- André Biernath e Nathalia Passarinho
- Enviados da BBC News Brasil a Sharm El-Sheikh (Egito)
As pesquisas do biólogo Adalberto Luis Val permitiram entender melhor como os peixes e outros organismos aquáticos da Amazônia vivem, se reproduzem e morrem.
O trabalho dele explora como essas espécies foram capazes de se adaptar a condições extremas — como a baixa disponibilidade de oxigênio e a acidez intensa — ao longo dos milhões de anos de evolução do planeta.
Os estudos também ajudaram a compreender como as últimas décadas submeteram toda essa biodiversidade a um estresse nunca antes visto, com o despejo de minérios, plásticos e metais pesados em rios e igarapés.
E tudo isso representa um risco enorme: o aumento de 1,5 °C na temperatura já seria suficiente para extinguir muitos desses seres, que são vitais na dieta da população local.
Val está participando da Conferência sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas (COP27), que acontece em Sharm El-Sheikh, no Egito.
Numa reunião da sociedade civil com o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, realizada em 17 de novembro, ele foi um dos seis escolhidos para falar e apresentou as demandas do setor de ciência, pesquisa e desenvolvimento.
Um dos pedidos do biólogo foi que o novo governo crie políticas públicas para “trazer os meninos para casa” — uma alusão aos cientistas brasileiros que fizeram toda a formação no país, mas que foram trabalhar no exterior em busca de melhores condições de vida.
Numa entrevista à BBC News Brasil, Val contou um pouco sobre suas pesquisas, falou da importância de conhecer os saberes tradicionais amazônicos e apontou o caminho para incentivar a pesquisa no país.
A boca volátil do tambaqui
Val nasceu em Campinas, no interior paulista, estudou bioquímica e depois cursou biologia. Foi a paixão pela pesca — seu passatempo favorito nos finais de semana durante a infância e a adolescência — que o levou a estudar esses animais.
Em 1978, ele foi para a Amazônia pela primeira vez e, no ano seguinte, resolveu fixar residência na região.
“Quando cheguei lá e vi aquela quantidade de peixes no mercado, entendi que ali era o meu lugar”, lembra.
Professor do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Val explica que sua linha de pesquisa busca entender como os organismos aquáticos, como peixes, anfíbios, répteis, mosquitos e plantas, se adaptam às mudanças ambientais.
Ele aponta que a oscilação do nível das águas nos rios e reservatórios naturais coloca os peixes em contato com a floresta por um tempo prolongado no período das cheias.
Na contramão, durante o período de águas baixas, esses animais ficam em locais mais isolados.
“A Amazônia tem mais de 3 mil espécies de peixes, mas vamos pegar como exemplo o tambaqui”, diz.
“Na fase adulta, ele se alimenta de frutas, e temos estudos mostrando que é possível encontrar até 140 variedades diferentes desses alimentos no sistema digestivo deles”, calcula.
“No período das secas, o peixe perde em parte essa conexão com o resto do meio ambiente.”
O professor conta outro atributo curioso do tambaqui: nos momentos do ano em que a espécie fica exposta a uma baixa disponibilidade de oxigênio na água, ela expande significativamente os lábios.
“Com isso, esse peixe vai para a superfície do rio e coleta aquela camada superficial de água que, pelo contato com o ar, é mais rica em oxigênio”, explica.
Quando o oxigênio volta aos níveis superiores nos rios, os lábios do animal deixam de se expandir.
“Entender esse mecanismo nos ajuda a compreender, por exemplo, como acontece a proliferação de células. E isso poderá ajudar no futuro a cicatrizar mais rapidamente os ferimentos na pele”, antevê.
Muitas mudanças em pouco tempo
Embora várias dessas espécies aquáticas tenham aprendido a se adaptar a ambientes extremos ao longo de centenas de milhares de anos, elas nunca foram submetidas a uma situação tão complicada, acredita Val.
Por trás disso, está a ação humana e a destruição dos rios que correm pela região.
“É possível observar um conjunto de outras modificações produzidas pelo homem de forma rápida e imediata, como a poluição de tudo que é tipo, com medicamentos, agrotóxicos, nanopartículas de plástico, petróleo…”, lista.
“Tudo isso nos preocupa muito, porque as alterações causadas pelo homem são rápidas demais e não dá tempo de as espécies aquáticas se adaptarem”, diz.
A distribuição de uma fina camada de petróleo na superfície da água, por exemplo, impede que os tambaquis acessem o oxigênio que os mantêm vivos.
“Estamos concluindo vários estudos que detectaram a presença de microplásticos nos peixes, inclusive com uma transferência direta desse material da mãe para os filhos”, informa.
“Uma proteína nos óvulos dos peixes se liga às moléculas de plástico, então o filhote já nasce com essa substância no organismo.”
Além de representar um risco à biodiversidade da Amazônia, a extinção de espécies é um perigo à segurança alimentar do povo que vive ali.
“Vale lembrar que 90% da proteína consumida pela população local tem origem nos peixes. Trata-se de uma coisa extremamente importante para a região”, chama a atenção.
Val alerta que, apesar do clima local, os peixes amazônicos são extremamente vulneráveis à variação da temperatura.
“Muitos deles já vivem no limite térmico superior e qualquer variação futura pode levar ao desaparecimento de várias espécies”, diz.
O biólogo entende que a urgência da situação exige que os cientistas façam pesquisas genéticas para detectar quais são as espécies mais adaptadas às altas temperaturas, para que elas sejam criadas em fazendas e possam suprir a demanda num futuro próximo.
