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Legenda da foto, Rebeca Andrade tornou-se em Paris 2024 a maior medalhista olímpica da história do Brasil — e chamou a atenção por sua calma antes de competições importantes

“Ah, eu estava viajando na maionese… Estava pensando nas receitas que eu vou fazer quando voltar para o Brasil. Eu pego um monte de receita na internet de comida pra fazer, mas eu não faço nenhuma […] Tem bolo, tem cookie, tem um monte de coisa.”

“Hoje não estava pensando em receita, porque assisti muita série ontem. Sonhei com a série que estava assistindo, Grey’s Anatomy. Sonhei que era médica, que estava operando.”

As frases acima, ditas pela ginasta Rebeca Andrade — que se tornou a maior medalhista da história do Brasil durante a Olimpíada de Paris 2024 — viraram memes e chamaram a atenção pela capacidade da atleta focar em outras coisas que vão além dos saltos e piruetas necessários para garantir boas notas e um lugar no pódio.

Para especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, a atitude de Andrade “presta um enorme serviço” à saúde mental e à psicologia esportiva — e revela como as emoções podem trabalhar a favor dos competidores de elite.

Mas como eles fazem isso na prática? E há algo que nós, que não praticamos esportes em altíssimo nível, podemos aprender com essas estratégias?

Para responder a essas perguntas, é preciso antes entender como o papel dos atletas se modificou ao longo da história dos Jogos Olímpicos.

‘Atletas empoderados como nunca’

A psicóloga Katia Rubio, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), aponta que é preciso entender a saúde mental no esporte diante de uma perspectiva histórica.

“Durante um bom tempo, os atletas eram desrespeitados na condição humana. Eles eram vistos como máquinas de produzir resultados e acabavam submetidos a qualquer estratégia para melhorar marcas e desempenhos”, avalia ela, que também coordena o Grupo de Estudos Olímpicos da USP.

Rubio divide a história dos jogos em alguns períodos. O primeiro vai de 1896 a 1914, quando se inicia a Primeira Guerra Mundial, em que a situação ainda era um pouco confusa e a proposta de um evento do tipo ainda não estava bem sedimentada.

Depois, de 1914 ao fim da Segunda Guerra Mundial, em meados de 1945, as competições já são reconhecidas como algo grande, de caráter internacional.

“Na sequência, tivemos a época da Guerra Fria, de 1948 até 1988, que coincide com a busca pela profissionalização, em que os atletas são mobilizados como ferramentas em prol de interesses nacionais, para metaforizar uma guerra que não acontecia no campo de batalha”, caracteriza a psicóloga.

No espaço de tempo que dura de 1988 a 2016 — ano em que a Olimpíada foi realizada no Rio de Janeiro — a pesquisadora observa uma transformação nos jogos. As competições viram “um grande produto” e os atletas “começam a ser reconhecidos como protagonistas do espetáculo”.

“A questão aqui já não são mais os interesses nacionais, mas, sim, o interesse pela marca olímpica”, diz ela.

Para Rubio, esse período sofreu um esgotamento a partir de 2016 — e as duas olimpíadas que ocorreram depois, em Tóquio (2021) e agora em Paris (2024), são marcadas por uma mudança profunda no posicionamento dos protagonistas do espetáculo.

“Os atletas começam a exigir respeito e não querem mais ser vistos como um produto, uma commodity, dentro desse sistema.”

“Nos jogos de Tóquio e Paris, eles estão mais empoderados do que nunca”, acredita a pesquisadora.

Um dos episódios que ilustra essa transformação recente envolve a ginasta americana Simone Biles, que em 2021 se afastou das competições pelas medalhas por questões relacionadas à saúde mental — a decisão causou um choque, já que ela era uma das grandes estrelas daquela Olimpíada, e motivou toda uma discussão sobre o papel do psicológico no desempenho dos atletas.

“Daí ela volta agora em 2024, em Paris, e dá um show”, complementa Rubio.

