- Author, Alessandra Corrêa
- Role, De Washington para a BBC News Brasil
Um tratamento de fertilidade usado por milhões de famílias está no centro de um debate que vem sendo considerado a nova frente de batalha dos movimentos antiaborto nos Estados Unidos.
Enquanto vários Estados americanos já adotam ou discutem leis que garantem a embriões e fetos dentro do ventre da gestante as mesmas proteções legais dadas a uma pessoa, duas decisões recentes colocam em foco o status de embriões gerados por fertilização in vitro e ainda não implantados no útero.
Neste mês, a Convenção Batista do Sul, principal denominação protestante do país, aprovou uma resolução que condena tecnologias como fertilização in vitro, que frequentemente “resultam na destruição de embriões humanos”, já que os excedentes muitas vezes são descartados.
Em fevereiro, o tema já havia ganhado destaque nacional quando a Suprema Corte do Alabama, mais alta instância da Justiça daquele Estado, decidiu que embriões congelados em tubos de ensaio devem ser considerados crianças perante a lei, levando ao fechamento temporário de clínicas de fertilização in vitro.
O debate nos EUA ocorre em um momento em que a questão do status legal de embriões e fetos também entrou em pauta no Brasil, em meio à discussão sobre o projeto de lei que equipara o aborto a partir de 22 semanas de gestação a homicídio, mesmo em casos de estupro.
Em vídeo divulgado nas redes sociais nesta semana, o autor do projeto, deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), comparou sua proposta com o Estatuto do Nascituro: “É um projeto ainda light, não é o Estatuto do Nascituro, que os pró-vida, que são católicos e evangélicos de todo Brasil, esperariam que fosse aprovado”.
Com essa comparação, Cavalcante chamou a atenção para aquele projeto de lei, apresentado inicialmente em 2007, que daria proteção jurídica ao nascituro, descrito como “ser humano concebido, mas ainda não nascido”, incluindo os concebidos in vitro, e tornaria o aborto crime hediondo.
A fertilização in vitro não é o foco específico da discussão atual no Brasil. Nos Estados Unidos, porém, analistas e ativistas enxergam a rejeição à técnica como uma progressão natural do movimento antiaborto e de leis baseadas na ideia de que a vida começa no momento da concepção (na união do espermatozoide com o óvulo).
“Há muito tempo o movimento antiaborto se opõe à fertilização in vitro”, diz à BBC News Brasil a historiadora do direito Mary Ziegler, professora de Direito da Universidade da Califórnia, em Davis. “Mas tem havido mais esforço para dar prioridade [a esse tema] ultimamente.”
Ziegler, que é autora de diversos livros sobre a história jurídica do debate sobre o aborto nos Estados Unidos, diz que não se surpreenderá se o debate em torno da fertilização in vitro começar a ganhar mais atenção em outros países, como o Brasil.
“Acho que o Brasil é provavelmente o país com o paralelo mais próximo dos Estados Unidos em termos de política partidária do aborto e no sentido de pegar emprestadas estratégias em torno do tema”, opina.
Apoio popular e dilema moral
Calcula-se que cerca de 2% dos nascimentos nos Estados Unidos a cada ano sejam fruto de gestações via fertilização in vitro.
Nessa técnica de reprodução assistida, é comum que sejam extraídos o máximo possível de óvulos de uma mulher, que são então fertilizados por espermatozoides em laboratório.
Múltiplos embriões costumam ser gerados nesse processo, e os que não são transferidos ao útero podem ser congelados para uso posterior, destruídos ou doados, inclusive para pesquisas médicas.
Ao contrário do aborto, que divide a sociedade americana, a fertilização in vitro é extremamente popular no país, mesmo entre religiosos e evangélicos.
Em pesquisa da empresa YouGov a pedido da CBS News em fevereiro, 86% defendem a legalidade do tratamento.
Outro levantamento, feito pela consultora Kellyanne Conway, que foi conselheira de Donald Trump, revelou apoio de 83% dos evangélicos e 78% dos que se identificam como “pró-vida” ao tratamento.
No entanto, ao mesmo tempo em que a maioria dos americanos diz apoiar a técnica, pesquisa do instituto Pew Research Center indica que 35% concordam que “a vida humana começa na concepção, portanto um embrião é uma pessoa com direitos”.
