- Author, Edison Veiga
- Role, De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
Em culto realizado na Igreja Lagoinha em Orlando, nos Estados Unidos, no último dia 4, o pastor André Valadão falou novamente sobre os homossexuais, dizendo que “Deus odeia o orgulho”.
Era uma clara alusão ao fato de estarmos no mês do Orgulho LGBTQIA , sigla que inclui lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis, queers, intersexuais, assexuais e demais sexualidades e gêneros.
Ele citou trechos bíblicos para “justificar” seu discurso, mas o fez recorrendo a uma controversa tradução de modo a exagerar a ênfase.
“Vocês não sabem que os perversos não herdarão o reino de Deus? Eu amo essa frase, essa bela frase: não se deixem enganar. Nem imorais, nem idólatras, nem adúlteros, nem homossexuais passivos ou ativos, nem ladrões, nem avarentos, em alcoólatras, nem caluniadores, nem trapaceiros herdarão o reino de Deus”, afirmou ele, atribuindo o texto à primeira carta de São Paulo aos Coríntios.
Vale ressaltar: está na Bíblia também que aquele que ousar trabalhar aos sábados deve ser morto por apedrejamento e que parece correto que um homem venda sua filha como escrava.
Ou seja: conforme recordam os especialistas sérios no assunto, a Bíblia não deve ser lida com olhares fundamentalistas e anacrônicos; trata-se de um importante conjunto de livros produzidos pela humanidade e entendido como sagrados por boa parte desta mesma humanidade — e precisam ser analisados e compreendidos dentro dos contextos históricos correspondentes às suas passagens.
Antes de tudo, vale lembrar que o Brasil é um Estado laico — ou seja, adota oficialmente a separação entre Estado e religião. Isso significa que a Bíblia ou qualquer outro texto ou preceito religioso não pode pautar ou influenciar as decisões do Estado. Ele deve garantir a liberdade religiosa, mas não pode permitir que uma crença se sobreponha aos direitos civis, sejam eles coletivos ou individuais.
Conhecido por sua postura de acolhimento aos homossexuais, o padre jesuíta americano James Martin, consultor do Vaticano e autor do livro Building a Bridge: How the Catholic Church and the LGBT Community Can Enter into a Relationship of Respect, Compassion, and Sensitivity, é editor do ‘Outreach’, um site que publica artigos contextualizando trechos bastante preconceituosos, à luz do entendimento atual, da Bíblia.
“O que consideramos hoje ‘comunidades LGBTQ’ não existia quando foram redigidos o Antigo e o Novo Testamento”, pontua ele, por e-mail, à BBC News Brasil. “Em algumas passagens, a Bíblia fala sobre a homossexualidade. E a condena. Vale lembrar que a Bíblia fala muito mais sobre aqueles que não se importam com os pobres.”
Martin ressalta que o livro sagrado aborda muitos temas hoje entendidos sob uma perspectiva diferente. “Por exemplo: nenhum de nós, espero, ainda acredita que alguém que tome o nome do Senhor em vão ou cometa adultério deva ser executado. Isto também está na Bíblia”, exemplifica o padre.
“Contudo, vemos essas condenações em seu contexto histórico”, ressalta ele, explicando que o mesmo deve ser feito com os trechos que condenam a homossexualidade. “É importante ver essas passagens em seu contexto, como veríamos as passagens sobre apedrejamento de pessoas que tomam o nome de Deus em vão”, compara.
Nas sete traduções da Bíblia consultadas para a reportagem — cinco para o português, uma para o inglês e uma para o esloveno — em nenhuma aparece o termo “perversos” tampouco a expressão “homossexuais passivos ou ativos”.
Na maior parte delas, o que se diz é que “os injustos” não herdarão o Reino de Deus. E em apenas duas das versões consultadas — a tradução do padre José Raimundo Vidigal e a Nova Tradução na Linguagem de Hoje — houve a opção pelo uso da palavra “homossexuais”, mas sem a menção da característica “passivos ou ativos”.
