- Thais Carrança – @tcarran
- Da BBC News Brasil em São Paulo
Mais de 10 milhões de brasileiros caem na pobreza por ano devido a gastos com saúde, segundo estudo do Banco Mundial. Os medicamentos são o maior peso nesta despesa, representando 84% do dispêndio com saúde feito do próprio bolso pelas famílias mais pobres do país.
Entre 2013 e 2019, a proporção de usuários do SUS (Sistema Único de Saúde) que não conseguiram nenhum medicamento no serviço público de saúde aumentou 7,8 pontos percentuais, para 44,2%.
Nesse mesmo período, a parcela de pessoas que não conseguiram nenhum medicamento através do programa Farmácia Popular cresceu 5,1 pontos, para 74,1%, mostra outro estudo, de pesquisadores da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), Fundação Osvaldo Cruz, UFPel (Universidade Federal de Pelotas), Griffith University, FGV (Fundação Getulio Vargas) e Harvard.
Estes problemas podem se agravar a partir de 2023, alertam os pesquisadores, diante do corte pelo governo federal de 59% no orçamento do Farmácia Popular, programa que atende mais de 21 milhões de brasileiros, com remédios gratuitos ou a baixos preços.
O corte de verbas foi revelado pelo jornal O Estado de S. Paulo, a partir de Nota de Política Econômica elaborada pelo Grupo de Economia do Setor Público da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Após a repercussão negativa às vésperas da eleição, o governo federal indicou a intenção de recompor o orçamento do Farmácia Popular para 2023 e incorporou cinco novos medicamentos ao programa.
“Sem acesso a medicamentos, há primeiro um impacto econômico para a renda da população, que precisa gastar mais dinheiro. Isso gera empobrecimento, o que piora a situação de saúde”, observa Adriano Massuda, médico sanitarista, professor da FGV e um dos autores do estudo que mostrou a queda no acesso a medicamentos através do SUS entre 2013 e 2019.
“Do ponto de vista sanitário, pode haver um agravamento dos problemas de saúde, gerando internações, que representam uma despesa adicional ao SUS. Também gera um aumento de mortes que poderiam ser prevenidas. É um efeito cascata”, diz o membro do FGV-Saúde.
Além da crescente dificuldade de acesso a remédios no SUS, o país também enfrentou este ano falta de medicamentos nos hospitais e farmácias, e de insumos na indústria farmacêutica.
Levantamento feito em julho pelo CRF-SP (Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo) mostrou que, naquele momento, 98% dos estabelecimentos farmacêuticos consultados enfrentavam dificuldade de abastecimento, com medicamentos básicos como amoxicilina, azitromicina, dipirona, ibuprofeno e paracetamol entre os que estavam em falta.
Segundo o CRF-SP, o problema foi causado por instabilidades nas cadeias farmacêuticas, devido aos lockdowns na China decorrentes da covid-19 e à guerra da Ucrânia, e o abastecimento já tem se normalizado desde então.
Para o conselho, porém, a situação revela a necessidade de o país investir na sua indústria farmacêutica, reduzindo a dependência de importações.
Procurado pela BBC News Brasil, o Ministério da Saúde não respondeu a pedido de posicionamento.
Em média, os gastos com saúde consomem 13% do orçamento das famílias brasileiras, mostra estudo do Banco Mundial, a partir da análise de dados da POF (Pesquisa de Orçamentos Familiares) 2017-2018 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
A POF é uma pesquisa que mapeia a composição do gasto das famílias. Ela é atualizada a cada seis ou sete anos pelo IBGE e é usada, por exemplo, como referência para a cesta de consumo do IPCA e INPC, os índices oficiais de inflação do país. O estudo do Banco Mundial usa a POF mais recente.
Excluindo despesas com planos de saúde privados, o gasto com saúde consome em média 10,5% do orçamento das famílias — chegando a 11,6% para as famílias mais pobres, comparado a 7,7% para as famílias mais ricas.
“Os mais ricos gastam mais com plano de saúde e os mais pobres, mais com remédio”, observa Edson Correia Araújo, economista sênior do Banco Mundial e um dos autores do estudo, ao lado de Bernardo Dantas Pereira Coelho.
Em média, os medicamentos representam 46% do gasto com saúde das famílias brasileiras. Para os mais pobres, o peso é de 84%, quase três vezes a média das famílias mais ricas (29%).
