“Sempre fui visto na família como uma espécie de professor excêntrico e maluco. E, de repente, virei um pirata e um herói”.
Essas palavras dão uma ideia da façanha conquistada por Jan Glazewski, que, aos 66 anos, descobrira um “tesouro” enterrado por seus antepassados usando um mapa desenhado à mão pelo seu pai.
Esse tesouro – prataria, joias e outras preciosidades da família – tinha sido enterrado em plena Segunda Guerra durante uma fuga, para evitar que caísse nas mãos de tropas invasoras.
O mapa fora desenhado a partir da memória pelo pai de Jan, 50 anos depois do tesouro ser enterrado. Ou seja, não havia garantia alguma de que ele pudesse de fato ser encontrado.
E Jan teve de enfrentar percalços bem difíceis mesmo antes de partir em busca do tesouro.
Essa incrível jornada é relatada em um episódio da terceira temporada do podcast Que História!, da BBC News Brasil. Ele pode ser ouvido nas principais plataformas de podcast, como Spotify e Apple Podcasts, e no canal da BBC News Brasil no YouTube.
Jan Glazewski nasceu e cresceu na África do Sul, perto da Cidade do Cabo.
Seus pais eram poloneses que tinham fugido de sua cidade natal no início da Segunda Guerra Mundial, pouco após a Alemanha invadir a Polônia, em setembro de 1939.
“A fazenda do meu avô, Adam, ficava no leste da Polônia, perto da fronteira com a União Soviética. Os alemães atacaram pelo oeste, e já havia refugiados chegando de lá. O clima tava bem tenso”, contou Glazewski ao programa Outlook da BBC.
“Meu pai tinha se casado recentemente. Ele, minha mãe e três irmãos dele viviam na fazenda do meu avô. Num almoço de domingo, um dos meus tios estava ouvindo a BBC. Eles entendiam inglês, e ouviram que, enquanto os alemães invadiam pelo oeste, os soviéticos começaram a invadir a Polônia pelo leste e estavam a dez quilômetros da fronteira. Rapidamente, minha família decidiu fugir. Levaram apenas o essencial, entraram no carro e foram embora. Mas antes de partir, enterraram as relíquias e a prataria da família em uma floresta, a cerca de 150 metros da casa principal.”
Pouco depois, o Exército soviético ocupou o leste da Polônia, enquanto a Alemanha ocupava o resto do país, como parte de um acordo secreto entre Adolf Hitler e Josef Stalin. Os pais de Jan foram para o Oriente Médio e se mudaram, em definitivo, para a África do Sul em 1947. A essa altura, a família tinha crescido, com três meninas e um menino, que tinha hemofilia e morreu jovem.
Jan nasceu em 1953. Quando ele tinha sete anos, perdeu a mãe e seu pai se casou novamente com uma mulher que também tinha filhos. Às vezes, sentado à mesa de jantar agora bastante lotada, Jan ouvia seu pai falar sobre a prataria da família enterrada a milhares de quilômetros de distância, na Europa.
Então, um dia, Jan foi chamado ao escritório de seu pai para receber uma missão importante.
“Eu tinha acabado de começar meu trabalho na Universidade da Cidade do Cabo e estava fazendo minha visita mensal para jantar com meu pai e minha madrasta. Eu já tinha enchido o saco do meu pai algumas vezes para dar mais detalhes sobre onde esse tesouro tinha sido enterrado. E ele estava ficando velho e doente. Mas dessa vez, ele me levou pro escritório e disse ‘aqui está o mapa, e aqui estão algumas instruções que escrevi na minha velha máquina de escrever’. Ele me deu o mapa e essas instruções, e eu simplesmente os enrolei, e coloquei no bolso. Voltamos pra mesa, jogamos conversa fora e depois fui embora.”
Isso foi em 1989, e o pai de Jan morreria três anos depois. O mapa e as instruções, Jan guardou em uma caixa, e não pensou mais nisso, mesmo porque tinha coisas bem mais importantes passando por sua cabeça.
“1989 foi um ano tumultuado para mim e para a África do Sul”, disse Glazewski. “Foi o auge do estado de emergência, um ano antes da libertação de Nelson Mandela. Eu tava com esse emprego novo, preparando palestras e querendo causar uma boa impressão. Mas eu estava tendo de lidar com problemas de saúde.”
E foi por causa de um problema de saúde que Jan só voltaria a se dedicar à busca do tesouro da família anos mais tarde.
Logo que nasceu, Jan tinha sido diagnosticado como hemofílico. É uma condição geralmente herdada, em que o corpo da pessoa não produz ou produz apenas parcialmente uma proteína com um papel importante na coagulação do sangue. Sem essa proteína, o sangue não coagula, e o hemofílico está sob constante risco de hemorragias, de perda de sangue, que muitas vezes pode ser fatal.
“O grande problema é a hemorragia interna. Quando eu era criança, quando brincava, jogava futebol, tinha hemorragias internas nos joelhos. Isso danificava minhas juntas, elas esfregavam umas nas outras e isso doía muito. Por isso, tive de colocar implantes metálicos nos dois joelhos, e mais, tarde, nos tornozelos e cotovelo esquerdo. Hoje, causo problemas nos aeroportos, de tanto metal que tenho dentro de mim!”