Tudo indica que Valadão usou a chamada Nova Versão Internacional, uma tradução evangélica da Bíblia, realizada para o inglês em 1991 e com a primeira versão em português publicada dez anos mais tarde. Muito utilizada em igrejas pentecostais, é uma versão que prima pela informalidade.
‘Abominação’ e morte
Professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, o historiador, teólogo e filósofo Gerson Leite de Moraes identificou, a pedido da reportagem, as passagens bíblicas em que a condenação à homossexualidade é mais clara.
Parte integrante tanto da Bíblia cristã quanto da Torá judaica, o Levítico é um livro provavelmente escrito no século 7 a.C. que traz um conjunto de instruções morais, legais, sociais e rituais. O capítulo 18 é todo dedicado ao comportamento sexual. Um dos versículo enfatiza: “Não deitarás com um homem como se deita com mulher; isto seria uma abominação”.
“Ou seja: há um contexto no Antigo Testamento em que a ideia de perversão vai sendo construída”, analisa Moraes.
Um pouco mais adiante, no capítulo 20, que trata sobre as penas daquilo que deveriam ser considerados crimes, há nova menção incisiva à homossexualidade. “Quando um homem deita com um homem como se deita com mulher, o que ambos fizeram é uma abominação; serão mortos, o sangue deles recai sobre eles”, diz o texto.
“Neste trecho a coisa fica pior ainda”, comenta o teólogo. “Há a determinação da morte imediata, da violência extrema. Como se aquilo precisasse ser de fato banido, se aquele comportamento precisasse ser retirado do meio daquele povo.”
Texto sagrado também tanto do Antigo Testamento cristão como da Torá judaica, o livro do Deuteronômio traz, tradicionalmente, o que seriam as palavras ditas por Moisés antes da conquista de Canaã. Pesquisadores apontam que a forma atual é resultado de um texto originalmente feito no século 8 a.C., adaptado no século seguinte e formatado novamente no século 6 a.C.
Ali há um trecho que parece até ser o embrião a ideia de que menino veste azul e menina veste rosa. Está no capítulo 22. “Uma mulher não usará vestes de homem; um homem não se vestirá com um manto de mulher, pois quem quer que assim proceda é uma abominação para o Senhor teu Deus”, afirma.
No Novo Testamento essa ideia persiste. Declaradamente celibatário, Paulo mencionou o tema em sua primeira carta aos Coríntios. No capítulo 6, quando ele enumera todos aqueles que, “injustos”, “não herdarão o Reino de Deus”, ele cita “os efeminados” e “os pederastas” na mesma lista que inclui devassos, idólatras, adúlteros, ladrões, beberrões e outros tratados como escória.
“Paulo inclui [a homossexualidade] em um pacote de coisas ruins, segundo ele. É a visão que ele tem a respeito da homossexualidade”, pontua Moraes.
O mesmo Paulo é autor da missiva aos Romanos. E, nela, está uma ideia que se tornou muito cara a religiosos conservadores, a de que não seria “natural” uma relação homoafetiva. Isto porque a carta, ao descrever como os chamados pagão seriam pecaminosos aos olhos divinos, diz que “Deus os entregou a paixões degradantes: as suas mulheres mudaram as relações naturais por relações contra a natureza; os homens, igualmente, abandonando as relações naturais com a mulher, inflamaram-se de desejos uns pelos outros, cometendo a infâmia de homem com homem e recebendo em sua pessoa o justo salário do seu desregramento”.
“Ele descreve essa questão como se fosse abandonar uma questão natural e diz que é um erro. E que há uma condenação também nesse sentido”, descreve Moraes.
A história de Sodoma
Há ainda uma outra passagem bíblica que explica a origem do termo “sodomia”, uma maneira extremamente pejorativa de se referir a relações homossexuais. O relato esta no capítulo 19 do Gênesis, o primeiro livro da Bíblia. Ali, está escrito que dois anjos foram enviados para a cidade de Sodoma — um local entendido como paradisíaco, que existia às margens do Mar Morto, no Oriente Médio.
