamento de arestas para ter o encontro em paz no fim de ano”.
Desabafar: o pecado do Réveillon
Ao falar desse período, a psicanalista Gabriela Vargas acha importante contextualizar: vivemos em uma sociedade pós-moderna, que o filósofo Byung Chul-Han define como uma sociedade de positividade. Antigamente, para o Michel Foucault, vivíamos em uma sociedade disciplinar, que dizia ‘você deve isso ou aquilo’ e tinha muitos ‘nãos’. Agora estamos na sociedade do ‘sim’, então ‘sim’ você pode fazer o que quiser; se você não conseguiu algo é porque não tentou o suficiente; ‘sim’ você tem que ser feliz porque todo mundo posta foto feliz.
“O grande problema disso tudo no final de ano é que, além de essas datas serem extremamente comerciais, existe algo que tortura quem não tem relação com a família, quem perdeu alguém, tem muitas cicatrizes e dores. Muitas pessoas passam sozinhas, tem gente que passa fim de ano internada em hospitais sem receber visitas”, explica Vargas.
“De um lado tem o padrão da família heteronormativa em volta da mesa fazendo ceia, e do outro vivemos numa realidade de desigualdade gigantesca, então tem famílias que não têm dinheiro nem para comer o básico, muito menos para fazer ceia ou comprar presentes que estão na moda para crianças. Esse é um grande problema que pode trazer muito sofrimento psíquico, ainda mais com o aumento do desemprego”.
Vargas, que tem um projeto chamado Corpo Inconsciente – sobre psicanálise e transtornos alimentares -, também destaca sobre como vivemos em uma sociedade que não aceita diferenças e onde o diferente é cancelado em vários âmbitos.
“Para quem tem distúrbios alimentares é muito difícil comer nas festas de fim de ano, e isso dificulta passar com muita gente. É uma época de calor no Brasil, então tem a exposição do corpo submetido aos comentários do tio do pavê que pergunta se engordou ou emagreceu. Ou se casou e teve filho. Enfim, todos aqueles comentários maldosos nessas reuniões que fazem as pessoas sofrerem”.
O período com confraternizações, amigos secretos e outras festinhas também pode ser delicado para quem tem vícios em álcool e outras compulsões, porque acaba tendo que lidar com algo que não faz bem. E se não vai, precisa encarar a solidão em casa.
Enquanto vivemos na sociedade de performance, a psicanalista define o final de ano como a época de se exibir: é quando as pessoas aparecem em fotos de rede social com uma árvore de Natal linda, com a família sorrindo na foto, viagens para as praias e exterior no Réveillon e todos bem vestidos. Por outro lado, um contraponto a essa necessidade de ver e ser visto é que muitas vezes aquela foto linda não condiz com a realidade, as famílias brigaram, não existe aquela felicidade.
“Mas muitas pessoas do outro lado da tela, solitárias no sofá, não sabem disso e sofrem por não ter aquele momento supostamente feliz, então bate a frustração”, explica a psicanalista. “Isso se agrava para quem tem depressão, ansiedade ou outros problemas psíquicos, mas qualquer pessoa, ao se comparar e achar que o outro está naquela vida dos sonhos, acaba sofrendo muito”.
Para Vargas, outro agravante é a sensação de que, neste período, muita gente sente como não fosse permitido falar de problemas, expor o mal-estar causado por todos esses fatores.
“É quase um pecado do fim de ano abrir a boca para falar sobre coisas ruins, o que faz com o sofrimento aumente consideravelmente – tanto que vários pacientes pedem sessão entre Natal ou Ano Novo para lidar com esse tipo de situação. Mas muitas pessoas não têm essa rede de apoio e não sabem o que fazer. Então é praticamente um compromisso ético dos profissionais de saúde mental falar sobre essas coisas.”
O que fazer?
Para a reportagem da BBC News Brasil, Vargas listou algumas atitudes que podem ajudar quem não está bem e não sabe como lidar com essas questões na reta final do ano:
O primeiro é tentar se proteger de algumas formas. Evitar comparações com o feed de redes sociais de outras pessoas é um bom começo, lembrando que aquelas imagens muitas vezes são filtradas e não necessariamente condizem com a realidade.
Outra orientação dos psicanalistas é de e cercar de bons amigos ou de pessoas com que se sinta bem, mesmo que não seja da sua família.
Se estiver muito difícil segurar o que você está sentindo, tente procurar ajuda de psicólogos, psiquiatras ou psicanalistas.
No caso de ter pensamentos que coloquem em risco sua vida ou saúde mental e não conseguir encontrar os profissionais acima, o CVV – Centro de Valorização da Vida oferece apoio emocional 24 horas pelo telefone 188.
Vale lembrar que este é um momento: o fim de ano também vai passar e outros dias virão. A dica é se abastecer com coisas e pessoas que te fazem sentir feliz, ou no mínimo, se sentir bem em ser você mesmo.
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