“Uma vez, quando era garoto, fui a um dentista. Ele deve ter atingido uma veia quando me injetou anestesia. Na manhã seguinte, o meu queixo tava todo inchado e fui levado às pressas para o hospital. Outra vez, eu passei um dia tentando aprender a andar de bicicleta. Demorou, mas aprendi. Na manhã seguinte, acordei e meu saco escrotal estava enorme e todo azul. Eu tinha oito anos. De novo fui levado às pressas pro hospital.”
Por causa da hemofilia, Jan passou a infância e adolescência sem poder praticar esportes, evitando brincadeiras físicas e entrando e saindo de hospitais. Mas o legado mais perigoso da condição ainda estava por vir, na forma de um vírus assustador que estava causando mortes e muita ansiedade no mundo inteiro, o HIV.
“Em 1985, eu morava com minha namorada e ela mencionou essa nova doença, que os jornais sensacionalistas diziam atingir principalmente homossexuais, dependentes de drogas injetáveis e hemofílicos. Resolvi então fazer um teste de HIV, para tranquilizar minha namorada.”
Hemofílicos recebiam constantes transfusões de sangue, e havia o risco considerável de o sangue recebido estar contaminado com o HIV.
Foi o que aconteceu com Jan GLazewski. Ele foi um dos primeiros a serem diagnosticados com Aids na África do Sul. E, na época, receber esse diagnóstico era como ser avisado de que morte estava batendo na porta e que você passaria a ser visto pela sociedade como um pária.
“Lembro de quando contei pro meu pai. Ele nem tinha registrado direito o que eu falei, e disse: ‘Acabei de ler na revista Time que incendiaram a casa de uma família de hemofílicos porque eles eram HIV positivos’. Foi um momento muito difícil. Eu mantive isso em segredo, até onde dava. O mais difícil foi a solidão de ter que lidar com isso sozinho.”
Um especialista da unidade dedicada a HIV do principal hospital da Cidade do Cabo deu a Jan quatro anos de vida. Ele mergulhou no trabalho, se tornou uma das grandes autoridades em legislação ambiental e chegou a redigir cláusulas da Constituição da África do Sul ligadas à proteção do meio ambiente.
E vários anos após a morte de seu pai, e finalmente entrando em um período mais estável e tranquilo na sua vida, Jan voltou a pensar no mapa desenhado à lápis que ele tinha guardado numa caixa.
“Meu pai desenhou a entrada na fazenda a partir do vilarejo, Chmielowa. É desses vilarejos rurais do leste europeu, bem pequenos, em que muitas pessoas ainda mantêm hábitos e costumes antigos. Então no desenho há a porteira, a cocheira, o celeiro, e no meio está a casa principal, ao lado de um quintal. Nas instruções, meu pai descreve o porão, onde guardavam legumes e vegetais. E no desenho, há uma linha pontilhada que sai do ponto em que dois muros em volta do quintal se encontram, e um desses muros começa nesse porão. A linha pontilhada cruza, por cerca de 100 metros, uma área que meu pai chamou de ‘plantação’. ‘Desça a encosta até onde começa a floresta’, dizem as instruções. ‘É ali que está a nossa prata’. E a última frase dessas instruções era ‘Você tem que encontrar nossa prata e minhas armas de caça’.”
O mapa não tinha um X marcando o local exato em que a prata foi enterrada, mas Jan achou que estava na hora de tentar achá-la.
A empreitada não seria fácil. A região leste da Polônia, onde ficavam o vilarejo e a fazenda dos Glazewskis, foi anexada pela União Soviética durante a Guerra, e hoje faz parte da Ucrânia, que conquistou a independência em 1991.
Em 2004, com a ajuda de primos que hoje vivem na Polônia, ele identificou o vilarejo de Chmielowa em um mapa e fez uma primeira visita de reconhecimento à região no entorno da cidade de Lviv, a quarta maior da Ucrânia. Ele visitou o vilarejo, e encontrou a fazenda de seu avô, totalmente demolida, coberta por vegetação.
Só quinze anos depois, em 2019, é que Jan, agora aposentado, voltou ao vilarejo, dessa vez munido de pás e acompanhado por uma sobrinha, Layla, uma amiga que falava ucraniano e um arqueólogo aposentada operando um detector de metais.
“O lugar estava coberto por ervas daninhas e arbustos na altura da cintura, e eu não conseguia encontrar sinal algum da casa. Era crucial encontrar os restos da casa, porque aquela linha pontilhada começava no murinho que contornava o quintal. No primeiro dia, não conseguimos localizar a casa, e ficamos bem frustrados. Mas de noite, o arqueólogo que operava o detector de metais sugeriu que conversássemos com moradores locais.”
Na manhã seguinte, o grupo se dirigiu a uma escolinha no vilarejo, que tinha cerca de 30 alunos. O diretor dessa escola sugeriu que eles falassem com os idosos da vila, como uma mulher chamada Pani Polina, de 92 anos.