De acordo com a tradição, a população de Sodoma costumava tratar mal os estrangeiros. Ló, vendo os dois forasteiros, decidiu acolhê-los em sua casa. Serviu uma refeição e os acolheu muito bem. Tarde da noite, sua casa foi rodeada pela população, que pedia a presença dos dois estrangeiros, “para que os conheçamos”.
(Na Bíblia, é comum o emprego do verbo “conhecer” como eufemismo para manter relações sexuais.)
Ló pede para que ninguém “faça mal” aos seus hóspedes e, de quebra, oferece “duas filhas que não conheceram homem” para que os raivosos “façam com elas o que lhes parecer bom”. Nem esse torpe argumento convenceu a multidão e os homens derrubaram Ló e se aproximaram para arrombar a porta.
Nisso, os dois hóspedes resgataram Ló e deixaram todos os demais cegos. Então orientaram o anfitrião que fugisse dali com toda a família. E Deus teria feito chover enxofre e fogo destruindo a cidade.
“É uma passagem delicada e geralmente utilizada por aqueles que condenam a questão da homossexualidade, inclusive daí fazendo brotar o conceito de sodomia”, reconhece Moraes. “Mas a passagem é muito complexa, não é simples assim. O que se faz é uma opção de leitura geralmente associada à uma questão.”
O teólogo comenta que, embora “pastores que advogam contra a homossexualidade interpretem a narrativa com uma tentativa de ato homossexual”, o que está descrito é “uma tentativa de estupro, uma violência”.
Ou seja, por essa perspectiva, Deus não castigou os habitantes de Sodoma e região porque eles eram adeptos da homossexualidade. Deus os castigou porque eles praticavam a violência extrema contra estrangeiros, com intenções de estupro coletivo. A orientação sexual não parece tão em destaque quanto a vontade de uma relação não-consensual e sádica.
“Há a ideia de perversão, de que a maldade estaria associada à prática homossexual. Mas aqueles homens eram tão maus que eles quiseram estuprar os estrangeiros que eles não sabiam que eram anjos”, destaca Moraes.
“Deus ficou tão irado que acabou destruindo aquela localidade”, acrescenta.
‘Ideologia de gênero’
Coordenador do Núcleo Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, o sociólogo e biólogo Francisco Borba Ribeiro Neto diz à BBC News Brasil que “todo grande livro sagrado, não importa qual religião ou civilização, é carregado de estruturas arquetípicas universais combinadas a particularidades culturais e dados históricos específicos”.
“O grande erro do fundamentalismo bíblico é tentar ler e interpretar diretamente os conteúdos da Bíblia, abstendo-se desse diálogo obrigatório com o contexto atual. A leitura correta do texto sagrado nunca deve buscar ‘o que ele diz’, mas sim “o que ele nos diz’, afirma Ribeiro Neto.
Ele ressalta que a consolidação inicial da doutrina cristão aconteceu “no período helenístico, quando a Roma Antiga, de modo muito similar a nosso tempo, experimentava uma profunda descrença de seus valores tradicionais, com a estratégia política do ‘pão e circo’, a exaltação do prazer e a abertura às novidades vindas de outras partes do império”.
“Por isso, o cristianismo se constituiu reforçando a necessidade de autocontrole em relação à instintividade em geral, e à sexualidade em particular, valorizando a família e o trabalho”, explica ele. “Esses elementos já estava presentes na cultura judaica e se mostraram importantes para a inculturação do cristianismo, numa posição de crítica e contestação à ordem romana estabelecida.”
Ribeiro Neto diz que, em seu desenvolvimento histórico, “a interpretação da doutrina cristão vai sempre acontecer num diálogo, nem sempre reconhecido explicitamente, com a mentalidade da época”. “Sendo a religião hegemônica no Ocidente, o cristianismo passou a ser usado nos discursos ideológicos de manutenção da ordem estabelecida, às vezes de forma adequada, outras vezes não”, afirma. “Esse discurso deve sempre consagrar um ‘normal’ e estigmatizar um ‘diferente’.”
