A aprovação na Câmara dos Deputados do novo arcabouço fiscal foi uma vitória de uma aliança tida até pouco tempo atrás como improvável entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) e boa parte do chamado Centrão, bloco que deu sustentação ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no seu governo.
Apesar de ainda não contar com uma base parlamentar considerada sólida por analistas ouvidos pela BBC News Brasil, o governo conseguiu a aprovação do projeto com 372 votos a favor, 108 votos contrários e 1 abstenção.
A votação dos destaques – sugestões de alterações no projeto de lei – está prevista para a quarta-feira (24/05). Depois, ele será votado no Senado e, se aprovado, vai para sanção presidencial.
O novo arcabouço fiscal é o conjunto de regras que vai nortear como o governo federal poderá gastar os recursos públicos e fazer investimentos.
Ele substitui o chamado teto de gastos, aprovado em 2016 no governo de Michel Temer (MDB) e que condicionava o aumento das despesas públicas ao crescimento da inflação.
Em linhas gerais, o novo marco regulatório determina:
- um limite para o crescimento dos gastos públicos de 70% do crescimento da arrecadação anual do governo. Se a arrecadação aumentar 1%, as despesas só poderão aumentar 0,7%, por exemplo;
- um intervalo fixo no crescimento dos gastos do governo, que varia de 0,6% a 2,5% nos cenários em que houver aumento significativo da arrecadação.
O presidente da Câmara indicou como relator o deputado Cláudio Cajado (PP-BA), considerado um homem de sua confiança.
Foi também sob sua chancela que o projeto foi aprovado em regime de urgência e por isso não teve de passar pelas comissões temáticas como acontece na tramitação normal.
A articulação entre o governo e Lira fez com que o projeto fosse aprovado com folga. Eram necessários 257 votos no mínimo, e a matéria teve 115 a mais.
Outro fato relevante durante a votação foi o PL, partido de Bolsonaro, ter liberado sua bancada, a maior da Câmara com 99 parlamentares, para votar como quiser. Quase um terço (29) dos deputados da legenda votaram a favor do arcabouço de Lula.
Analistas alertam, no entanto, que a vitória na noite de terça-feira não significa, necessariamente, que o governo Lula conseguiu consolidar uma bancada fiel.
Sua avaliação é que foi uma convergência circunstancial: tanto Lula quanto Lira (e o Centrão, sobre o qual ele exerce influência) tinham interesse que a pauta avançasse – um curioso alinhamento que pode não se repetir e provavelmente deve ser negociado projeto a projeto.
Histórico de tensão
A expectativa em torno das relações entre Lula e Lira era de tensão mesmo antes de o petista ser eleito, em outubro do ano passado.
Lira foi um dos principais apoiadores da reeleição de Bolsonaro em 2022. Apesar disso, ele foi uma das primeiras lideranças políticas a reconhecer a vitória de Lula.
O presidente da Câmara também foi considerado o principal líder do chamado “orçamento secreto”, como ficaram conhecidas as emendas de relator, que direcionavam recursos do orçamento e foram criticadas pela falta de transparência sobre sua autoria.
Durante a campanha eleitoral de 2022, Lula chegou a dizer que o “orçamento secreto” era “a maior vergonha” do Brasil.
O “orçamento secreto” foi considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em dezembro.
Lira foi reeleito em 2022 e já no final daquele ano passou a ser apontado como o principal candidato ao comando da atual legislatura, que vai até 2025.
Na formação do governo, Lula tentou atrair partidos do Centrão para a administração federal. A estratégia foi vista como uma forma de enfraquecer a oposição no Parlamento.
Mesmo assim, a percepção de analistas era de que a distribuição de ministérios não seria suficiente para obter a base parlamentar que o Planalto desejava.
Lula e seus aliados mais próximos passaram a adotar uma postura de “não agressão” em relação a Lira.
Um dos exemplos foi o não lançamento pelo PT de uma candidatura para a presidência da Câmara e o apoio do partido à chapa de Lira.
Mas, apesar de todos os cuidados, nos últimos cinco meses já houve episódios em que as diferenças entre governo e Lira ficaram evidentes.
Em uma entrevista ao jornal O Globo no dia 30 de abril deste ano, Lira criticou a articulação política do governo. Segundo ele, oferecer ministérios aos partidos não resolveria o problema.
“Houve uma acomodação e a formatação de um governo de coalizão, com troca de ministérios por apoios, que está comprovado que não vai dar certo. As emendas resolvem isto sem ser necessário um ministério”, afirmou.
O episódio mais evidente dessa tensão foi a derrubada de decretos assinados que mudaram pontos do Marco do Saneamento Básico, no início de maio.
O marco legal havia sido aprovado pelo Congresso Nacional em 2020, e a tentativa de mudança feita por decretos foi vista pelos parlamentares como uma afronta ao Parlamento.
Em 3 de maio, com aval de Lira, a Câmara aprovou um projeto que derrubou parte dos decretos assinados por Lula.
A votação foi considerada a primeira grande derrota parlamentar do governo e acendeu a “luz amarela”.
