- Marcia Carmo
- De Buenos Aires para a BBC News Brasil
A tentativa de assassinato contra a vice-presidente da Argentina, Cristina Kirchner, na noite de quinta-feira (1/9), colocou mais lenha na fogueira da crise política no país.
O ataque ocorreu quando o país acompanhava, até poucos dias, as críticas públicas da vice-presidente contra os rumos do governo liderado pelo presidente Alberto Fernández. A inflação, que este ano deve chegar a 90%, está entre as maiores preocupações dos argentinos.
Além disso, o atentado foi realizado apenas dez dias depois de o Ministério Público pedir 12 anos de prisão para a ex-presidente por supostas irregularidades nos tempos em que governou o país.
Na quinta-feira, num primeiro momento, após o choque que a notícia do atentado contra Kirchner provocou entre os argentinos, o governo inteiro e a oposição pareciam estar do mesmo lado, com discursos contra a “violência política” e o “repúdio generalizado” à tentativa fracassada de assassinato contra a vice-presidente.
Logo depois, na mesma noite, porém, o ambiente de unidade deu lugar a um novo bombardeio de críticas de um lado e do outro, entre governistas e opositores.
Em um discurso em cadeia nacional de rádio e de televisão, o presidente Alberto Fernández atribuiu a setores políticos, à Justiça e à imprensa o momento delicado vivido pelo país.
“Estamos obrigados a recuperar a convivência democrática que se quebrou com o discurso de ódio espalhado por parte de diferentes setores políticos, judiciais e midiáticos da sociedade argentina”, disse o presidente.
Fernández afirmou que os discursos de ódio acabam gerando violência. Imediatamente após sua fala, a presidente do partido opositor, PRO, Patricia Bullrich, escreveu em suas redes sociais que “o presidente está brincando com fogo”.
Segundo ela, em vez de investigar um caso grave, Fernández preferiu “acusar a oposição e a imprensa e decretar feriado nacional para mobilizar militantes”. “Isso é lamentável”.
Na sexta-feira (2/9), a troca de farpas públicas entre o governo e a oposição continuou. O deputado federal Germán Martínez, líder da bancada Frente para a Vitória (FPV), na Câmara dos Deputados, disse que a ação de Fernando Sabag Montiel com uma pistola contra Kirchner deveria servir de motivo para a “reflexão” de todos os setores políticos
“Todos os setores políticos temos que refletir sobre o que está acontecendo. Meu próprio carro foi agredido três vezes. Temos que rejeitar com contundência o que aconteceu e iniciar uma convivência social diferente. Agradeço cada apoio dado a Cristina, inclusive da oposição”, disse Martínez.
Apesar das diferenças de discursos entre políticos governistas e opositores, uma multidão lotou as ruas e avenidas do centro de Buenos Aires e a Praça de Maio, que fica em frente à Casa Rosada, a sede da Presidência do país.
Jovens, adultos, famílias inteiras diziam estar participando da manifestação “em apoio à democracia” e “contra a violência”.
Nos últimos onze dias, apoiadores da vice-presidente passaram a se reunir nos arredores do edifício onde ela mora, no bairro da Recoleta, desde que o Ministério Público pediu que ela fosse condenada por supostos casos de corrupção no período em que foi presidente do país.
Cristina ainda pode recorrer da decisão que, segundo especialistas, seria resolvida pela Suprema Corte de Justiça. Em longas declarações, diante das câmeras de televisão, na semana passada, ela negou as acusações e afirmou ser fruto de perseguições opositoras.
Crise econômica
Este ambiente ocorre quando a inflação é a maior preocupação dos argentinos, de acordo com analistas políticos. Ouvidos pela BBC News Brasil, os analistas Marcos Novaro, professor de Ciências Políticas da Universidade de Buenos Aires (UBA) e comentarista da emissora de televisão TN disse que a polarização deve crescer ainda mais após o episódio de quinta-feira.
“A sociedade vai tentar não entrar no círculo de ódio e de polarização. Mas, enquanto isso, a nossa percepção é que os governistas estão, de certa forma, focados no contrário, tentando usar isso para dar mais estabilidade a Cristina, para fazer mais confrontação ainda contra a Justiça e em favor dela”, disse Novaro.
Para o analista, o governo pretende “blindar” a ex-presidente das ameaças reais que ela sofreu, quando ocorreram falhas no esquema de segurança na porta de sua casa, e também da mira da Justiça.
Para o analista Jorge Giacobbe, a transmissão em cadeia nacional realizada pelo presidente acabou “disparando” reação da oposição, quando o caminho poderia ter sido a oportunidade de diálogo em momento de crise. Na sua visão, os argentinos estão sendo desafiados, a partir do atentado fracassado, a serem “maduros” diante dos problemas.
Ele sugeriu que não seria o momento de se colocar ainda mais lenha no fogo. “Alberto Fernández deveria estar convocando a oposição para um diálogo amplo e sério e não ter decretado um feriado para apoiar a Cristina”, disse o ex-deputado e cientista político Julio Bárbaro.
O analista Rosendo Fraga, do Centro de Estudos Nova Maioria, avalia que a polarização vai aumentar a partir do atentado. “Grupos kirchneristas e contra o kirchnerismo já intensificaram suas trocas de agressões nas redes sociais. E os que a apoiam voltaram a pedir que ela seja candidata à Presidência em 2023”, disse Fraga.
Ao mesmo tempo, o governo realizou uma reunião ministerial, logo cedo na sexta-feira, para analisar, segundo fontes do governo, a “gravidade” do momento argentino e da preocupação com a violência.
Em seu pronunciamento à nação, Alberto Fernández tinha condenado os que definiu como estimuladores do discurso de ódio.
Na tarde de sexta-feira, o presidente e Cristina se reuniram durante mais de 40 minutos analisando, de acordo com fontes do governo, o quadro atual do país, após o atentado em que ela foi salva por um triz, segundo imagens registradas por seus apoiadores e reproduzidas pelas emissoras de televisão.
Após o atentado, o sistema de segurança da ex-presidente passou a ser questionado por especialistas que viram falhas na sua proteção que permitiram que Fernando Andrés Sabag Montiel ficasse a poucos centímetros dela e com pistola em punho.
De acordo com dois amigos de Sabag Montiel, em declarações às emissoras locais de TV, ele seria um “lobo solitário”. “É difícil inclui-lo no perfil dos que odeiam a Cristina Kirchner. Ele era solitário e muitas vezes coisas para chamar a atenção. Não me surpreende o que aconteceu”, disse um deles a uma TV.
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