Sob esse prisma, qual seria o problema dos LGBT? A chave está na capacidade de gerar filhos resultantes dessa união. “Rigorosamente falando, a doutrina cristã condena toda a sexualidade que não esteja associada ao amor e à doação de si ao outro. A exigência de uma ‘abertura para a vida’, a vinculação entre sexualidade e reprodução, deve-se a esse submissão da sexualidade ao dom de si, em oposição ao que seria apenas a posse do outro como instrumento de prazer”, contextualiza o pesquisador.
“Isso deveria valer para a condenação das relações extraconjugais e até de uma relação de dominação e violência por parte de um dos cônjuges, não só para as relações homoafetivas”, pondera Ribeiro Neto. Em sua análise, contudo, ele entende que a condenação da homossexualidade acaba criando “uma norma social que apresenta um ‘mal maior’” — e isso, de certa forma, “exime de culpa aqueles que cometem” os males entendidos como “menores”.
“Por exemplo: o homem é adúltero, trai sua esposa e não respeita outras mulheres. Mas isso não é considerado tão grave, pois ele não é homossexual…”, reflete, com ironia. “A publicidade e o consumismo oferecem frequentemente modelos contrários à construção da família, mas é como se fosse a ‘ideologia de gênero’ a grande responsável pela desagregação familiar.”
O termo ‘homossexual’
Sobre a leitura fundamentalista da Bíblia, padre James Martin diz que “muitas vezes as pessoas se esquecem de que o que prega a Igreja não é sobre um livro, mas sim sobre uma pessoa: Jesus”. “E essa pessoa nos mostrou o que significa estender a mão para aqueles que estão à margem”, comenta o sacerdote. “E não consigo pensar em outro grupo mais marginalizado da Igreja hoje do que as pessoas LGBTQ.”
Uma curiosidade histórica é que a Bíblia não usa o termo homossexualidade tampouco suas variáveis, como homossexualismo — palavra pejorativa e em desuso. E a explicação é justamente pelo fato de que as narrativas ditas sagradas são muito anteriores à nomenclatura atual.
“Especialistas situam o termo como originário do final do século 19”, diz Moraes. “A B´bilia trabalha essa temática em algumas passagens porque é uma temática presente desde sempre na história da humanidade, mas que nem sempre foi tratada como em nossos tempos.”
Segundo o filólogo e lexicógrafo Antônio Geraldo da Cunha (1924-1999) afirma em seu ‘Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa’, o termo “homossexual” só foi incluído em nosso vocabulário em 1899. Sodomita, por outro lado, sempre como sentido referente àquele adepto de “prática sexual anômala”, data do início da própria língua portuguesa, quando esta se derivou do latim.
O medo dos reacionários
O historiador, teólogo e filósofo Moraes explica que à medida que o cristianismo se tornou dominante no mundo ocidental e acabou sedimentando suas ideias de moralidade, “com, nesse processo todo, a leitura de que casamento é isso, família é isso, pai, mãe e filhos, casamento como junção de homem e mulher para a procriação, uma leitura da Igreja Católica”.
Junto a isso vem a ideia, presente no Novo Testamento, de que “o corpo da pessoa é visto como templo do Espírito Santo”, pontua o teólogo. “Um templo consagrado, que não pode ser poluído, maculado. E como a questão da homossexualidade está relacionada à abominação, desde o Antigo Testamento, então os crentes de maneira geral acabam trabalhando a ideia de uma ‘prática sodomita’.”
Para o especialista, portanto, aí reside o perigo: a construção de uma narrativa linear a partir da Bíblia. “Muitos religiosos acabam fazendo esse tipo de leitura”, ressalta.
“No Brasil de hoje há todo um ambiente político construeido para defender essas pautas ditas conversvadoras”, lembra ele. “É uma reação, por isso a ideia do reacionário, para preservar, conversar o modelo familiar da família ‘de margarina’, mesmo que na prática isso já nem seja mais majoritário no Brasil, em que quantas e quantas mulheres sustentam suas casas sem a presença masculina, em que quantos homens engravidam mulheres e vão embora.”
Para Moraes, isso ocorre porque “os reacionários se sentem amedrontados, com a sensação de que algo, para eles sagrado, está prestes a desmoronar”.
Fonte: BBC
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