- Author, Sophia Smith Galer
- Role, BBC Future
Uma antiga rima em inglês costuma dizer que “paus e pedras podem quebrar meus ossos, mas as palavras também podem ferir”.
Elas estão presentes na retórica inflamada de ambos os lados do conflito em Israel e Gaza, assim como no discurso de diferentes confrontos ao redor do mundo por meio de insultos que buscam retratar grupos inteiros de pessoas como se fossem de alguma forma menos humanos.
Aqueles que acompanham o conflito atual em Israel e Gaza terão ouvido ambas as partes se referirem mutuamente como “animais” e “bestas” de várias maneiras.
Quando isso vem de líderes políticos e comentaristas da mídia, pode inicialmente parecer apenas um gesto teatral.
No entanto, um conjunto de pesquisas sugere que todos devemos estar extremamente atentos às palavras que usamos e ouvimos.
“Grupos odiados, desprezados e nos quais não se confia são frequentemente descritos de forma desumanizante, seja abertamente por meio de metáforas que os equiparam a animais, seja de maneira mais sutil, através de descrições desumanizantes”, afirma Nick Haslam, professor de psicologia na Universidade de Melbourne, na Austrália.
“Surpreendentemente, há poucas evidências de que a linguagem desumanizante cause comportamentos violentos, mas há muitas evidências de que pessoas que desumanizam os outros são mais propensas a tratá-los mal”, destaca.
Resultados de um experimento
O uso de adjetivos animais, por exemplo, demonstrou aumentar a disposição das pessoas em apoiar a hostilidade, alterando as percepções sobre a aceitação social, de acordo com uma pesquisa realizada pelos psicólogos Florence Enock, pesquisadora principal associada da equipe de Segurança Online do Instituto Alan Turing, e Harriet Over, da Universidade de York, Reino Unido.
Em um experimento, eles criaram grupos políticos fictícios e os descreveram de diferentes maneiras aos participantes do estudo. Algumas descrições incluíam palavras como “serpentes” ou “baratas”, enquanto outras incluíam descrições negativas de seres humanos.
“Os participantes que classificaram os partidos descritos em termos animais disseram que eram mais indesejáveis e estavam mais dispostos a prejudicar esses grupos”, diz Enock.
As pesquisas sobre desumanização começaram após a Segunda Guerra Mundial, quando os psicólogos tentaram examinar como as populações foram levadas à guerra e ao genocídio. As memórias escritas pelo químico Primo Levi sobre seu tempo em Auschwitz fornecem um exemplo disso.
Uma análise recente realizada por Adrienne de Ruiter, professora assistente de filosofia e humanidades na Universidade de Estudos Humanísticos de Utrecht, na Holanda, descobriu que a desumanização à qual Levi e outros foram submetidos nos campos de concentração nazistas funcionou para despojá-los aos olhos de seus guardiões de qualquer motivo moral contra o tratamento cruel.
Em vez de serem considerados literalmente como animais ou monstros, eram vistos como seres humanos sem importância.
Em termos simples
Os psicólogos usam termos como “outroização” e “efeito do grupo externo/interno” para descrever o fenômeno do uso de linguagem desumanizante.
Na psicologia social, o viés de homogeneidade do grupo externo explora a ideia de que é provável que as pessoas vejam os membros de um grupo diferente do delas como sendo semelhantes entre si.
Em outras palavras, eles são considerados iguais, enquanto nós somos vistos como indivíduos diversos.
Como exemplo desse efeito, um estudo realizado em 2013 por psicólogos da Universidade de Kent, no Reino Unido, descobriu que quanto mais os participantes cristãos associavam palavras desumanizantes aos muçulmanos, mais dispostos eram a apoiar a tortura de prisioneiros de guerra muçulmanos, conforme relatavam eles mesmos.
Curiosamente, quando os pesquisadores informavam os participantes cristãos sobre a cultura muçulmana com palavras que descreviam qualidades humanas únicas, como “paixão” e “ambição”, eles eram menos propensos a usar palavras desumanizantes para descrever os muçulmanos em comparação com aqueles que receberam um texto mais neutro. Além disso, eram menos propensos a apoiar a tortura.
Portanto, quanto mais você ouve um grupo ser descrito de forma desumanizante, maior a probabilidade de que você mesmo os desumanize.
Isso cria um ciclo vicioso. No entanto, isso também pode depender um pouco do seu contexto pessoal.
“Pessoas com uma maior inclinação para a dominação social ou que veem a hierarquia social entre grupos como desejável tendem a ser mais propensas a desumanizar”, afirma Nour Kteily, co-diretor do Centro de Pesquisa em Resolução de Conflitos na Universidade Northwestern de Illinois, nos Estados Unidos.
Grau de desumanização
No contexto da violência, os grupos que frequentemente se sentem desumanizados tendem a fazer o mesmo, diz Kteily.
“Estamos começando a perceber que muitas vezes assumimos ou temos percepções sobre o quanto somos desumanizados.”
Ele se refere a um estudo em que pediu aos participantes que avaliassem alguém em uma escala de 0 a 100, em termos de quão evoluída acreditavam que essa pessoa fosse, no contexto de uma famosa imagem que representa “a evolução do homem”.
Descobriu-se que democratas e republicanos achavam que seus adversários os classificariam como 60 pontos abaixo de serem considerados plenamente humanos, quando na realidade os classificaram como 20-30 pontos abaixo de serem plenamente humanos.