Eles foram à casa de Pani Polina, que se lembrava muito bem da fazenda dos Glazewski, pois teve uma irmã que trabalhou nela. Ela entrou no carro, junto com outro morador local idoso, e eles voltaram à região da fazenda para tentar achar o porão e os alicerces da casa.
“Quando chegamos, esse homem do vilarejo foi direto pro meio dos arbustos e disse: vou te mostrar onde fica o porão. Ele deve ter crescido ali, tinha uns 70 anos. E minha sobrinha, Layla, foi com ele, enquanto continuávamos conversando com a Pani Polina. Ela falou de todas as guerras que enfrentou. E ela nos contou que o que meu pai tinha descrito no mapa como ‘plantação’ – e que agora era só mato -, tinha uma linda horta e rosas.
“De repente, ouvi um grito da minha sobrinha Layla, eles tinham encontrado o porão. Ficamos andando por ali, e achamos os alicerces da casa. E então tínhamos o local de onde poderíamos descer em direção à floresta.”
No terceiro dia, o grupo começou a seguir a linha pontilhada, com o detector de metais.
“Aí você desce uma encosta e chega na floresta, que fica cada vez mais densa. A essa altura, eu pensei, isso aqui vai ser como achar uma agulha num palheiro. Por causa dos meus joelhos, resolvi sentar no topo da encosta, num lugar meio escondido, enquanto eles desciam ainda mais com seu detector de metais. Comecei a meditar e a orar para meus antepassados, para meu pai e meu tio, que tinha sido um sacerdote místico, pedindo ajuda. Um pequeno pássaro pousou a dois metros de distância e começou a cantar. Foi aí que me toquei, que meus antepassados, na fuga, estavam com pressa e buscando um lugar fora de vista como o que eu estava, protegido dos olhares de saqueadores.”
“Chamei o pessoal para onde eu estava, no topo da colina: ‘Subam, subam, você foram longe demais’. Eles vieram e em dez minutos, o detector de metal começou a apitar. A menos de cinco metros de onde eu estava sentado.”
Eles começaram a filmar e a cavar o solo escuro da floresta. E de repente, a pá atingiu algo sólido.
“Começamos a retirar castiçais, bandejas, talheres e todos os tipos de objetos de prata. Havia uma caixa de joias no fundo. Dentro havia um crucifixo incrustado com ametistas e joias de minha mãe. E uma caixinha com um anel. Mas a coisa mais significativa para mim foi uma colher de chá de batismo, que tinha o nome de meu pai gravado nela.”
“Em volta dessa caixa de joias havia um jornal amarelado. Mas assim que toquei nele, ele se desmanchou…. Havia facas, garfos, taças, medalhões, moedas…Tudo devia ter sido colocado em uma caixa de madeira que tinha apodrecido. E no fundo, estavam as armas de caça que meu pai tinha mencionado, bem enferrujadas. Tudo aquilo pesava cerca de 25 quilos.”
“E minhas emoções foram, uau…Nunca acreditei que iria mesmo encontrar essa prataria. Era muito improvável. Mas fui persistente. Fiquei feliz por ter encontrado essas coisas. Me deu um grande orgulho. E ainda hoje, me sinto mais confiante por ter feito isso.”
Após 80 anos, o tesouro de família dos Glazewski foi, finalmente, recuperado, com ajuda de um mapa rabiscado em um pedaço de papel. Foi recuperado, no entanto, de forma ilegal, o que Jan, advogado e acadêmico da área de Direito, sabia muito bem.
Na Ucrânia, você precisa de uma licença para remover artefatos históricos. Mas ele tinha três ‘justificativas’: “Em primeiro lugar, esta é a prata da nossa família, a nossa herança de família. Em segundo lugar, não creio que essa lei seja uma lei justa, da mesma forma que, quando era estudante, quebrei leis do apartheid ao ter estudantes negros morando comigo. E, terceiro, eu não teria problema nenhum em ser preso ou ter de responder na Justiça por causa disso”.
“Mas o grande dilema agora é o que fazer com a prata. E estaria mais do que satisfeito em doá-la a um museu de Lviv, a cidade grande mais próxima de onde moravam meu pai e meu avô. Há um museu polonês-ucraniano ali. Seria ótimo se essa coleção fosse exposta ali, contando sua história para as novas gerações. Estou meio que esperando pelo fim da guerra na Ucrânia”, prosseguiu Glazewski.
Quando Jan chegou em casa e teve tempo de processar tudo, ele reuniu todo o clã Glazewski para uma celebração. A família toda já sabia tudo sobre o tesouro.
“É uma coisa maravilhosa para mim porque sempre fui visto na família como uma espécie de professor excêntrico e maluco. E de repente virei um pirata e um herói.”
Jan Glazewski lançou um livro em 2022, Blood and Silver (“Sangue e Prata”), em que relata suas memórias, marcadas por desafios, tragédias e, sim, a aventura de uma caça ao tesouro.
Fonte: BBC
Você precisa fazer login para comentar.