Segundo Araújo, o peso elevado dos medicamentos no gasto com saúde das famílias é um fenômeno global e dois aspectos principais explicam isso.
“O primeiro é a desregulamentação, a venda de remédios sem receita. O outro é a baixa cobertura dentro do setor público”, diz o economista sênior do Banco Mundial.
“É claro que o Brasil avançou um pouco com o Farmácia Popular, mas sabemos que há ainda um grande vazio a ser preenchido em termos de garantir a oferta e o acesso a medicamentos.”
Os especialistas do Banco Mundial fazem, então, duas análises: se as despesas com saúde representam para as famílias um “gasto catastrófico”, isto é, uma despesa que compromete outros gastos fundamentais, como a compra de alimentos; e se esse gasto leva as famílias abaixo da linha de pobreza.
Analisando os dados da POF, os pesquisadores observam que um terço da população brasileira (33,4%) gasta mais de 10% do orçamento familiar com saúde. Entre os mais pobres, 37% superam esse patamar, considerado de “gasto catastrófico”, comparado a 8% entre os mais ricos.
Para avaliar o empobrecimento, os pesquisadores analisam se o gasto com saúde leva a capacidade de consumo da família abaixo de 60% da média nacional.
O que eles encontraram é que, anualmente, 10 milhões de brasileiros são empurrados para a pobreza devido aos gastos com saúde, o que representa 4,9% da população do país, acima da média mundial (2,5%) e de países da América Latina e Caribe (1,8%).
‘Austeridade fiscal reduziu acesso a medicamentos’
Se o Farmácia Popular — criado em 2004, durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e ampliado em 2011 sob Dilma Rousseff — representou um avanço no acesso a medicamentos, as restrições orçamentárias impostas pelo Teto de Gastos (Emenda Constitucional 95/2016) têm reduzido esse acesso através do SUS em anos recentes, mostra o estudo da UFSC, Fundação Osvaldo Cruz, UFPel, Griffith University, FGV e Harvard.
Os pesquisadores utilizaram as edições de 2013 e 2019 da PNS (Pesquisa Nacional de Saúde) do IBGE, analisando dados de indivíduos que tiveram medicamentos prescritos em atendimento de saúde realizado no SUS nas duas semanas anteriores à entrevista.
“Escolhemos esses dois momentos porque, entre 2013 e 2019, tivemos muitas mudanças na gestão do sistema de saúde, várias trocas de ministros e, sobretudo, a adoção em 2016 de políticas de austeridade fiscal de longo prazo que impactaram o orçamento federal para a saúde, não só em termos de volume de recursos, mas também da maneira como esses recursos são alocados, com grande aumento das despesas por meio de emendas parlamentares”, explica Adriano Massuda, da FGV e um dos autores do estudo.
Preocupados com a forma como a mudança no financiamento do SUS poderia impactar a oferta e a prestação de serviços, os pesquisadores analisaram especificamente o acesso a medicamentos, um dos serviços prestados pelo sistema público de saúde.
Analisando pesquisas anteriores, até 2013, eles observaram que, por conta das políticas públicas, houve um aumento do percentual da população que conseguiu acesso a medicamentos pelo Farmácia Popular e assistência direta do SUS, e uma redução do percentual da população que precisava arcar com medicamentos com recursos próprios, relata o pesquisador.
“O sistema de saúde tem três grandes funções: melhorar a situação de saúde da população; atender as necessidades de saúde que a população apresenta; e garantir proteção financeira, ou seja, fazer com que as pessoas não precisem gastar dinheiro do próprio bolso”, observa Massuda.
“O que nós encontramos é que, desde 2013, houve um aumento nas despesas diretas da população com medicamentos. E, pelos dados, a população justifica que precisou comprar porque não conseguiu acessar esses medicamentos por meio do SUS e do Farmácia Popular”, afirma o pesquisador.
Segundo o estudo, entre 2013 e 2019, a proporção de pessoas que não conseguiu nenhum medicamento no SUS aumentou 7,8 pontos percentuais e na Farmácia Popular, 5,1 pontos. Ao mesmo tempo, a proporção de pessoas que reportou ter comprado algum ou todos os medicamentos prescritos subiu de 49,4% para 56,4%.
