- Author, Thais Carrança
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
- Twitter, @tcarran
“Vocês falam da Shein como se eu conhecesse. Eu não conheço a Shein. O que eu sei é o seguinte: o único portal que eu conheço é o da Amazon, porque eu compro todo dia um livro, pelo menos”, disse o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, durante viagem à China em abril.
A afirmação foi feita a jornalistas em meio à polêmica sobre a taxação de varejistas virtuais asiáticas, acusadas por Haddad de praticar “concorrência desleal”, ao burlar uma isenção de impostos para remessas internacionais de até US$ 50, destinada a pessoas físicas.
A fala repercutiu mal num cenário onde a Shein já domina 27% do comércio eletrônico de roupas e calçados no Brasil e 5% de todo o varejo de vestuário, segundo cálculo do Itaú BBA — a varejista também anunciou em meados de abril a intenção de instalar fábrica própria no país.
Mas a frase de Haddad foi considerada particularmente infeliz em um outro mercado brasileiro: o de livros.
“Dói ouvir [a fala de Haddad citando a Amazon] quando você está dentro de uma livraria”, diz Felipe Stefani Beirigo, um dos sócios da Livraria Simples, localizada no bairro paulistano do Bixiga.
“Ele pisou num vespeiro: todos os amigos que têm livrarias pequenas ou trabalham em uma ficaram extremamente magoados. Pega muito mal o ministro citar uma empresa dessas, quando eu tenho certeza de que ele sabe que a Amazon faz dumping e precariza o trabalhador.”
Dumping é a venda de produtos a preços abaixo do custo de produção, com objetivo de eliminar a concorrência e conquistar fatia maior de mercado.
Proprietários de livrarias e editoras independentes acusam a Amazon da prática, num contexto em que a empresa — que começou a vender livros em papel no Brasil em agosto de 2014 —, dominou este mercado em apenas nove anos, graças a uma combinação de descontos agressivos e eficiência logística, que garante uma das entregas mais rápidas do mercado.
Procurada, a Amazon refuta a alegação. “Nosso objetivo é sempre fomentar o mercado livreiro e entendemos que deve haver espaço e oportunidades para todos. Acreditamos que autores, editores e livreiros trabalham juntos para conectar os leitores aos livros. Todos dentro de um amplo cenário de estímulo ao segmento e boas práticas empresariais”, diz a empresa, em nota.
Entenda como a Amazon dominou a venda de livros no Brasil em nove anos e porque a hegemonia da empresa no mercado livreiro nacional divide opiniões.
Do zero à liderança de mercado
Fundada em 1994 em Seattle, nos Estados Unidos, a Amazon chegou ao Brasil em 2012, vendendo inicialmente apenas livros eletrônicos.
Em 2014, a varejista passou a vender livros em papel, entrando em eletroeletrônicos em 2017 e instalando seu primeiro centro de distribuição no país em 2019.
Até agosto de 2022, a empresa já contava com 12 centros de distribuição, em 7 Estados, além de cinco estações de entrega.
As vendas da empresa no país eram estimadas em R$ 3,8 bilhões em 2021 ou R$ 10 bilhões considerando também as vendas de terceiros em seu marketplace, segundo estimativas da SBVC (Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo) e da consultoria Varese Retail.
Embora a Amazon ainda seja muito menor do que as líderes do varejo eletrônico brasileiro – Mercado Livre (com R$ 68 bilhões em vendas), Americanas (R$ 42,2 bilhões, antes da crise atual), Magazine Luiza (R$ 39,8 bilhões) e Via (R$ 26,4 bilhões), segundo a SBVC –, ela tomou rapidamente a dianteira na venda online de livros, com um empurrão adicional proporcionado pela pandemia.
Conforme estimativa da plataforma Statista, especializada em dados de mercado, ainda em 2019, a Amazon já concentrava metade das vendas online de livros e 80% das vendas de e-books no Brasil.
A varejista não confirma os números, dizendo que “não abre dados específicos de mercado”.