“Os atletas hoje têm poder sobre si mesmos. Há pouco tempo, as instituições determinavam o rumo da vida deles.”

Para a especialista, esse processo está relacionado em parte ao trabalho da psicologia esportiva.

“Nos tempos da Guerra Fria, a psicologia enxergava os atletas na condição de máquinas.”

Atualmente, dentro da chamada “psicologia social do esporte”, os competidores são vistos em primeiro lugar como seres humanos.

“Para que tenham um bom desempenho, os atletas precisam se reconhecer como indivíduos, dentro dos seus limites e potencialidades, para que possamos trabalhar em busca por objetivos”, explica Rubio.

“Quando a Rebeca faz as declarações sobre as receitas, ela presta um serviço imenso à psicologia. Ela mostra como os atletas não são ratos de laboratório para passar por um pretenso treinamento mental.”

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Legenda da foto, Nos jogos de Tóquio, Simone Biles fez história ao deixar a competição por questões relacionadas à saúde mental

Controle das emoções em prol da vitória

A abordagem psicológica mais atual usa algumas técnicas para aumentar a concentração ou controlar a ansiedade nos treinos e nas partidas ou eventos oficiais.

“No meu entender, esses objetivos são alcançados hoje em dia por um processo que envolve o autoconhecimento”, diz Rubio.

A psicóloga clínica e esportiva Fernanda Faggiani, professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), concorda.

“Dentro da clínica, trabalhamos para ajudar o atleta a identificar o que ele está sentindo e reconhecer os efeitos disso no corpo”, exemplifica ela.

“Isso permite que se perceba determinadas emoções que podem atrapalhar o desempenho”, complementa a especialista, que também integra o Grupo de Pesquisa em Estudos Olímpicos da PUC-RS.

As técnicas usadas por psicólogos ajudam os esportistas a focar no presente, no aqui e no agora. Essas ferramentas permitem que eles tenham a atenção 100% voltada ao que precisam fazer naquele momento para atingir determinados objetivos — como, por exemplo, realizar um saque perfeito ou encadear os movimentos precisos para atingir uma boa velocidade e ultrapassar os adversários.

“Também tentamos diferenciar o que está no controle do atleta e aquilo que foge da atuação dele, como a torcida, o adversário, a imprensa…”, continua Faggiani.

Para os momentos de ansiedade, o competidor aprende a observar sinais físicos, como taquicardia e falta de ar, e a fazer alguns exercícios básicos de respiração para ter calma e eventualmente até “domar” as batidas do coração.

Outra tática comum na psicologia esportiva é a estratégia de visualização. “Tentamos recriar imagens, cenários, movimentos e rotinas que o atleta gostaria que acontecesse ou que ele já fez”, explica a professora da PUC-RS.

Em alguns casos, o indivíduo fecha os olhos e refaz essas cenas na cabeça, como uma forma de reforçar o que precisa ser feito para ter sucesso.

Faggiani diz que a tática de Rebeca Andrade — de focar em coisas que vão além do esporte, como receitas ou seriados — também é algo muito inteligente.

“Não posso te garantir que isso seja um trabalho entre ela e a psicóloga que a acompanha, mas pensar em outras coisas além da competição é uma estratégia inteligente, saudável e eficaz para diminuir a ansiedade sem perder a concentração”, avalia ela.

“Isso permite que ela alivie a pressão e entre na competição mais relaxada.”

Aliás, Faggiani fez parte de um projeto que traduziu para o português um instrumento de avaliação de saúde mental de atletas elaborado originalmente pelo Comitê Olímpico Internacional (COI).

“Os atletas possuem um esquema especial de descanso, sono, treino, alimentação… Portanto, as ferramentas psicológicas que avaliam o público geral não são tão precisas quando aplicadas em esportistas”, compara ela.