‘Estamos diante de um enfraquecimento do SUS’
“Estamos diante de um processo de enfraquecimento do SUS. Isso afeta a população que mais precisa dele, que é a população que mora em regiões mais pobres, dos grupos populacionais mais vulneráveis, que têm mais dificuldade de acessar os serviços de saúde e ficam mais expostos”, observa o professor da FGV.
Segundo Massuda, essa situação se agrava a partir de 2016, com o aumento do financiamento do SUS através de emendas parlamentares.
“Quanto maior o percentual executado por meio de emenda parlamentar, menos recursos para áreas programáticas. Menos sobra para áreas estratégicas do Ministério da Saúde, como atenção básica, urgência e emergência. O Ministério da Saúde tem menos capacidade de dirigir o recurso para essas áreas de necessidade”, acrescenta.
Segundo o pesquisador, o corte de 59% no orçamento do Farmácia Popular em 2023 tende a agravar a dificuldade de acesso da população a medicamentos.
Conforme a Nota de Política Econômica da UFRJ, a verba para o programa caiu de R$ 2,04 bilhões no orçamento de 2022, para R$ 804 milhões no projeto de 2023 enviado ao Congresso no final de agosto — um corte de R$ 1,2 bilhão.
Edson Correia Araújo, do Banco Mundial, concorda com essa avaliação, mas defende que seria necessário também um redesenho do programa.
“Sem dúvida, o programa precisa de uma reformulação, pois muita gente está tendo um gasto com medicamentos que não está sendo protegido pelo Farmácia Popular. Nosso estudo é uma forma de ajudar a fazer esse redesenho, de forma a garantir que quem está caindo abaixo da linha da pobreza hoje seja protegido”, defende o economista.
Lockdown na China, guerra na Ucrânia e desabastecimento no Brasil
Para além desse quadro estrutural de mudança no financiamento do SUS, o país passou esse ano por uma situação conjuntural de desabastecimento de medicamentos, que atingiu hospitais e farmácias públicos e privados, além da própria indústria farmacêutica.
Além da falta de medicamentos registrada em 98% dos estabelecimentos farmacêuticos verificada em julho, o CRF-SP identificou em agosto que, entre indústrias, distribuidoras e importadoras de insumos farmacêuticos, 56% relatavam desabastecimento de IFAs (insumo farmacêutico ativo), 17% de excipientes (ingredientes inativos) e 12,5% de insumos para manutenção de máquinas.
“Essa falta iniciou-se em decorrência primeiro do lockdown na China, depois da guerra na Ucrânia”, diz Adriano Falvo, secretário-geral do CRF-SP, lembrando que o Brasil importa 90% dos IFAs para vacinas e medicamentos da China e Índia. A produção nacional só alcança 5% dos princípios ativos de medicamentos.
Segundo Falvo, a falta de medicamentos atingiu antibióticos, anti-histamínicos, antitussígenos, analgésicos e antitérmicos, mas já há uma estabilização gradual da produção.
Para Massuda, da FGV, ainda que tenha sido fruto de um problema global, o desabastecimento revela a falta de gestão do Ministério da Saúde sobre o complexo industrial da saúde no Brasil.
“Cabe ao governo federal se preocupar com isso, fazer um monitoramento dos insumos necessários e de como está a capacidade de produção. Não se preocupar só com o abastecimento final na ponta, mas como estamos produzindo insumos que são essenciais e não podem faltar”, diz Massuda.
“Há uma falta de monitoramento, de planejamento, de acompanhamento por parte do Ministério da Saúde da produção desses insumos.”
O representante do CRF defende que o Brasil deve buscar a autossuficiência em medicamentos de alto consumo.
“O custo dos insumos farmacêutico ativos na China e Índia é muito mais baixo. A produção no Brasil, mesmo com isenções de impostos, teria custo mais elevado”, observa Falvo.
“Mas, diante do que passamos, de uma pandemia que foi extremamente traumática para o país, não só em decorrência das mortes, mas também pelo desabastecimento de medicamentos, está na hora de o Ministério da Saúde começar a pensar na autossuficiência de medicamentos de alto consumo, como anti-hipertensivos e antidiabéticos, de forma a evitar uma falta como essa, que leva ao comprometimento da saúde da população.”
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