Nos anos seguintes, o avanço da Amazon pode ser inferido pelo ganho de participação do canal “livrarias exclusivamente virtuais” nas vendas de livros no país, conforme pesquisa produzida pela Nielsen BookData para o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel).
A Nielsen não divulga dados separados por empresa, mas é neste segmento que estão varejistas online como Amazon e Submarino, por exemplo.
Em 2019, o canal respondia por 12,7% das vendas de livros no Brasil, atrás de livrarias (41,6%) e distribuidoras (22,9%) — considerando dados de faturamento.
Em 2021, as livrarias exclusivamente virtuais (29,9%) já empatavam com as livrarias tradicionais (30%) no faturamento das editoras, considerando todos os tipos de livros, incluindo técnicos e didáticos.
Considerando apenas a categoria de obras gerais (que inclui os livros de literatura, biografias, entre outros), as livrarias exclusivamente virtuais já superam as tradicionais, representando 47,6% do faturamento das editoras brasileiras neste segmento em 2021, ante 13,7% em 2019, antes da pandemia.
Neste mesmo intervalo, entre 2019 e 2021, a fatia das livrarias tradicionais na venda de obras gerais encolheu de 57,9% para 29,3%.
Assim, em pouco menos de nove anos, em meio à pandemia e à derrocada de redes como Livraria Cultura, Saraiva e Americanas (dona do Submarino), a Amazon se tornou hegemônica no mercado brasileiros de livros, desbancando a concorrência com descontos inigualáveis.
Livrarias e pequenas editoras ‘sufocadas’
“A Amazon é um reflexo do tempo em que vivemos”, diz Beirigo, da Livraria Simples.
“Do ‘eu quero agora, quero rápido e quero pagar muito pouco por isso'”, afirma.
Para o livreiro, os descontos oferecidos pela Amazon “deseducam” os leitores quanto ao preço real dos livros.
“Um livro sai da editora a R$ 100, a livraria revende por esse preço sugerido. Mas se a Amazon vende por R$ 30, o consumidor acha que o livro vale isso”, exemplifica.
“É uma concorrência extremamente desleal, já que a Amazon é uma gigante, com vários centros de distribuição espalhados pelo país, versus livrarias pequenas, que têm estruturas de operação e logística minúsculas.”
Embora o impacto maior da Amazon seja sobre as livrarias, a varejista afeta a cadeia de livros como um todo, afirma Tadeu Breda, dono da editora Elefante — que publicou em 2020 o livro Contra Amazon e Outros Ensaios sobre a Humanidade dos Livros, do escritor espanhol Jorge Carrión.
“É uma incógnita como funciona o algoritmo da Amazon, como eles calculam os descontos oferecidos”, diz Breda. “Às vezes ela vende a preços que eu mesmo que produzi os livros não conseguiria vender. Não é sustentável.”
Ao passar a representar mais de 50% das vendas para muitas editoras, a Amazon usa seu poder de barganha para obter descontos cada vez maiores, observa o editor.
Foi o que aconteceu, por exemplo, em 2021, quando a varejista encaminhou carta a seus fornecedores pedindo de 55% a 58% de desconto, mais 5% de “verba de marketing”, gerando forte reação das editoras.
Breda observa que o preço de capa em geral é calculado de forma que a editora fique com 50% do valor do livro. Com essa fatia, a empresa arca com custos como aluguel, funcionários, direitos autorais, custos de impressão e tradução, no caso de obras estrangeiras.
Assim, a pressão por descontos tem um efeito perverso, diz o editor.
“Ela vai sufocando as editoras, com descontos cada vez maiores. Para compensar financeiramente esse desconto maior dado à Amazon, o preço de capa do livro padrão tem que subir necessariamente, sobretudo nas outras livrarias. É um efeito totalmente perverso, porque ela [a Amazon] vai ficando cada vez mais competitiva e os competidores, cada vez menos.”
Breda avalia que a Amazon dá descontos tão elevados porque vender livros não é seu negócio principal. Segundo o editor, a varejista usa a venda de livros como uma estratégia para obter cadastros de clientes com alto potencial de consumo.