A professora da PUC-RS passou por Paris durante as Olimpíadas, onde teve a oportunidade de avaliar a saúde mental de integrantes do time brasileiro. Os dados serão agora analisados e publicados posteriormente na forma de artigos científicos.

“Esperamos que esse material nos ajude futuramente a acompanhar nossos atletas de uma forma ainda melhor”, antevê ela.

Rubio acrescenta que o acompanhamento dos competidores exige um ajuste muito fino.

“Os atletas buscam o melhor de si todos os dias, mas precisamos lembrar que existem limites. Temos que tomar cuidado para não exagerar nos treinamentos e cair num estado de burnout“, pondera ela.

Aliás, a especialista lembra que o termo burnout, muito usado hoje em dia para descrever o esgotamento físico e emocional relacionado ao ambiente de trabalho, veio justamente da psicologia esportiva.

“Reconhecer os próprios limites é um primeiro passo. Outro é desafiar esses limites sem ultrapassar aquela linha de estouro”, complementa ela.

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Legenda da foto, Atletas precisam ter um alto nível de concentração durante jogos e provas

Os atributos de um campeão

Mas será que existem algumas características psicológicas que diferenciam um atleta olímpico? Há uma espécie de “perfil mental” que os torna obcecados na busca pela excelência — e pelos pódios?

Como parte de um projeto de pesquisa que já dura 20 anos, a professora Rubio teve a oportunidade de entrevistar 1,4 mil homens e mulheres que representaram o Brasil nos Jogos Olímpicos ao longo da história.

“Uma marca comum em todos eles é essa determinação em buscar um sonho”, resume ela.

A psicóloga vê nos relatos desses indivíduos algo parecido ao mito do herói.

“Quando crianças, ainda muito jovens, eles são reconhecidos por ter alguma habilidade diferenciada. Daí alguém diz: ‘você pode se tornar um atleta olímpico'”, relata ela.

“Pensar uma coisa dessas no Brasil, diante de toda a falta de estrutura esportiva, especialmente nos rincões do país, pode parecer até um delírio para muita gente.”

Após esse “chamado”, essas pessoas iniciam uma trajetória.

“Geralmente, o chamado é mais forte do que as adversidades. Muitos atletas me disseram que na cidade onde moravam não havia condições para treinar ou competir, e eles decidiram fazer outra coisa da vida. Mas, de repente, eles notavam que não estavam felizes”, detalha Rubio.

“Muitos, então, partem para uma grande aventura em busca de um clube. Depois, vão para as seleções nacionais e eventualmente chegam aos Jogos Olímpicos”, diz a pesquisadora.

Um estudo realizado por diversas instituições canadenses tentou desvendar quais são as características mais relevantes para os esportistas que buscam a excelência.

Após analisar tudo que havia sido publicado sobre o tema, os autores do trabalho publicado em 2021 criaram o chamado “perfil medalha de ouro da psicologia esportiva”, que reúne as competências mais importantes para um atleta de alto nível.

Esses atributos são divididos nas categorias ouro, prata e bronze, em alusão às medalhas, de acordo com o nível de importância que eles têm.

Na categoria ouro, que engloba as habilidades fundamentais, estão:

  • Motivação: as razões para a pessoa querer alcançar determinado objetivo;
  • Confiança: quanto o atleta acredita que consegue fazer determinadas coisas;
  • Resiliência: a capacidade de reagir e se adaptar às adversidades.

Essa informação, aliás, vai ao encontro do que a professora Rubio mencionou sobre a busca de sonhos tão comum entre os esportistas.

A categoria prata inclui as competências de autorregulação, ou quanto a pessoa consegue se controlar para completar as metas:

  • Autoconsciência: a introspecção e o entendimento de seu estado interno;
  • Regulação emocional: o ato de lidar com o estresse e com as pressões internas e externas;
  • Controle de atenção: capacidade de focar no que realmente importa, sem ligar para o adversário, a torcida ou outros fatores externos.