Eles haviam identificado corretamente que estavam sendo desumanizados, mas superestimaram significativamente o grau em que estavam sendo desumanizados.
No entanto, Florence Enock descobriu a importância de ir além do simples uso de linguagem desumanizante para causar danos.
Ao analisar a propaganda nazista antissemita, a pesquisadora descobriu que eram usados termos humanizantes altamente ofensivos até três vezes mais do que termos desumanizantes.
“Quando consideramos isso, talvez não seja apenas a comparação desumanizante que leva à violência em massa, mas a ideia de que são pessoas ruins e moralmente merecedoras do dano infligido a elas”, observa.
Enock destaca que há muitos exemplos em que prejudicamos seres humanos e cuidamos de animais. Ela explica que ser humano ou ser animal essencialmente não determina se você está protegido ou ferido.
“Não há realmente nenhuma evidência que sugira que os humanos têm cuidado e empatia naturais uns pelos outros”, diz.
“Na verdade, as pessoas são feridas quando os perpetradores estão plenamente conscientes de sua humanidade”, acrescenta.
Discriminação
Isso pode parecer uma contradição, mas há algo mais sutil em jogo.
A análise de Adrienne de Ruiter das memórias de Primo Levi mostrou como um grupo de pessoas pode ser desumanizado e humanizado ao mesmo tempo.
“Os acadêmicos têm apontado que frequentemente é dito que atrocidades em massa, como massacres e genocídios, só podem ocorrer após as vítimas terem sido previamente desumanizadas”, afirma.
“Entretanto, um exame mais cuidadoso de como os supostos perpetradores da desumanização tratam objetivamente suas vítimas revela que nem sempre parecem considerar essas últimas como inteiramente menos que humanas.”
Para ela, a desumanização deve ser compreendida como algo muito mais amplo do que simplesmente nomear alguém como um animal ou objetificá-lo.
Filosoficamente, trata-se de uma cegueira mais abrangente em relação ao fato de que alguém pode ser um ser humano com experiências subjetivas. Vai muito além da linguagem; é “um erro fundamental de reconhecimento moral”.
Florence Enock concorda. Em seu estudo, no qual utilizou grupos políticos fictícios, ela também pediu aos participantes que os avaliassem com base em uma série de traços.
Aqueles que descreveram um grupo com adjetivos animais tendiam a perceber esse grupo como tendo menos traços positivos em vez de menos humanidade. Sua humanidade não mudou em absoluto; o que mudou foi sua aceitação social e seu caráter moral.
Retórica violenta
Emma Briant, professora associada de notícias e comunicação política na Universidade de Monash, em Melbourne, Austrália, identificou isso na linguagem usada na atual violência em Israel e Gaza.
“Acredito que uma característica importante que se combina com isso — na retórica que permite que o Hamas e Israel desumanizem e matem civis — são as alegações de que os civis não são realmente civis”, afirma.
“Ambos fizeram essa alegação. O Hamas fez isso na Al Jazeera (emissora árabe), afirmando que os colonos nos territórios ocupados não são realmente civis. Israel tem repetidamente associado o povo palestino ao Hamas. Os valores fundamentais precedem a retórica de desumanização, de modo que já estamos predispostos a uma ideologia de exclusão e desconfiança.”
Estudar o efeito da linguagem desumanizante tem um impacto para todos. Praticamente todos os aspectos da identidade que podem ser considerados parte de um grupo específico de pessoas parecem vulneráveis a isso.
Isso acontece com a imigração: um estudo descobriu que comparações de imigrantes com pragas ou doenças levavam a atitudes mais negativas em relação à imigração.
Um estudo posterior nos Estados Unidos em 2023, por meio de uma pesquisa, descobriu que aqueles que tinham preconceitos raciais contra latinos poderiam ser incentivados a apoiar centros de detenção de imigrantes com fins lucrativos se linguagem desumanizante fosse usada.
Também é observado em questões de gênero. Estudos revelaram que se concentrar nas características ou funções sexuais das mulheres as desumaniza de maneira animal, e comparar mulheres com predadores animais pode tornar alguém mais propenso a concordar com atitudes sexistas hostis do que se forem descritas através de metáforas animalísticas de “presa”.
Mudar o padrão
Mas também pode haver maneiras de evitar que as pessoas se desumanizem mutuamente. Os especialistas acreditam que é possível.
Promover experiências de contato positivo entre diferentes grupos de pessoas é uma solução. Outra é através de narrativas humanizadoras.
“Há quantidades semelhantes de histórias de interesse humano em ambos os lados?”, pergunta Kteily.
“Sabemos que a humanização está associada à empatia. Quando ouvimos sobre tragédias, isso está associado a sentir mais empatia. Quando se fala de mortes ou assassinatos como estatísticas, é muito menos provável que promova empatia.”
Kteily acrescenta que, quando se trata de pôr fim a um conflito específico, tem sido interessante ouvir histórias de pessoas que se recusam a permitir que seu próprio sofrimento e angústia sejam usados para alimentar mais violência.
“Há pessoas cujos próprios familiares foram feitos reféns e que não querem recriar o mesmo sofrimento no outro lado”, diz.
“Expressar preocupação com a humanidade de todos, mesmo quando se sofreu imensamente, é enxergar os outros como seres humanos”, conclui.
Fonte: BBC
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