“O que eles fazem é atrair compradores com preços obscenos, desbancar a concorrência e usar os dados dos clientes para, com seus robôs e algoritmos de última geração, continuar bombardeando e vendendo de tudo — inclusive mais livros —, até que um dia não haja mais concorrência e eles possam aumentar os preços tranquilamente, potencializando seus lucros”, escreveu Breda, em texto intitulado Amazon destrói, publicado no site da editora Elefante.
Questionada sobre as críticas de livreiros e editores, a Amazon afirmou em nota:
“Acreditamos que a leitura é essencial para uma sociedade saudável e nossa missão é inspirar os leitores, tornando mais fácil ler. Dentro do mercado livreiro, enxergamos que existem duas partes importantes: leitores e autores. O resto de nós é apenas uma forma de conectar esses dois lados. Qualquer pessoa ou empresa que promova a leitura beneficia todo o ecossistema.”
‘Amazon cresce no amadorismo de muitas livrarias’
Tomaz Adour, fundador da editora Vermelho Marinho e presidente da Libre (Liga Brasileira de Editoras), organização que reúne 170 editoras independentes, afirma que o impacto da Amazon para o mercado livreiro brasileiro é uma questão complexa, com muitas nuances.
“A Amazon é a maior player mundial de livros. Nas editoras da Libre, em muitas, ela representa mais de 50% [das vendas]”, diz Adour.
“Isso aconteceu porque, durante a pandemia e com a quebra da Saraiva e da Cultura, a Amazon dominou o mercado. E como ela é uma empresa muito capitalizada, ela adiantou dinheiro para muitos editores que estavam apertadíssimos.”
Outro diferencial da Amazon, segundo o presidente da Libre, é que ela compra os livros, não faz consignação — modelo de negócio em que a editora deixa os livros para serem vendidos pelas livrarias, mas só recebe pelos produtos depois que eles são efetivamente comprados pelos clientes.
“A Amazon paga. Ela paga em dia, paga direitinho e às vezes paga à vista”, reconhece Breda, da editora Elefante.
“Então ela cresce também devido ao amadorismo de muitas livrarias, as editoras estão cansadas de tomar calote ou de mandar livros em consignação e recebê-los de volta danificados e inutilizados”, relata o editor.
Carlo Carrenho, consultor editorial e fundador do site especializado PublishNews, avalia que a entrada da Amazon dinamizou o mercado livreiro brasileiro.
“Ela força um mercado que é extremamente tradicional e acomodado a melhorar. É inegável que a logística de entrega de livros no Brasil melhorou com a entrada da Amazon”, afirma.
“É inegável também que ficou mais fácil para o consumidor comprar um livro online, então ela traz várias vantagens. O problema é que a Amazon é tão boa que ela tende ao monopólio, o que é uma consequência do capitalismo. E qualquer monopólio é ruim, porque de posse de todo esse poder, ela pode exigir coisas que prejudiquem a cadeia do livro”, diz Carrenho.
“Então eu brinco que o problema da Amazon é que só existe uma.”
Lei do Preço Fixo
Desde a entrada da Amazon na venda de livros em papel no Brasil, o setor reivindica uma Lei do Preço Fixo que limitaria a 10% os descontos sobre livros no primeiro ano a partir do lançamento.
Segundo os defensores da proposta, ela tornaria mais justa a competição entre livrarias e varejo digital. De acordo com a Libre, o modelo é adotado em países como França, Alemanha, Argentina, Coreia do Sul, Dinamarca, Espanha, Grécia, Itália, Japão, México, Holanda e Portugal.
Dante José Alexandre Cid, presidente do Snel (Sindicato Nacional dos Editores de Livros), entidade que representa as grandes editoras, tem defendido a proposta, argumentando que ela pode deixar o livro mais barato no país.
“Quando você sabe que o seu produto será vendido com descontos de até 40%, 50%, é natural aumentar o preço final para compensar os custos da cadeia produtiva. Se não houver mais descontos de 50%, ninguém vai precificar acima da capacidade de pagamento das pessoas”, disse Cid, em entrevista ao jornal O Globo.
