- Igor Zahir
- de Recife para a BBC News Brasil
Desde o dia 10 de dezembro de 2015, a vida de uma família em Petrolina, no sertão de Pernambuco, nunca mais foi a mesma. A menina Beatriz Angélica Mota, de 7 anos, estava em uma festa na escola com a família e se afastou para beber água. Como não voltou ao lugar, os pais e professores preocupados iniciaram a busca, encontrando seu corpo 40 minutos depois, no depósito de material esportivo. Ela foi morta com 42 facadas.
Apenas em janeiro de 2022 foi confirmada a identidade do assassino: Marcelo da Silva, anteriormente acusado de outros crimes, entrou na escola e, após tentativa de estuprar Beatriz, quando ela começou a gritar, a matou.
O caso Beatriz gerou polêmicas do início ao fim, levantando questões como a negligência na segurança da escola, onde o assassino entrou com facilidade e qualquer outra pessoa também poderia entrar; ou os motivos pelos quais o assassino, envolvido em acusações anteriores de pedofilia, estar solto em situação de rua na sociedade; ou questões contra o governo de Pernambuco, a quem Lucinha Mota, mãe de Beatriz, declarou várias vezes suspeitar de corrupção dentro da polícia.
Entre outros motivos de revolta da família, está a instabilidade com que o caso foi tratado: foram oito trocas de delegados, cerca de sete perícias, mais de 450 depoimentos e 900 horas de imagens analisadas. Até as imagens do circuito de segurança da escola foram apagadas e um dos funcionários terceirizados teve prisão preventiva decretada por excluir as imagens e interferir na investigação.
A Secretaria de Defesa Social de Pernambuco só conseguiu chegar ao autor do crime porque ele teve o DNA identificado e comparado com 125 perfis genéticos do banco do Instituto de Genética Forense Eduardo Campos. Ao ser confrontado, Marcelo da Silva confessou o assassinato.
A respeito das mudanças de delegados e outras dúvidas geradas pelo inquérito, a Polícia Cívil falou poucas vezes, por meio de notas, que se empenha com uma força tarefa e mantém o sigilo comum em seu protocolo: “Com relação à investigação propriamente dita, o trâmite segue sob o manto do segredo de justiça que não autoriza quaisquer divulgações. Apesar dos desafios, a PCPE tem plena confiança que o caso será elucidado, trazendo justiça para os familiares e a sociedade”, disse em um dos comunicados.
A Associação de Polícia Científica (Apoc-PE), entidade que representa os Peritos Criminais de Pernambuco, também emitiu uma nota oficial: “O trabalho realizado pela Polícia Científica contribui para a produção da prova técnica, auxiliando, de modo relevante, a investigação policial. A atuação dos Peritos Criminais é sempre pautada pela ciência, doutrina criminalística e nos princípios da legalidade, moralidade e eficiência. A Apoc-PE agindo com seriedade e imparcialidade, seguirá na defesa incansável dos interesses dos Peritos Criminais que estejam sendo vítimas de decisões administrativas desarrazoadas e desproporcionais”.
O julgamento
O caso Beatriz foi concluído em julho de 2022, com Marcelo da Silva preso e indiciado por homicídio qualificado. Em conversa com a BBC, Lucinha Mota diz que nunca duvidou da identidade. “Eu vi tantas vezes o rosto dele nos vídeos e, ao longo dos últimos sete anos, eu revi as poucas imagens que conseguimos recuperar incansavelmente, que cheguei a decorar aquele rosto”, conta a mãe da menina.
Nos dias 22 e 23 de novembro passado foram ouvidas oito testemunhas na audiência de instrução e julgamento de Marcelo da Silva. Na última sessão, em 15 de dezembro, o acusado se manteve em silêncio durante toda a audiência. Lucinha, que esteve a poucos metros de distância dele em uma dessas ocasiões, diz que a sensação é uma das mais difíceis: “A primeira coisa que senti foi muito ódio, mas sou uma pessoa que não dá corda ao ódio, que prefere o amor do que o ódio, até porque foi o amor pela minha filha que me trouxe e me sustentou de pé até aqui”.
No entanto, Lucinha admite que, nos últimos sete anos, um momento inesquecível se deu quando foi provado que estavam, de fato, com o assassino de Beatriz preso. “Eu achava que nunca ia sentir coisas boas como eu sentia antes de tudo isso acontecer. Mas quando foi comprovado, aquela mistura de fé, esperança, de senso de justiça, até meu corpo reagiu, foi algo inexplicável o que de bom aconteceu naquele momento”, desabafa a estudante de Direito.
“Abri mão de tudo, do meu trabalho, vivo 24 horas em função caso Beatriz”, diz Lucinha na entrevista para a BBC. Antes funcionária de uma empresa de licitações, ela estava prestes a ser promovida, quando tudo aconteceu. Após a morte da filha, seu maior desafio no primeiro ano foi, literalmente, continuar viva. Perdeu mais de 30 quilos, entrou em depressão profunda e encarou as piores dores do luto.
Quando se deu conta de que precisava, junto ao marido Sandro, pressionar a justiça e monitorar cada detalhe das investigações, Lucinha entrou numa jornada que ela chama de “caminhar com a dor, mas não parar de caminhar”. Uma rotina que os quase 300 mil seguidores que seguem os perfis dela e do Caso Beatriz descrevem como implacável e incansável.