Muitos dos que se opõem ao aborto não veem ligação entre o procedimento e a fertilização in vitro, encarada como uma tecnologia cujo objetivo é gerar vidas e que ajuda inúmeros casais com problemas de fertilidade a ter filhos e aumentar a família.
Mas o destino dos embriões excedentes sempre foi um ponto ressaltado por opositores da técnica, que apontam para um dilema moral diante da crença de que a vida começa no momento da concepção.
Segundo Ziegler, antes havia no movimento antiaborto o sentimento de que destacar essa questão poderia prejudicar a luta para derrubar Roe versus Wade, a decisão de 1973 que garantia o direito constitucional ao aborto nos Estados Unidos.
Esse objetivo foi atingido em 2022, quando a Suprema Corte do país anulou aquela decisão, deixando cada Estado livre para regular o aborto como quiser, o que resultou na proibição quase completa do procedimento em várias partes do país.
“(Com isso) aquela preocupação estratégica (do movimento antiaborto sobre dar destaque à fertilização in vitro) parece não estar mais presente”, observa Ziegler.
Impacto da decisão no Alabama
Na esteira da decisão da Suprema Corte americana em 2022, proliferaram no país projetos de lei que descrevem fetos e embriões como “crianças que ainda não nasceram” e dão a eles os mesmos direitos legais reservados a pessoas, endurecendo as restrições ao aborto.
Diferentemente do Brasil, onde o aborto só é permitido em caso de estupro, risco à vida da gestante ou se o feto for anencéfalo, nos Estados Unidos cada Estado tem suas prórias leis sobre o procedimento.
O Alabama, no sul do país, é um dos que tem as leis mais rígidas, proibindo o aborto em qualquer estágio da gravidez, mesmo em casos de estupro ou incesto, com exceção apenas quando houver risco grave à saúde da gestante.
A decisão da Suprema Corte do Estado sobre fertilização in vitro, no início deste ano, teve origem em processos movidos por famílias cujos embriões congelados foram acidentalmente destruídos na clínica onde estavam armazenados.
Os juízes decidiram que uma lei de 1872, segundo a qual pais podem processar pela morte de filhos menores de idade, também se aplica a nascituros, inclusive “crianças extrauterinas”.
“A questão central apresentada (…) é se a lei contém uma exceção não escrita para crianças extrauterinas, isto é, crianças em gestação que estão localizadas fora de um útero biológico no momento em que são mortas”, disse o juiz Jay Mitchell. “A resposta a essa pergunta é não.”
Clínicas de fertilização in vitro no Estado suspenderam as atividades, deixando famílias que já haviam investido milhares de dólares sem saber se poderiam continuar o tratamento. A presidente da Sociedade Americana de Medicina Reprodutiva, Paula Amato, disse que a decisão ia “contra a realidade médica”.
“O tribunal decidiu que um óvulo fertilizado congelado, armazenado num congelador de uma clínica de fertilidade, deve ser tratado como equivalente legal a uma criança ou um feto em gestação no útero”, afirmou. “Os membros do tribunal podem vê-los como equivalentes, mas a ciência e o bom senso nos dizem que não são.”
Semanas depois, a Câmara e o Senado do Estado, onde os republicanos são maioria, aprovaram às pressas uma lei que protege pacientes, servidores de saúde e clínicas de fertilização in vitro de responsabilidade legal, e várias delas retomaram os tratamentos.
Mas a nova lei é uma solução temporária, já que não anula a opinião da Suprema Corte de que embriões congelados devem ser tratados legalmente como pessoas e deixa várias dúvidas sobre possíveis ramificações legais, que poderiam ter impacto ao redor do país.
As famílias que haviam movido o processo inicial argumentam que a nova lei viola seus direitos constitucionais e pedem que seja anulada, e o caso poderá chegar novamente à Suprema Corte do Alabama.
O voto na Convenção Batista do Sul
A atenção gerada pela decisão no Alabama inspirou líderes da Convenção Batista do Sul a colocarem o tema em pauta em seu encontro anual, que reuniu neste mês mais de 10 mil delegados, chamados de “mensageiros”, na cidade de Indianapolis.
“Eles viram que era um momento propício para trazer essa questão à atenção [dos fiéis]”, avalia Ziegler. “Ambos os episódios estão intimamente conectados.”
