Legenda da foto, Barzan Majeed admitiu à BBC que milhões de dólares passaram pelas suas mãos entre 2016 e 2019

  • Author, Sue Mitchell*
  • Role, BBC News

Um dos traficantes de pessoas mais conhecidos na Europa foi preso no Iraque após uma investigação jornalística conduzida pela BBC.

Barzan Majeed foi preso no Curdistão iraquiano, na manhã de 12 de maio, segundo uma autoridade do governo local.

Por vários anos, ele e sua gangue tiveram ligações profundas com o tráfico de pessoas, em barcos e caminhões, através do Canal da Mancha.

A BBC encontrou Majeed, também conhecido como Scorpion, na cidade iraquiana de Sulaymaniya. E um membro do governo regional do Curdistão declarou que os policiais conseguiram localizar Majeed devido ao trabalho de investigação da BBC.

A autoridade informou que “a prisão foi realizada no lado de fora da sua casa, às sete horas da manhã. Eles o prenderam no momento em que ele saía, sem maiores problemas.”

“Estamos agora, antes de tudo, analisando as acusações contra ele e, em seguida, discutiremos com a polícia e os procuradores europeus quem deseja interrogá-lo e lidar com ele.”

A Agência Nacional do Crime do Reino Unido (NCA, na sigla em inglês) confirmou a prisão. “Somos gratos à BBC por destacar o caso e permanecemos determinados a fazer todo o possível para desmantelar e eliminar as redes criminosas envolvidas no tráfico de pessoas para o Reino Unido, onde quer que elas operem”, disse a agência.

Acredita-se que, entre 2016 e 2021, a gangue de Scorpion tenha controlado grande parte do tráfico de pessoas entre a Europa continental e o Reino Unido. Mas uma operação policial internacional que durou dois anos resultou na condenação de 26 membros da gangue por tribunais no Reino Unido, na França e na Bélgica.

O paradeiro de Scorpion era desconhecido – até que a reportagem da BBC o encontrou.

Crédito, Reprodução/Facebook

Legenda da foto, Barzan Majeed em 2012, quando trabalhava com mecânico de automóveis em Nottingham, no Reino Unido

O caminho até o encontro

Estou sentada em um shopping no Iraque, frente a frente com um dos traficantes de pessoas mais famosos da Europa.

Seu nome é Barzan Majeed. Ele é procurado pela polícia de diversos países, incluindo o Reino Unido.

Ao longo da nossa conversa – aqui e no dia seguinte, no seu escritório – ele conta que não sabe quantos migrantes ele transportou através do Canal da Mancha. “Talvez 1 mil, talvez 10 mil. Não sei, não contei.”

Esse encontro é o ápice do que parecia ser uma missão impossível poucos meses atrás.

Ao lado do ex-soldado Rob Lawrie, que trabalha com refugiados, passei a procurar o homem conhecido como Scorpion, até conseguir entrevistá-lo.

Mais de 70 migrantes morreram na travessia de barco desde 2018. E, em abril, cinco pessoas foram mortas no litoral da França – entre elas, uma menina de sete anos.

A viagem é perigosa, mas pode ser muito lucrativa para os traficantes.

Eles chegam a cobrar 6 mil libras (cerca de R$ 39,2 mil) por pessoa, pela travessia de barco. E, com cerca de 30 mil migrantes tentando fazer a travessia em 2023, fica evidente o potencial de lucro desta operação.

Nosso interesse por Scorpion começou com uma garotinha que conhecemos em um dos campos de migrantes perto de Calais, no norte da França. Ela quase morreu tentando atravessar o Canal da Mancha em um bote inflável.

O bote não era navegável – era uma embarcação barata, comprada de segunda mão na Bélgica. As 19 pessoas a bordo não tinham coletes salva-vidas.

Quem enviaria pessoas para atravessar o mar naquelas condições?

Em busca de Scorpion

Crédito, Reprodução

Legenda da foto, Scorpion e seus irmãos (com rostos borrados). A data e o local da foto são desconhecidos

Quando a polícia britânica detém migrantes ilegais, eles tomam e inspecionam seus telefones celulares. E, a partir de 2016, um número de telefone começou a aparecer repetidamente.

O nome de contato, muitas vezes, era “Scorpion”. Em alguns casos, o registro incluía a figura de um escorpião.

