- José Carlos Cueto
- BBC News Mundo
Na capital Helsinque, como no resto da Finlândia, edifícios e casas de altura baixa e média, quase sem torres ou arranha-céus, dominam uma vista inconfundivelmente nórdica.
Mas abaixo dessa paisagem, no subsolo, a Finlândia possui um mundo à parte.
Tomi Rask atua na Defesa Civil em Helsinque e descreve com orgulho a famosa rede de abrigos subterrâneos da cidade — um enorme espaço criado para os finlandeses lutarem contra invasões, desastres naturais ou outro tipo de emergência.
“Só em Helsinque temos cerca de 5,5 mil abrigos subterrâneos. Eles podem acomodar quase um milhão de pessoas e resistem a todos os tipos de ataques das armas mais modernas, inclusive nucleares”, disse Rask à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC).
A rede subterrânea não é sua única forma de defesa dos finlandeses contra catástrofes.
Por décadas, a Finlândia impôs um dos sistemas de recrutamento militar mais rigorosos do mundo, reuniu grandes estoques de petróleo, alimentos e remédios, e trabalhou na conscientização de seu povo sobre a necessidade de estar preparado para os “piores cenários”.
Esse nível de preparação é baseado, entre outros fatores, na desconfiança em relação ao seu vizinho ao leste, a Rússia, com a qual a Finlândia compartilha 1,3 mil km de fronteira, e que no passado invadiu e tomou territórios finlandeses.
Desde a Segunda Guerra Mundial, ambos os países vivem em relativa calma graças à neutralidade adotada pela Finlândia para garantir a paz com seu vizinho.
Mas tudo mudou com a guerra na Ucrânia. A Finlândia percebeu o perigo real e agora está acelerando sua adesão à aliança militar Otan, um movimento que gerou ameaças de Moscou.
São momentos de tensão para um país que há muitos anos se prepara para uma emergência.
Abrigos equipados
Vários dos milhares de espaços subterrâneos em Helsinque nem parecem um refúgio para tempos de guerra ou catástrofes.
Piscinas, pistas olímpicas, museus, parques infantis e restaurantes podem ser encontrados a dezenas de metros de profundidade nesses espaços gigantes.
No entanto, basta acionar o alarme para que uma piscina se torne um abrigo para uso em menos de 72 horas, incluindo o tempo necessário para instalar chuveiros de descontaminação, sanitários e fechar as portas para o exterior.
“Nossos abrigos têm um uso duplo. Nós os usamos para abrigar e armazenar mercadorias. Em tempos de guerra, podemos fornecer oxigênio filtrado, comida e água”, descreve Rask.
E se a ameaça se estender por mais semanas e meses, os abrigos também contam com um sistema interno para manter o fluxo de mercadorias e medicamentos.
Em Helsinque, esses espaços podem acomodar quase um milhão de pessoas.
“Considerando que há 630 mil habitantes na capital e capacidade para mais de 900 mil nos abrigos, há muito espaço para visitantes e não residentes em Helsinque”, diz Rask.
No início de 2020, a Finlândia tinha 54 mil abrigos de defesa civil com capacidade para 4,4 milhões de pessoas. A maioria está nas grandes cidades e são abrigos particulares de concreto armado em prédios individuais. Propriedades compostas por vários edifícios têm abrigos conjuntos.
Essa extensa rede começou a ser construída na década de 1980, em plena Guerra Fria, “com a ameaça de uma guerra nuclear” pairando sobre a cabeça de muitos, diz à BBC News Mundo Anu Lahtinen, especialista em história nórdica e finlandesa da Universidade de Helsinque.
Serviço militar rigoroso
Com o fim da Guerra Fria, o colapso do socialismo soviético e o retorno da estabilidade no continente europeu, o serviço militar obrigatório perdeu popularidade e muitos países o aboliram.
Hoje, apenas oito dos 28 países da União Europeia continuam a praticá-la, incluindo a Finlândia, onde a medida é popular.