“Todo mundo já entendeu que é melhor que o livro seja acessível a todos do que cobrar caro e vender pouco. Com a Lei do Preço Fixo, o livro pode ficar mais barato, não mais caro. Ninguém quer que ele seja um produto elitizado.”
Carlo Carrenho discorda e avalia que a lei penalizaria o leitor mais pobre.
“É claro que o preço fixo ajuda as livrarias independentes, mas ele tem efeitos colaterais graves, que não justificam as vantagens que traz”, argumenta.
Segundo o consultor editorial, o principal efeito colateral é que os grandes best sellers, que são os livros mais populares, vão perder desconto, enquanto os livros de menores tiragens serão pouco afetados.
“De certa forma, você estará fazendo a classe baixa brasileira subsidiar a classe média”, afirma.
Carrenho argumenta ainda que o preço fixo não resolve o problema do monopólio da Amazon.
“Ela tem capacidade de marketing, algoritmos e um serviço melhor, então não é o preço fixo que vai resolver o problema. A Amazon consegue nadar de braçada em mercados que têm preço fixo, como Alemanha e França, por exemplo”, cita.
Questionada pela BBC News Brasil sobre a possibilidade de uma Lei do Preço Fixo no Brasil, a Amazon respondeu que “não especula sobre o futuro”.
“A Amazon Brasil seguirá sempre em conformidade com as leis brasileiras, em busca de trazer a melhor experiência para seus consumidores”, disse a empresa.
Por que o livro é tão caro no Brasil?
O preço do livro é a questão central na disputa entre Amazon e o mercado livreiro brasileiro.
Segundo a pesquisa Retratos da Leitura, realizada pelo Ibope Inteligência para o Instituto Pró-Livro e o Itaú Cultural, também é um dos fatores com mais influência na escolha de um livro para compra, citado por 22% dos leitores.
Para Tadeu Breda, da Elefante, um dos principais fatores para o atual preço elevado do livro no Brasil é o custo do papel utilizado para impressão.
“No Brasil, o preço do papel flutua muito com a cotação do dólar. Então a gente precisaria ter controles. Estabelecer, por exemplos, usos estratégicos para que o papel produzido no país não ficasse à mercê de flutuações internacionais”, defende o editor.
Para Breda, o custo de envio de livros pelos Correios é outro fator que pesa para as pequenas editoras. Seria desejável, segundo ele, uma política de barateamento para a postagem do produto.
“Precisamos de incentivos, de linhas de crédito, editais de fomento. São necessários programas permanentes que fomentem o trabalho editorial e o acesso ao livro. Assim podemos começar a ter um país de leitores de massa, o que hoje em dia estamos muito longe de ter”, afirma o editor.
Tomaz Adour, da Libre, também defende a necessidade da retomada das políticas de incentivo ao livro e à leitura.
Ele cita como exemplo a compra pública de livros para bibliotecas escolares, para fazer cumprir a Lei 12.244/2010 (Lei da Universalização das Bibliotecas Escolares), que determinou que todas as instituições de ensino do país — públicas e privadas — tenham bibliotecas com acervo mínimo de um título para cada aluno matriculado.
Carlo Carrenho cita as pequenas tiragens como um outro ponto que pesa nos preços dos livros no Brasil.
“Quantos menos pessoas leem um livro, os custos fixos ficam menos diluídos. Como temos produções muito baixas, esse é outro motivo que deixa os livros caros”, diz o consultor.
Para Carrenho, o Estado deve atuar para combater monopólios de todos os tipos, mas uma solução para fortalecer as pequenas livrarias e editoras pode vir da iniciativa privada, não do governo.
Ele cita como exemplo o site americano Bookshop.org, que se fortaleceu durante a pandemia como uma alternativa à Amazon.
O site oferece recursos de vendas online para livrarias independentes, distribui parte dos lucros diretamente aos lojistas e já reúne cerca de 2.200 livreiros nos EUA e Reino Unido, segundo reportagem recente da revista Wired.
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