Na mesma entrevista ao jornal O Globo, Lira criticou o governo.
“O Congresso foi eleito num viés totalmente diferente do Executivo. Existem as questões do governo como, por exemplo, as alterações no Marco do Saneamento por meio de decretos. O Congresso não aceita que uma lei seja alterada assim”, disse.
A origem da aliança
Mas com tantos pontos de tensão na relação entre Lira e Lula, o que levou à aliança na votação do arcabouço fiscal?
Para a professora de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Carla Beni, a união improvável entre Lira e Lula na votação do arcabouço fiscal ocorreu porque a pauta era importante tanto para um quanto para outro.
“Acredito que sem o apoio de Lira e de (Rodrigo Pacheco), esse arcabouço não seria aprovado. Houve uma guinada muito forte à direita nas eleições para o Parlamento, e o empenho de Lira foi fundamental. Mas isso aconteceu porque o arcabouço também era importante para Lira”, afirma.
Ela conta que a definição sobre um novo marco fiscal já havia sido feita ainda no ano passado, quando, com o apoio de Lira, o Congresso Nacional aprovou a proposta de emenda constitucional (PEC) da Transição.
Isso garantiu recursos para o governo federal pagar despesas pendentes, mas obrigou Lula a aprovar um novo conjunto de regras fiscais ainda neste ano.
Beni explica que um dos pontos centrais na discussão sobre o orçamento é a distribuição de verbas por meio de emendas parlamentares. Segundo ela, esse é um dos meios pelos quais Lira exerce influência sobre as bancadas na Câmara.
Dessa forma, segundo ela, aprovar o arcabouço fiscal era importante para Lira porque, assim, haveria alguma previsibilidade sobre a quantidade de recursos disponíveis para as emendas.
“Na discussão das despesas do governo, temos duas linhas: as obrigatórias e as não obrigatórias. É nessas despesas não obrigatórias que se definem as emendas parlamentares. Financeiramente, é um volume de recursos muito grande”, afirmou Carla Beni.
Para a professora de Ciência Política na Universidade Federal de Alagoas (UFAL) Luciana Santana, outro elemento que fez com que Lira aderisse à pauta do governo Lula foi a sua ligação com atores econômicos.
“O que leva Arthur Lira a aprovar esse projeto é a pressão dos agentes econômicos que não estão relacionados apenas a essa pauta, mas que pressionam por uma pauta de responsabilidade fiscal como é o novo arcabouço fiscal”, afirmou.
Tanto Carla Beni quanto Luciana Santana avaliam que a união entre Lula e Lira na aprovação do arcabouço fiscal não significa que a governabilidade do terceiro mandato de Lula está garantida e que as votações terão que ser discutidas caso a caso.
“Não há uma aliança perene entre Lula e Lira. Penso que todas essas alianças serão temporárias, momentâneas e de acordo com o tema, a relevância e a urgência dos temas”, afirmou.
Luciana Santana pontua que, até o momento, os fatos mostrariam que as alianças entre Lira e o governo Lula se dariam “pauta a pauta”. Ela disse, no entanto, que novas circunstâncias podem aproximar o presidente da Câmara do governo.
“Não dá pra gente dizer como essas alianças serão no futuro. Hoje, o que a gente consegue notar é que essas alianças são pauta a pauta. Mas isso pode mudar a depender das barganhas que forem feitas entre ele ou seu partido com o governo. Isso envolve barganhas ou ocupação de cargos”, afirma.
Projeto teve boa recepção inicial
O governo apresentou a proposta do arcabouço fiscal em 30 de março. Na data, o mercado reagiu bem ao anúncio: o Ibovespa, principal índice de ações da Bolsa brasileira, fechou em alta de 1,89%.
Entrevistados pela BBC News Brasil avaliaram que o governo fez um bom trabalho ao procurar previamente as lideranças da Câmara e do Senado para apresentar seu plano e colher sugestões.
A política anterior, o Teto de Gastos, adotada’ no governo Michel Temer, estabelecia que o crescimento das despesas do governo ficava limitado ao aumento da inflação no ano anterior.
Mas, com o passar dos anos, o Congresso aprovou mudanças na Constituição para criar exceções ao limite de gastos — como em 2022, para permitir o aumento do Auxílio Brasil, o que na prática acabou com o cumprimento do teto.
Também nos últimos anos, o governo federal tem registrado déficits primários — ou seja, tem gastado mais do que arrecada, o que resulta em aumento da dívida pública.
Com o arcabouço seja aprovado, assim como algumas medidas anunciadas para elevar arrecadação, o Ministério da Fazenda prevê zerar o rombo em 2024.
O governo viu ainda, na proposta do arcabouço fiscal, uma oportunidade de sentir a temperatura do seu apoio no Congresso, de expandir gastos em programas sociais e em investimentos e de estimular a redução da taxa básica de juros (Selic) pelo Banco Central.
Isso porque, quando o governo limita a expansão das suas despesas, ele contribui para aquecer menos a atividade econômica, desacelerando a alta dos preços.
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