“Um aumento de temperatura na ordem de 1 °C ou 1,5 °C já é suficiente para testemunharmos o desaparecimento de muitas espécies da Amazônia, principalmente daquelas que vivem nos pequenos igarapés dentro da floresta”, alerta.
Jaraqui velho não sobe o rio
Durante a reunião com Lula, Val também destacou a importância de “aliar os saberes tradicionais com a ciência contemporânea”.
Para ilustrar a relação entre esses dois universos, ele se recorda de uma história que viveu.
“Existe um peixe na Amazônia chamado jaraqui que é extremamente popular e muito consumido pela população de classe média baixa”, descreve.
Sabe-se que essa espécie vive em cardumes e desce do Alto Rio Negro até o encontro das águas com o Solimões, onde acontece a reprodução.
“Na prática, as fêmeas depositam os óvulos e os machos liberam o esperma para fecundar. À medida que os novos peixes se desenvolvem, eles nadam de volta para a cabeceira do Rio Negro, e sabem exatamente como ir até lá”, ensina.
O biólogo conta que durante um período coletou alguns jaraquis para tirar amostras de sangue, que seriam depois analisadas no laboratório.
“Nessas pesquisas, eu sempre encontrava três ou quatro animais que destoavam do resto do grupo e tinham parâmetros sanguíneos completamente diferentes”, diz.
Mas ele não fazia ideia do motivo. Até que um dia estava fazendo trabalho de campo, no meio da floresta, quando o barco que o grupo utilizava quebrou.
“Decidimos então dormir ali mesmo e fizemos uma fogueira para assar um peixe”, lembra.
“Nisso, veio um caboclo que morava ali perto conversar com a gente. O resto do grupo foi dormir, mas fiquei batendo papo com ele.”
Foi aí que o pesquisador comentou do mistério que o intrigava — e descobriu a resposta prontamente.
“Ele olhou pra mim e disse: ‘Mas professor, isso é muito simples. Acontece que os peixes sobem e descem o rio várias vezes ao longo da vida. Mas, quando eles ficam mais velhos, não aguentam fazer isso. Eles permanecem então aqui na mata inundada dos igapós. Só que, ao ver o cardume saindo, eles pensam que estão recuperados e se misturam aos peixes mais novos’.”
“Eu não tinha pensado nisso e fui verificar. Aí notei que, dito e feito, esses três ou quatro peixes diferentes que eu encontrava no meio do grupo eram justamente os mais velhos.”
“Eu tenho um monte de histórias desse tipo, que mostram como a ciência precisa do apoio dos indígenas e das comunidades locais para entender todas as coisas que existem na Amazônia”, aponta.
“Para mim, não há contraste entre o conhecimento tradicional e a ciência contemporânea. Uma se vale da outra”, conclui.
O resgate dos ‘meninos’
Por fim, Val enumerou alguns caminhos possíveis para desenvolver a ciência no Brasil — e mais especificamente na Amazônia.
“Da totalidade do orçamento nacional para a ciência e a tecnologia, apenas 2% são investidos na Amazônia”, calcula.
“E não será possível avançar na conservação ambiental e na redução dos impactos climáticos se a gente não contar com a ciência na região. Não adianta a Finlândia ou os Estados Unidos virem estudar a Amazônia, porque as informações não serão acessíveis para o caboclo que está no interior e não conseguirá ler o artigo científico publicado numa revista internacional”, critica.
O biólogo aponta que, nos últimos quatro anos, houve uma “degradação muito significativa das instituições de pesquisa no Brasil, sendo que na Amazônia a coisa foi ainda pior”.
“O Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) mesmo tem cerca de 140 pesquisadores, sendo que 70 a 80 deles já estão em idade de aposentadoria, mas continuam a trabalhar por falta de gente.”
Val acredita que o primeiro grande desafio do próximo governo é “viabilizar oportunidades para que os meninos e as meninas fiquem no Brasil”.
Ele explica que os termos “meninos” ou “meninas” são maneiras carinhosas de se referir aos mais jovens na região amazônica.
“As pessoas têm o direito de morar no exterior, mas não porque não há condições de fazer pesquisa no país”, lamenta.
“Nós gastamos uma fortuna para formar esses profissionais e, quando eles chegam aos 28 anos, recebem propostas melhores para trabalhar fora.”
Ele cita o exemplo de um aluno que era eletricista em São Paulo e foi ao Ipam para fazer mestrado e doutorado.
Durante o trabalho, o jovem cientista desenvolveu um mecanismo de inteligência artificial que ajuda a saber se peixes ornamentais estão saudáveis — e foi contratado por uma empresa no Reino Unido.
Val também acredita que ao menos 2% do PIB do país deveria ser investido em ciência e tecnologia.
“Precisamos utilizar nossos recursos para criar estruturas capazes de desenvolver novas tecnologias”, aponta.
“Por último, precisamos transformar a informação que temos produzido em tecnologias sustentáveis, que possam ser socializadas com a população.”
“E o foco dessa inclusão social precisa acontecer principalmente nas regiões periféricas, como a Amazônia, o Nordeste, o Pantanal e o Centro-Oeste”, sugere.
Ele cita como exemplo o fato de nenhuma carne de peixe amazônico ser exportada para o exterior a partir de uma produção sustentável.
“Durante a conferência Rio-92, o então governador do Estado do Amazonas deu dez casais de tambaqui de presente para a delegação chinesa”, lembra.
“Logo depois, o presidente chinês determinou que um time de pesquisadores fosse enviado ao Brasil, onde os cientistas aprenderam mais sobre a espécie e coletaram informações.”
“E, há alguns anos, a China começou a exportar a carne de tambaqui”, finaliza.
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