Países como Finlândia, Estônia, Lituânia e Suécia possuem alistamento obrigatório porque “consideram seu vizinho [a Rússia] perigoso ou imprevisível”, afirma relatório da Finabel, uma entidade que promove a cooperação entre os exércitos nacionais da UE.
A Finlândia tem um dos sistemas de alistamento mais rigorosos do continente. No site do Ministério do Interior, a justificativa apresentada é o fato de que a Finlândia precisa se defender, pois não pertence a nenhuma aliança militar.
De acordo com a Constituição, todo finlandês é obrigado a participar da defesa nacional. Todo homem entre 18 e 60 anos pode ser chamado para prestar serviço militar. As mulheres podem se inscrever voluntariamente.
Durante o serviço, os recrutas recebem treinamento de alta qualidade e, após a conclusão, são convocados para a reserva das Forças de Defesa.
A Finlândia é um dos países da UE que mais gasta com suas Forças Armadas. Seu número total de recrutas é um dos maiores em proporção à sua população total — que é de pouco mais de 5 milhões.
Grandes reservas por lei
A Finlândia também se destaca por seu sistema de armazenamento de bens e recursos para uso em tempos de crise.
Todos os anos, representantes dos setores de alimentação, energia e telecomunicações se reúnem para analisar cuidadosamente as questões que afetam seus setores.
“São reservas caras para se manter. É um sistema altamente desenvolvido, onde as empresas privadas estão muito envolvidas. Estamos todos envolvidos nessa preparação da nossa sociedade”, explica à BBC News Mundo Johanna Ketola, especialista em políticas de segurança externa finlandesa do Instituto Finlandês de Assuntos Internacionais.
Mesmo antes da pandemia, o país já tinha um mandato para os produtores e importadores de medicamentos e alimentos manterem reservas entre três e 10 meses para abastecimento de emergência. E a chegada do vírus revelou algumas deficiências que o país agora está trabalhando para melhorar.
“Muitos dos nossos mecanismos de preparação não eram testados há anos, e na pandemia percebemos que nem tudo estava funcionando como deveria. Acho que foi um bom alerta do que precisamos melhorar para nos sentirmos mais seguros”, diz Lahtinen.
“Mas, definitivamente, depois da covid muitos apreciam mais nosso investimento nessa preparação.”
Ensinando a ‘estar preparado’
Desde a infância, os finlandeses recebem aulas sobre a necessidade de estarem preparados e não deixar nada ao acaso. É uma mentalidade forjada pela situação geográfica precária do país e pelos traumas de guerra do passado.
“Se você nos comparar com outros países nórdicos, temos uma situação logística e geográfica muito diferente”, diz Ketola.
“A Finlândia está muito isolada. Nossos suprimentos passam pelo Mar Báltico, mas quando a instabilidade aumenta na área, temos problemas. As estradas para a Europa continental passam pela Suécia e são incrivelmente longas.”
Isso justifica em parte essa preparação ao mais alto nível. Mas a ameaça latente da Rússia é um componente vital dessa preocupação.
“De certa forma, a história da Finlândia está ligada a um vizinho do leste (Rússia) que a ameaça frequentemente”, diz Lahtinen.
Entre 1939 e 1944, a Finlândia e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) travaram duas guerras praticamente consecutivas, conhecidas como Guerra de Inverno e Guerra da Continuação. Em ambos os casos, os soviéticos venceram e conseguiram tomar parte do território finlandês.
“O sentimento geral desses conflitos é que estávamos sozinhos e isso nos deixou traumatizados”, diz Ketola.
“Por isso é importante estar preparado, com tudo isso que está acontecendo agora com a adesão à Otan”, acrescenta Lahtinen.
A Finlândia solicitou a adesão à Otan junto com a Suécia em 18 de maio.
“Após a invasão da Ucrânia pela Rússia, a percepção de segurança dos finlandeses mudou muito rapidamente. Nesta situação volátil, não queremos mais ficar sozinhos”, diz Ketola.
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