Enquanto a maioria dos “mensageiros” rejeitam o aborto, muitos são favoráveis à fertilização in vitro, e durante o encontro alguns deram testemunhos emocionados sobre como o tratamento os ajudou a ter filhos.
No final, uma resolução denominada “Sobre as realidades éticas das tecnologias reprodutivas e a dignidade do embrião humano” foi aprovada por ampla maioria.
A resolução não se opõe especificamente à criação de embriões pela técnica, mas sim ao fato de que muitos são destruídos.
“Estimativas sugerem que entre 1 milhão e 1,5 milhão de seres humanos estão atualmente armazenados em congeladores criogênicos em estado embrionário nos Estados Unidos, com a maioria inquestionavelmente destinada à eventual destruição”, diz um trecho.
Nesse contexto, os fiéis são convocados a “reafirmar o valor incondicional e o direito à vida de todos os seres humanos, incluindo aqueles em estágio embrionário, e somente utilizar tecnologias reprodutivas condizentes com essa afirmação”.
O texto ressalta que “todas as crianças, quaisquer que sejam as circunstâncias da sua concepção, são um presente de Deus” e encoraja os fiéis a “considerar a adoção de embriões congelados para resgatar aqueles que eventualmente serão destruídos”.
Também demonstra solidariedade com “casais diagnosticados com infertilidade” e os incentiva a “considerar as implicações éticas das tecnologias de reprodução assistida”.
Apesar de a resolução não proibir os membros da Convenção Batista do Sul de usarem fertilização in vitro, sua passagem representa o início de uma discussão mais profunda sobre o tema entre os fiéis.
Segundo a presidente do comitê de resoluções, Kristen Ferguson, “(o voto) é o primeiro passo” e simplesmente abre o debate entre os fiéis sobre essa “questão complexa”.
Termômetro do sentimento evangélico
Com cerca de 13 milhões de membros espalhados por quase 50 mil congregações, a Convenção Batista do Sul tem enorme influência política nos Estados Unidos e é considerada um termômetro do sentimento evangélico no país.
Nesse contexto, analistas afirmam que a resolução, aprovada poucos meses após a decisão no Alabama, pode indicar uma maior abertura nesse grupo ao argumento de que embriões, mesmo fora do útero, devem receber as mesmas proteções que pessoas, em uma vitória para o movimento antiaborto.
“Pode assinalar o início de uma ampla virada na direita contra a fertilização in vitro, uma questão que muitos conservadores sociais vêem como a próxima fronteira do movimento ‘pró-vida'”, disse o jornal Politico.
O foco na fertilização in vitro coloca o Partido Republicano na posição delicada de, em pleno ano eleitoral, manter sua posição “pró-vida” ao mesmo tempo em que demonstra apoio ao tratamento de fertilidade, usado ou favorecido pela maioria de seus eleitores.
Ao mesmo tempo, os democratas, que vêm coletando sucessos em eleições estaduais ao defender o acesso ao aborto, tentam forçar os republicanos a se posicionarem contra medidas que defendem a fertilização in vitro, para demonstrar o contraste entre as posições dos dois partidos.
Em meio a essa briga política, propostas dos dois lados para proteger o acesso à técnica foram foram apresentadas nos últimos dias no Congresso americano, mas acabaram bloqueadas.
Em maio, a comissão de ética e liberdade religiosa da Convenção Batista do Sul enviou uma carta ao Senado americano mencionando as “graves preocupações éticas” da fertilização in vitro.
“Conclamamos os legisladores a desenvolver e implementar um sistema de supervisão federal que proteja e informe as mulheres e garanta que os embriões sejam tratados com cuidado, mesmo enquanto nos opomos à prática geral da fertilização in vitro”, diz o texto.
Para Ziegler, apesar das divisões, “os principais grupos antiaborto (nos Estados Unids) estão agora muito mais unidos na oposição à fertilização in vitro do que antes”.
“O movimento antiaborto defende muitas posições impopulares. E a questão sempre foi se vai mudar a opinião das pessoas ou se vai tentar impor suas prioridades, mesmo que não haja apoio”, observa Ziegler.
“Acho que a tendência, especialmente com a fertilização in vitro, tem sido a de pressionar por [suas] posições, independentemente de serem populares ou não”, afirma.
Fonte: BBC
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