O investigador sênior da Agência Nacional do Crime do Reino Unido (NCA) Martin Clarke conta que os policiais começaram a perceber que “Scorpion” era uma referência a um homem curdo-iraquiano chamado Barzan Majeed.

Em 2006, Majeed, então com 20 anos de idade, havia sido levado para a Inglaterra na carroceria de um caminhão.

Um ano mais tarde, seu pedido de permanência foi negado, mas ele ainda permaneceria no Reino Unido por vários anos – parte deste tempo na prisão, por crimes relacionados a armas e drogas.

Ele foi finalmente deportado para o Iraque em 2015. E, pouco tempo depois, acredita-se que Majeed tenha “herdado” um negócio de tráfico de pessoas do seu irmão mais velho, que cumpria sentença de prisão na Bélgica.

Foi quando Majeed se tornou Scorpion.

Entre 2016 e 2021, acredita-se que a gangue de Scorpion tenha controlado grande parte do tráfico de pessoas entre o continente europeu e o Reino Unido.

Depois de uma operação policial internacional que durou dois anos, 26 membros da gangue foram condenados em tribunais do Reino Unido, da França e da Bélgica. Mas Scorpion escapou de ser preso e permaneceu foragido.

Ele foi julgado à revelia por um tribunal belga e condenado por 121 acusações de tráfico de pessoas. Em outubro de 2022, ele foi sentenciado a 10 anos de prisão e ao pagamento de multa no valor de 968 mil euros (cerca de R$ 5,4 milhões).

Desde então, o paradeiro de Scorpion era desconhecido – e nós queríamos desvendar este mistério.

Primeira parada: a Turquia

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, A Turquia é um ponto de parada importante para os migrantes que se dirigem à Europa. Na foto, Istambul

Um contato de Rob Lawrie nos apresentou um homem iraniano que afirmava ter negociado com Scorpion ao tentar atravessar o Canal. Scorpion havia dito a ele que morava na Turquia, de onde coordenava remotamente os negócios.

Na Bélgica, nós encontramos o irmão mais velho de Majeed, que havia saído da cadeia. Ele também disse que Scorpion provavelmente estaria na Turquia.

A Turquia é um ponto de parada importante para a maioria dos migrantes que se dirigem ao Reino Unido. Suas leis de imigração fazem com que pessoas vindas da África, Ásia e Oriente Médio consigam um visto para entrar no país com relativa facilidade.

Uma gorjeta nos conduziu a um café na capital turca, Istambul, frequentado por traficantes de pessoas. Barzan Majeed havia sido visto ali recentemente.

Nossas primeiras consultas não deram bons resultados. Nós perguntamos ao gerente se ele poderia nos contar sobre o comércio – e o café ficou em silêncio.

Pouco tempo depois, um homem passou pela nossa mesa e abriu seu casaco, mostrando que ele portava uma arma. Era um lembrete de que estávamos lidando com pessoas perigosas.

Nossa parada seguinte trouxe resultados mais promissores.

Soubemos que Majeed havia recentemente depositado 200 mil euros (cerca de R$ 1,1 milhão) em uma casa de câmbio a poucas quadras de distância. Deixamos ali nosso número de telefone e, no meio da noite seguinte, o celular de Rob tocou.

O identificador de chamadas indicou “número privado”.

No outro lado da linha, havia alguém afirmando ser Barzan Majeed.

Era muito tarde e a ligação foi tão inesperada que não tivemos tempo de gravar o início da chamada. Rob relembra a voz que estava na linha: “Ele fala ‘acho que você está me procurando’ e eu respondo ‘Quem é você? Scorpion?’ Ele diz ‘Ah, você quer me chamar assim? Tudo bem.'”

Não havia forma de dizer se aquele era o verdadeiro Barzan Majeed, mas os detalhes que ele forneceu coincidiam com o que sabíamos.

Ele disse que havia morado em Nottingham, no Reino Unido, até 2015, quando foi deportado. Mas negou seu envolvimento no tráfico de pessoas.

“Isso não é verdade!”, protestou ele. “É só a imprensa.”

A linha estava entrecortada e, apesar da nossa sondagem, ele não forneceu nenhuma indicação da sua localização.