Por fim, a categoria bronze abarca as habilidades de relacionamento interpessoal:

  • Relação entre atleta e treinadores;
  • Liderança;
  • Trabalho em equipe;
  • Comunicação.

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Legenda da foto, Encontrar motivação e confiança são alguns dos atributos indispensáveis de um atleta de alto nível, mostra pesquisa

Balanço geral após a Olimpíada

Mas e se, mesmo com todo esse trabalho, a medalha não vem? Como fica a cabeça de atletas que se prepararam por anos e não conseguem o resultado que tanto almejavam?

Com o fim dos jogos, o esportista e a equipe de psicologia realizam uma avaliação dos resultados — o que deu certo, o que não funcionou, o que precisa ser trabalhado daqui para frente.

“Temos atletas que não conseguiram medalhas, mas fizeram a melhor marca da carreira deles. Ou seja, há uma vitória dentro daquela derrota”, destaca Rubio.

“Para aqueles que perderam porque não conseguiram fazer o seu melhor, esse é o momento de descobrir os motivos por trás disso e elaborar um significado para essa derrota.”

“É preciso internalizar o que aconteceu para que o atleta consiga se reconhecer naquilo em que falhou”, complementa a psicóloga.

A vitória, por outro lado, também pode representar um certo perigo.

“Primeiro, é preciso gozar a conquista. Muitas vezes, o atleta não tem tempo de festejar o que ganhou”, diz Rubio.

Passada a comemoração, é hora de refazer os planos para o próximo ciclo.

“Muitos competidores de alto nível dizem que, mais difícil que ganhar, é manter-se em primeiro lugar e encontrar a motivação para isso”, observa a professora.

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Legenda da foto, Aprender com as derrotas é uma maneira de encontrar caminhos para futuras vitórias, dizem psicólogas

Para Rubio, há pelo menos três coisas que os participantes de Olimpíadas podem ensinar para a população em geral.

“A primeira delas é que, todos dias ao acordar, você deve pensar no que quer fazer da vida. Se o atleta não tiver muita convicção de que deseja treinar para buscar o seu melhor, ele nem levanta da cama”, diz ela.

Para a professora, essa motivação envolve “ter um prazer imenso naquilo que você faz”.

“Eu já vi muitos profissionais de outras áreas que eram infelizes no trabalho. Mas são raríssimos os atletas que não estão satisfeitos”, observa ela.

O segundo aspecto envolve a disciplina. “Essa é uma característica central na vida do atleta: a capacidade de planejar e ter disposição de buscar sempre o melhor de si.”

“E isso não tem a ver com competir. Buscar o melhor não está relacionado ao outro, mas a si mesmo”, diferencia ela.

Em terceiro lugar, a psicóloga chama a atenção para aquilo que ela considera um grande tabu do mundo contemporâneo: a derrota.

“Não conheço nenhum atleta que ganhou sempre. E isso é uma questão que devemos trazer para nossas vidas: como aprender com as derrotas?”, pergunta ela.

Já Faggiani cita o exemplo dado por duas medalhistas brasileiras nos jogos de Paris: Rayssa Leal, bronze no skate street, e a própria Rebeca Andrade deram diversas declarações em que enfatizaram o apoio psicológico que recebem.

Há também os casos de Gabriel Medina, bronze no surfe, e da própria Simone Biles, multimedalhista pelos Estados Unidos. Ambos chegaram a se afastar de competições importantes nos últimos anos para cuidar da cabeça — e brilharam nas competições olímpicas de 2024.

“Espero que todos esses exemplos ajudem a reforçar a importância da saúde mental não só nas competições, mas na vida de todas as pessoas”, diz a pesquisadora da PUC-RS.

“O acompanhamento psicológico não é importante só em momentos de crise e não resolve os problemas do dia para a noite. Trata-se de um trabalho de longo prazo.”

“Espero que essa se torne uma das grandes lições deixadas por esses Jogos Olímpicos”, conclui ela.