- Author, Edison Veiga
- Role, De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
A história é cheia de invenções. Não de fatos, assim se espera. Mas de significados. Assim, uma importantíssima batalha travada no século 17 acabaria, dois séculos mais tarde, tratada como elemento de formação da nação brasileira. E, ressignificada, há menos de 30 anos passou a ser encarada como a data da fundação do Exército brasileiro.
Estamos falando da Batalha dos Guararapes, confronto militar ocorrido em 18 e 19 de abril de 1648 — com novo episódio em 19 de fevereiro do ano seguinte. O conflito ocorreu no Morro dos Guararapes, atual Jaboatão dos Guararapes, região metropolitana de Recife, Pernambuco. Na época, era ali a Capitania de Pernambuco — o Brasil se resumia ao status de colônia de Portugal.
Lutaram as tropas da colônia portuguesa contra o exército holandês — no contexto da União Ibérica, em que Portugal havia ficado sob o domínio espanhol, a Holanda acabou ocupando e assumindo o controle de regiões do nordeste da colônia.
Importância do conflito
A Batalha dos Guararapes, portanto, já ocorria no contexto da Guerra da Restauração, um conjunto de confrontos entre Portugal e Espanha que consolidaria a independência portuguesa. Somados os dois confrontos, lutaram nos Guararapes 4850 homens do lado português frente a mais de 12 mil holandeses.
No primeiro confronto, há 375 anos, foram 84 mortos e 400 feridos das tropas lusitanas contra 2 mil mortos e 700 feridos do oponente. No ano seguinte, 47 mortos e 200 feridos portugueses; 2 mil mortos e 90 feridos holandeses.
Professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp), o historiador Paulo Henrique Martinez avalia que o conflito “foi um dos episódios decisivos na reinserção de Portugal na geopolítica europeia e colonial, após a restauração da autonomia portuguesa da Coroa espanhola, em 1640”.
“O controle político da região Nordeste e das rotas de comércio e de navegação no Atlântico Sul era uma necessidade da nova monarquia em Portugal”, afirma ele à BBC News Brasil. Martinez acrescenta que isso envolvia, “além da posse territorial na América, a produção açucareira, o comércio africano e a soberania nas relações internacionais”.
OK, é inegável que o conflito foi de suma importância para Portugal. E que tenha sido também, a incontestável vitória lusitana, o marco inicial da expulsão definitiva dos holandeses do Brasil colonial. Mas quando e como surgiu o mito nacionalista de Guararapes? E de onde veio a ideia de considerar o episódio a certidão de nascimento do Exército?
Marco ‘fundador’ do Exército
Então comandante do Exército, o general Marco Antônio Freire Gomes disse, na ordem do dia publicada em 19 de abril de 2022, que “a Insurreição Pernambucana, ao ser considerada o ‘berço da nacionalidade’, nos remete de imediato a Guararapes, cujos feitos marcaram a gênese do Exército brasileiro”.
“Ali, surgiram nossos primeiros heróis, em uma espontânea fusão de raças. Brancos, negros e índios, conjurados livremente, sob o inédito brado de ‘pátria’, lutaram bravamente contra o invasor estrangeiro”, prosseguiu ele. “Com inteligência, coragem, espírito aguerrido e vigor, souberam concretizar o anseio de liberdade e o amor incondicional à terra.”
“Nascia, de forma inequívoca, o sentimento de soberania nacional, nosso maior legado e do qual jamais abriremos mão, custe o que custar” disse o general. “Hoje, uma vez mais, reverenciamos esse glorioso processo histórico de consolidação da identidade nacional”.
Gomes ainda enfatizou que o Exército brasileiro, na ocasião, completava “374 anos de uma existência alicerçada em valores e tradições”.
Ocorre que aquela luta não foi travada pelo Exército brasileiro. Porque o Exército brasileiro não existia. Oficialmente, o Exército brasileiro surgiu a partir da independência do Brasil — ou seja, ao mesmo tempo em que o Brasil surgiu como país. As forças do Exército português que atuavam na colônia acabaram se fragmentando no processo. Parte desses militares acabaram formando as primeiras tropas do que viria a ser o Exército brasileiro.
Mas o século 19 foi um século de afirmação de identidades. Era preciso construir os mitos que dariam unidade à nação. E Guararapes foi recuperada com toda a potência de sua narrativa.
‘Feito brasileiro’
“Ao longo do século [19], a batalha de Guararapes foi revisitada como o momento em que brancos, negros e indígenas teriam se juntado para expulsar um invasor”, explica à BBC News Brasil o historiador Marcelo Cheche Galves, professor na Universidade Estadual do Maranhão (Uema). “Aí se forma a ideia da Batalha de Guararapes como a batalha da nação, que dá origem à nação brasileira.”
Em entrevista à reportagem, o historiador Paulo César Garcez Marins, professor no Museu Paulista da Universidade de São Paulo (USP), ressalta que um ponto-chave nessa percepção é o fato de que para “as elites políticas da capitania de Pernambuco” havia sido importante desde sempre a instituição de um Exército autônomo. Nesse sentido, não havia uma dependência de tropas portuguesas que precisariam vir de longe. “Era um Exército feito por topas locais, que envolviam brancos, negros e indígenas”, ressalta ele.
Claro que todos lutando em prol de Portugal, uma vez que o Brasil tinha status de colônia.
Mas foi essa amálgama racial e essa condição sui generis que fez com que o discurso de formação nacional se azeitasse. “[A batalha] foi a base inclusive da constituição de um nativismo muito importante para Pernambuco. E uma narrativa de que a expulsão dos holandeses era um feito brasileiro, dos pernambucanos”, diz o historiador.