Mobilizando a população, a família Mota protestou de todas as formas possíveis e imagináveis. Nos tribunais e Ministérios Públicos de Pernambuco, se envolvendo em outros casos de mortes de crianças no Nordeste, fazendo lives nas redes sociais, conseguindo o apoio de instituições internacionais de Direitos Humanos, entre tantas outras iniciativas. Durante as últimas audiências de instrução de Marcelo da Silva em Petrolina, eles marcaram presença em frente ao Fórum com fotos do acusado, sob gritos de “assassino” e o pedido que a juíza responsável determinasse logo que ele fosse designado para júri popular. A próxima audiência, que vai definir isso, foi marcada para a primeira semana de janeiro.
Em dezembro de 2021, Lucinha, Sandro e vários outros militantes do caso Beatriz caminharam de Petrolina a Recife, durante 23 dias e mais de 700 quilômetros, como forma de protesto. A exigência era que o então governador de Pernambuco, Paulo Câmara, aceitasse a cooperação de uma empresa norte-americana na investigação do caso e na federalização do inquérito. Após o protesto, Paulo Câmara assinou um documento declarando que o governo é favorável à federalização e demitiu o perito criminal Diego Costa, que prestou consultoria ao colégio.
No início de 2022, outra polêmica: Lucinha e um grupo de deputados estaduais se articularam para criar uma CPI que apurasse possíveis falhas durante as investigações. Para conseguir as 17 assinaturas (entre os 49 deputados), a família da vítima iniciava outra campanha que deixou os ânimos exaltados, inclusive entre colegas de partido de Lucinha, que era filiada ao Psol. Muitos dos que se recusaram a assinar alegavam que a CPI era uma tentativa de construir palanque político em cima do caso Beatriz.
Aliás, a acusação de envolver a história pessoal com sonhos políticos continuou durante todo o ano seguinte, quando Lucinha se candidatou a deputada estadual pelo PSDB, deixando o Psol onde alcançou a suplência em eleições passadas. Os comentários, segundo ela, não a atingem: “Quem pensa que me afeta falando esse tipo de coisa, não me conhece. Eu já perdi o que mais amava, que era minha filha, e segui com coragem durante todos esses sete anos. Não tenho medo desses comentários maldosos nem de quaisquer tentativas de me intimidar. Nada mais me afeta”, diz a ativista, que não se elegeu, apesar do resultado expressivo de mais de 25 mil votos. “Eu entrei na política não para buscar justiça pela minha filha, porque nada vai trazer Beatriz de volta, mas para ter alcance e projeção para lutar por outras vítimas, outras mães, para evitar que mais casos como o de Beatriz aconteçam”.
Com o objetivo em mente, a mãe da menina e o Grupo Somos Todos Beatriz criaram o Instituto BIA – Brasil pela Infância e Adolescência. “Através desse instituto ajudaremos famílias que sofrem diariamente por causa da criminalidade, proporcionando às nossas crianças e adolescentes uma vida digna e com seus devidos direitos, longe de qualquer violência e com a possibilidade de crescer em busca de seus sonhos. Com o nascimento do nosso instituto, nasce também uma esperança de futuro para as nossas crianças. Estamos abertos a ideias. Nosso instituto contará com auxílio psicológico, apoio jurídico, espaço de acolhimento às vítimas de violências e assistência em vários âmbitos da segurança com a colaboração da CIT GROUP (Criminal Investigations Training GROUP)”.
Defesa questiona falhas técnicas
Em documentos a que a reportagem teve acesso, um pedido de habeas corpus emitido pelo advogado Rafael Nunes, que faz a defesa de Marcelo da Silva, fala das “proporções internacionais e repercussão na região onde o delito ocorreu” e pede que “sejam sanadas as questões de ordem que prejudicam o direito do indivíduo face aos direitos e garantias constitucionais”.
Uma petição também emitida pela defesa, ao listar uma série de dados no inquérito que considera contraditórias, pediu que “sejam considerados nulos, os reconhecimentos de pessoa realizados, diante de terem sido perpetrados de forma inobservante com o requisito legal, sendo assim, devem ser desentranhados do processo”.
Ao ser procurado pela BBC, o advogado Rafael Nunes disse que “a expectativa da defesa é boa. Temos muitas questões de natureza técnica que estamos trabalhando pelo tribunal. Iremos ao STJ com toda certeza e bateremos nas portas dos tribunais superiores para levar todas essas questões”.
O habeas corpus e a petição somam quase 60 páginas que listam, de fato, várias partes questionáveis do processo. Enquanto a identidade de Marcelo da Silva foi comprovada por exame de DNA e a própria mãe da menina disse acreditar que era ele o autor do crime, as inconstâncias e instabilidades do caso nos últimos sete anos deixaram muitas interrogações. A própria Lucinha Mota declarou, várias vezes, que havia mais dúvidas do que certezas durante o processo. Vários dos seus seguidores nas redes sociais – boa parte do público que se manteve fiel nos pedidos de justiça – continuam questionando o quanto podem. Muitas perguntas nunca foram respondidas, a respeito das diversas trocas de delegados e equipes técnicas. O caso Beatriz, cujo inquérito foi encerrado em julho, provavelmente acabará com o acusado condenado em júri popular, a partir do julgamento marcado para janeiro. Já as dúvidas e pontas soltas, parecem não ter fim.
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