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Em fevereiro de 2023, pelo menos 95 migrantes morreram em um barco que cruzava o Mediterrâneo da Turquia em direção à Itália

Nós não tínhamos ideia de se e quando ele ligaria de novo. Enquanto isso, um contato local de Rob contou que Scorpion agora estava envolvido no tráfico de migrantes da Turquia para a Grécia e a Itália.

O que ouvimos era perturbador. Até 100 homens, mulheres e crianças eram espremidos em embarcações licenciadas para transportar cerca de 12 pessoas.

Estas embarcações, muitas vezes, eram pilotadas por traficantes sem experiência de navegação. Eles seguiam por um perigoso trajeto entre diversas ilhas pequenas, para evitar as patrulhas da guarda costeira.

Havia muito dinheiro envolvido. Cada passageiro estaria pagando cerca de 10 mil euros (cerca de R$ 55,7 mil) por um lugar em um desses barcos.

Calcula-se que mais de 720 mil pessoas tenham tentado cruzar o leste do Mediterrâneo para chegar à Europa nos últimos 10 anos. Destas, morreram cerca de 2,5 mil pessoas – a maioria, por afogamento.

Julia Schafermeyer, da ONG SOS Mediterrâneo, afirma que os traficantes colocam as vidas das pessoas em sério risco: “Acho que não faz diferença para eles se aquelas pessoas vivem ou morrem.”

E, mais ou menos naquele momento, tivemos a chance de fazer esta pergunta diretamente a Scorpion, já que, do nada, ele nos ligou de novo.

Ele negou mais uma vez ser traficante. Mas sua definição desta palavra parecia ser de alguém que conduzia fisicamente a tarefa, não de alguém que agisse nos bastidores.

“Você precisa estar lá”, contou ele. “Agora mesmo, não estou lá.” Ele disse que era apenas o “homem do dinheiro”.

Majeed também pareceu demonstrar pouca solidariedade pelos migrantes que morreram afogados.

“Deus [escreve] quando você irá morrer, mas, às vezes, a culpa é sua”, afirmou ele. “Deus nunca diz ‘entre no barco’.”

Do litoral turco para o Iraque

Nossa parada seguinte foi na cidade turística de Marmaris, onde a polícia turca acreditava que Scorpion era o dono de uma casa de praia.

Fizemos algumas perguntas e recebemos uma ligação de alguém dizendo que era amiga dele.

Ela sabia que Majeed estava envolvido no tráfico de pessoas e disse que, apesar das suas preocupações, o interesse dele era pelo dinheiro, não pelo destino dos migrantes.

“Ele não se preocupava com eles – é muito triste, não?”, ela conta. “É algo que relembro e fico com um pouco de vergonha porque… ouvi coisas e eu sabia que eles não eram boas pessoas.”

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Acreditava-se que Scorpion fosse o dono de uma casa na cidade turística de Marmaris, no litoral da Turquia

Ela disse que não tinha visto Scorpion na sua casa em Marmaris recentemente, mas alguém havia contado que ele talvez estivesse no Iraque.

Esta informação foi confirmada por outro contato, que disse ter visto Scorpion pessoalmente em uma casa de câmbio na cidade de Sulaymaniyah, no Curdistão iraquiano.

Nós então partimos. E decidimos que, se não conseguíssemos encontrar Scorpion ali, teríamos que desistir.

Mas o contato de Rob conseguiu encontrá-lo. No início, ele estava muito desconfiado de que, de alguma forma, o nosso plano fosse de capturá-lo e levá-lo de volta para a Europa.

Seguiu-se um fluxo de mensagens de texto, primeiramente através do contato de Rob e, depois, com o próprio Rob. Scorpion disse que poderia nos encontrar, mas apenas se ele escolhesse o local. Nós descartamos esta possibilidade, com receio do cenário que ele pudesse armar para nós.

Foi quando chegou uma mensagem de texto, perguntando simplesmente: “Onde vocês estão?”

Respondemos que estávamos a caminho de um shopping próximo. Scorpion nos disse para encontrá-lo ali, em uma cafeteria no térreo.

E foi então que, finalmente, nós o encontramos.

