- Author, Letícia Mori
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
- Twitter, @_leticiamori
-
O município de São Sebastião, o mais afetado pelos temporais que atingiram o litoral norte de São Paulo, tem um plano municipal de redução de riscos elaborado em 2018 pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) que considerava os piores cenários com base nas chuvas mais intensas registradas na cidade.
A quantidade de chuva que a região recebeu no último fim de semana, no entanto, foi muito acima do evento mais extremo da história recente.
Em 24h, a região recebeu 640 mm de chuva, número três vezes maior que os 179 mm precipitados em 2014, durante a chuva mais intensa registrada nas últimas décadas.
O tamanho da tragédia no litoral – o total de mortos já chegou a 49 e equipes ainda buscam pessoas soterradas – tem sido apontado por especialistas como resultado de desigualdade, da falta de investimentos em habitação e de falhas no sistema de avisos de emergência.
Enquanto a população e os órgãos de fiscalização cobram as prefeituras e o governo do Estado de São Paulo por sua atuação – ou falta dela -, o volume de chuva acende um alerta para pesquisadores: como estudar e se preparar para o aumento dos eventos climáticos extremos e cenários cada vez mais imprevisíveis?
Alerta
Embora sejam necessários estudos para determinar se o evento específico do último fim de semana teve relação direta com as mudanças climáticas, já é um consenso científico que o aquecimento global tem aumentado a frequência e a intensidade de eventos climáticos extremos – como mostram os relatórios do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas).
Em entrevista à BBC News Brasil, o meteorologista Marcelo Sluchi afirmou que acredita que possa haver relação entre as chuvas do fim de semana e o aquecimento do planeta.
“Um aumento da temperatura traz um aumento de vapor. Ou seja, para países tropicais como o Brasil, uma mudança de 1ºC significa muito mais vapor do que aumentar 1ºC na Antártida ou na Patagônia”, afirmou.
“Você torna o clima tropical mais úmido, mais quente e mais instável. Uma mesma frente fria consegue provocar hoje mais chuva do que há 100, 200 anos. E para piorar, as frentes frias estão ficando mais intensas em algumas circunstâncias”, disse ele. “Não é uma situação normal, e justamente as mudanças climáticas determinam um novo normal, né?”
“Esta chuva de 2023 e outras dos últimos anos têm mostrado que diminuiu muito o intervalo de recorrência de eventos extremos, que antes era de 100, de 200 anos”, afirma Alessandra Corsi, pesquisadora da seção de investigações, riscos e gerenciamento ambiental do IPT.
Corsi diz acreditar que, mesmo que São Sebastião tivesse implementado todas as recomendações feitas no plano municipal de redução de riscos de 2018, a cidade ainda assim teria tido um desafio em lidar com o volume de chuvas registrado no último fim de semana.
“Minha opinião é que, mesmo que a cidade tivesse colocado tudo em prática, alguma coisa ainda assim iria acontecer”, diz ela.
Corsi explica que os deslizamentos chegaram a atingir áreas além das que haviam sido mapeadas na região da Vila Sahy.
“A área atingida depende de uma série de fatores como altura da encosta, volume pluviométrico. Se você tem um acumulado de chuvas de 80 mm, 100 mm (que já eram cenários extremos) o porte do deslizamento vai ser diferente”, explica.
O evento climático do último fim de semana foi mais um dos que acenderam o alerta para os pesquisadores de que é preciso atualizar os parâmetros para as análises e recomendações de longo prazo.
“Já estamos pensando nisso, estamos tentando elaborar algum método para que os mapas para eventos extremos sirvam para a defesa civil, sirvam para os municípios repensarem sua forma de ocupação, mas ao mesmo tempo não sejam alarmistas”, afirma a pesquisadora.
“Ainda não chegamos a uma resposta”, diz Corsi. “Estamos analisando mais de um evento, para conseguir consolidar um método.”
Os pesquisadores também estão fazendo buscas de artigos científicos com protocolos internacionais que levem em consideração esse novo cenário causado pelas mudanças climáticas e adaptando esses protocolos para a realidade brasileira.
Apesar desse desafio, as cartas de riscos e planos de redução de riscos existentes continuam relevantes – e têm recomendações que diminuiriam muito o número de vítimas se fossem seguidas, afirma o geólogo Álvaro Rodrigues dos Santos, ex-diretor do IPT.
“Chuvas de muito menor intensidade do que a que ocorreu já mataram muita gente nos municípios afetados. Caso as medidas preventivas, corretivas e emergenciais tivessem sido implementadas o número de vítimas seria muito menor”, diz.
O futuro e o presente
De acordo com Corsi, o que esse novo cenário que maior frequência de eventos extremos aponta é a necessidade de começar desde já uma ampla adaptação das cidades – especialmente as do litoral, que, além de tudo, terão que lidar com o aumento do nível do mar no longo prazo.
“A adaptação deve começar pelo plano diretor, determinando as áreas que não devem ser ocupadas. É preciso também uma mudança no código de obras, para que as construções sejam mais resilientes”, diz Corsi. “E todo um trabalho com a comunidade para haver comunicação, treinamento, capacitação.”
“É preciso treinar a população para que as pessoas se apropriem dessa percepção de risco e das mudanças climáticas”, afirma a pesquisadora.
Isso sem contar os investimentos em habitação e diminuição das desigualdades sociais que hoje, como aponta o geólogo Álvaro Rodrigues dos Santos, ex-diretor do IPT, estão no cerne de tragédias como a que afetou o litoral norte de São Paulo – já que as mortes em geral são resultado de ocupação de áreas de alto risco natural por populações sem acesso à moradia adequada.
“É a parte social do problema, atender à demanda habitacional da população de baixa renda, o que terá como decorrência o alívio da pressão de ocupação das áreas de risco por parte dessa população.”
“Mais do que nunca se coloca hoje a obrigação dos municípios aplicarem as recomendações do meio técnico expressas, especialmente, nas Cartas Geotécnicas. A atitude preventiva sempre terá um caráter muito mais efetivo do que as corretivas e emergenciais”, afirma Rodrigues dos Santos.
Ou seja, se os pesquisadores já estão preocupados em como dar conta de eventos extremos mais frequentes nas análises, os municípios ainda precisam correr atrás de colocar em prática as recomendações já existentes.
O pesquisador aponta as cidades de São Vicente e de Santos como bons exemplos de cidades que tomaram medidas para mitigar os riscos.
“Não mais foram ocupados terrenos em áreas de risco, áreas de alto risco foram desocupadas, obras de contenção e de drenagem foram executadas, cartilhas de orientação para a população foram elaboradas e distribuídas, sendo que o pessoal local participou ativamente de todo o processo”, afirma.
“Também foi implantado um Plano de Contingência através do qual em momentos de alerta pluviométrico várias ações são automaticamente e preventivamente tomadas.”
O município de São Sebastião não respondeu ao pedido de informações da BBC News Brasil.
A cidade, no entanto, chegou a tomar algumas medidas de prevenção – ela ficou em 32º lugar na lista de cidades resilientes, um programa do governo do Estado que dá uma pontuação para os municípios que mais e melhor investiram em prevenção de risco e em adaptação às mudanças climáticas.
O município teve 79 pontos. Citada como exemplo de boas práticas, Santos ficou em 8º lugar, com 89.5.
Você precisa fazer login para comentar.