De forma épica, é isso que acaba sendo eternizado no projeto de construção de um imaginário nacional. Entre 1875 e 1879, o artista plástico Victor Meirelles (1832-1903) pintou a gigantesca tela Batalha dos Guararapes, com 5 metros de altura por 9,25 de largura. A obra integra o Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro.
Ao longo das décadas, o Exército brasileiro vai incorporando a narrativa de que aquela batalha havia sido a sua gênese. “Esse Exército brasileiro criado no século 19, à procura de uma origem, de uma trajetória, de alguma maneira incorpora gradativamente a batalha de Guararapes como esse lugar de nascimento das forças brasileiras contra um invasor”, contextualiza Galves.
Memória ou invenção?
No livro A Invenção do Exército Brasileiro, o sociólogo e antropólogo Celso Castro, professor na Fundação Getúlio Vargas (FGV) aborda essa questão. Ele parte do princípio de que “desde o fim do regime militar, os militares perderam significativa força política no Brasil” e que a partir dos anos 1990, “as relações entre Forças Armadas, sociedade e Estado no Brasil alteraram-se em favor do enquadramento militar à nascente democracia brasileira”.
Nesse contexto, ele pontua que celebrações militares que eram intensas durante a ditadura, como a vitória sobre a Intentona Comunista, em 1935, e a efetivação do golpe militar — que costuma ser chamado por eles de “revolução” — em 1964, estavam entrando “em declínio, tendendo a desaparecer”.
É quando outra celebração “estava por nascer”, diz o autor. “Em 1994, por iniciativa do ministro do Exército, general Zenildo, foi criado o Dia do Exército, na data de realização da 1a. Batalha dos Guararapes (19 de abril de 1648)”, escreve ele, no livro. “A Batalha dos Guararapes foi um evento muito importante no processo de expulsão das tropas holandesas que ocuparam a região de Pernambuco entre 1630 e 1654. Mesmo inferiorizadas numericamente, as tropas locais, compostas por unidades de brancos, negros e índios, e recorrendo a táticas de guerra irregular (ou de guerrilhas), derrotaram um inimigo superior em número e mais bem equipado.”
Castro prossegue explicando que “a ideia central da nova comemoração” era marcar que “em Guararapes teriam nascido ao mesmo tempo a nacionalidade e o Exército brasileiros”.
“A força simbólica do evento é reforçada pela presença conjunta das três raças vistas como constitutivas do povo brasileiro — o branco, o negro e o índio. Além disso, ao contrário das comemorações da Intentona e de 1964, não se trata aqui de um ‘inimigo interno’ a ser enfrentado, mas de invasores estrangeiros”.
Mas a problematização vem em seguida: havia um país Brasil há 375 anos? A resposta é: não. “Na época da batalha, o Brasil ainda não era uma nação independente: esteve sob o domínio espanhol entre 1580 e 1640, retornando em seguida à condição de colônia portuguesa”, lembra ele.
O senão é o fato de que, como bem frisa Castro, “a metrópole pouco se envolveu na luta, ficando a tarefa de expulsar os holandeses por conta quase que exclusivamente da ‘gente da terra'”. E foi isso que “alimentou por mais de dois séculos o imaginário do nativismo pernambucano”.
Apropriação simbólica
O historiador Martinez define o que foi Guararapes com a grandeza histórica devida. “Foi um conflito crucial em que houve intensa mobilização nos esforços militares, políticos e diplomáticos e grandes contingentes populacionais, com o deslocamento de suprimentos, armas, combatentes e equipamentos de diferentes localidades das possessões portuguesas na América”, afirma.
“Este ‘esforço de guerra’ foi, posteriormente, apropriado pela política e pela memória histórica na criação de um imaginário de lutas e de unidade social pela liberdade e autonomia no Brasil, comumente denominado como ‘revoltas nativistas’ e ‘sentimentos nativistas'”, prossegue o historiador. “Daí a sua apropriação também pelo Exército em busca de afirmação da unidade do Estado nacional e da nação brasileira, principalmente, da centralidade social e política da corporação militar na história do Brasil.”
O professor prefere analisar a importância de Guararapes como uma batalha “em meio a muitas outras ações e movimentos nas disputas entre os impérios coloniais”. “Estas só podem ser compreendidas dentro de um amplo arco que envolve as diferentes monarquias europeias e distintos espaços extra-europeus”, comenta ele.
Já a ressignificação, acredita Martinez, “inegavelmente” deve ser atribuída ao “imaginário político da construção do Estado nacional e da nação brasileira, sobretudo, no século 19”.
Segundo o professor, durante a ditadura, um grupo de militares contrários à democracia chegou a criar uma entidade secreta chamada Guararapes. “Decerto tinha a intenção de expressar um chamamento para um novo esforço total de guerra, agora contra a ‘subversão’, os comunistas e a democracia a ser adotada”, diz Martinez.
“A pertinência da lembrança deste episódio e de seus ressignificados reside na necessidade inadiável e incontornável de revisão do ensino de história nas escolas e academias militares. Esta ação educativa deve estar inserida e em conformidade com as diretrizes nacionais para o ensino de História, geral e do Brasil”, analisa o historiador. “Uma memória democrática sobre a presença das forças armadas contribuiria para o fortalecimento da cidadania, das instituições democráticas e o desenvolvimento social e econômico com justiça social e distribuição efetiva da riqueza, da terra, da cultura e do poder nacional.”
Por outro lado, Martinez diz que “a memória da beligerância e da crueldade contra o inimigo oculto, traiçoeiro e ameaçador” e da “violência indiscriminada contra combatentes e não combatentes, acima de tudo e acima de todos, precisa ser revista urgentemente e substituída por outra, em sintonia com uma sociedade mundial regida pela paz, a cooperação, a solidariedade e equidade entre povos e nações”.
Você precisa fazer login para comentar.