Legenda da foto, O motorista de Sue Mitchell e Rob Lawrie filmou secretamente o encontro com Scorpion

‘Nunca coloquei ninguém em um barco’

Barzan Majeed parecia um rico jogador de golf. Ele estava elegantemente vestido, com um jeans novo, uma camiseta azul-clara e um colete preto.

Quando ele pôs as mãos sobre a mesa, observei que tinha as unhas feitas.

Ao mesmo tempo, três homens se sentaram em uma mesa próxima. Imaginamos que fossem seus seguranças.

Novamente, ele negou ser o líder importante de uma organização criminosa. Ele disse que outros membros da gangue tentaram incriminá-lo.

“Duas pessoas, quando foram presas, disseram ‘nós trabalhamos para ele’. Eles queriam reduzir a sentença”, defende-se ele.

Scorpion também pareceu insatisfeito por saber que outros traficantes receberam passaportes britânicos e conduziam seus negócios.

“Em três dias, um deles mandou 170 ou 180 pessoas da Turquia para a Itália, ainda com passaporte britânico!”, ele conta. “Quero ir para outro país fazer negócios. Não posso.”

Quando o pressionamos sobre sua responsabilidade pelas mortes dos migrantes, ele repetiu o que havia dito ao telefone – que ele simplesmente pegava o dinheiro e reservava os lugares.

Para ele, o traficante é a pessoa que coloca as pessoas nos barcos e caminhões e as transporta. “Nunca coloquei ninguém em um barco e nunca matei ninguém.”

Ao término da conversa, Scorpion convidou Rob a conhecer a casa de câmbio onde ele trabalhava em Sulaymaniyah.

O escritório era pequeno. Havia algo escrito em árabe na janela e dois números de telefone celular.

As pessoas vão até lá para comprar passagens. Rob conta que, enquanto ele estava lá, viu um homem carregando uma caixa cheia de dinheiro vivo.

Naquela ocasião, Scorpion contou como ele entrou para o tráfico em 2016, quando milhares de pessoas estavam se dirigindo à Europa.

“Ninguém os forçou. Eles quiseram”, contou ele. “Eles imploravam aos traficantes, ‘por favor, por favor, faça isso para nós’.”

“Às vezes, os traficantes dizem, ‘pelo amor de Deus, vou ajudá-los’. E eles então reclamam, eles dizem ‘oh, isso, aquilo…’ Não, isso não é verdade.”

Crédito, Procuradoria da Bélgica

Legenda da foto, Cartaz de informações dos procuradores da Bélgica, onde Scorpion foi julgado e condenado à revelia

Scorpion contou que, entre 2016 e 2019, ele foi um dos dois principais responsáveis pelas operações na Bélgica e na França. Ele admitiu que milhões de dólares passaram pelas suas mãos naquela época.

“Eu meio que fazia coisas para eles”, ele conta. “Dinheiro, local, passageiros, traficantes… Eu estava em meio a todos eles.”

Ele negou que ainda estivesse envolvido no tráfico de pessoas, mas suas ações pareciam contradizê-lo.

Scorpion não percebeu, mas, enquanto ele rolava a tela do celular, Rob observou um reflexo da tela na moldura brilhante de um quadro na parede atrás dele.

Rob viu listas de números de passaportes. Ficamos sabendo mais tarde que os traficantes enviariam essas listas para autoridades iraquianas. Eles receberiam suborno para emitir vistos falsos, permitindo que os migrantes viajassem para a Turquia.

Aquela foi a última vez em que vimos Scorpion.

Em todas as etapas da investigação, informamos nossas descobertas para as autoridades do Reino Unido e da Europa.

A procuradora pública belga Ann Lukowiak, envolvida na condenação de Scorpion, acreditava que, um dia, ele viria a ser extraditado do Iraque.

“É importante para nós sinalizar que você não pode fazer o que quiser”, afirma ela. “Algum dia, nós iremos prendê-lo.”

Barzan Majeed foi preso pouco tempo depois da publicação da reportagem. A procuradora recebeu a notícia com satisfação.

“Finalmente temos a chance de ver a justiça sendo feita neste caso, de fazer com que ele confronte diretamente seus crimes e responda por eles”, concluiu Lukowiak.

*Com colaboração de Ben Milne.

Ouça a série da BBC Rádio 4 To Catch a Scorpion (em inglês), que deu origem a esta reportagem, no site BBC Sounds.