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Pele de tilápia aplicada em paciente com queimaduras

De um lado, um produto abundante, que era praticamente jogado no lixo em sua totalidade. Do outro, uma área da Medicina com recursos insuficientes e em busca de novas soluções.

Basicamente esse era o cenário quando dois pesquisadores brasileiros se encontraram durante um evento realizado na cidade de Gramado, no Rio Grande do Sul, em 2014.

O cirurgião plástico Marcelo Borges, de Pernambuco, veio com a ideia inicial de usar a pele de tilápia em glicerol (um líquido conservante) como um curativo para tratar queimaduras.

Em terras gaúchas, ele conversou com o também cirurgião plástico Edmar Maciel, do Ceará, que conseguiu financiamento para iniciar as investigações sobre o novo candidato a recurso terapêutico.

Passados nove anos, o projeto gerou quatro produtos diferentes, que são testados em diferentes áreas da saúde humana e animal — de queimaduras a cirurgias de redesignação sexual — com o envolvimento de centenas de pesquisadores no Brasil e em outras partes do mundo.

A iniciativa, aliás, ganhou repercussão internacional — e foi retratada em seriados como Grey’s Anatomy, The Good Doctor, The Resident e One Piece.

Mas como tantos trabalhos acadêmicos diferentes com um mesmo material evoluíram nessa década? E quais são as perspectivas de que a pele de tilápia se transforme numa solução disponível em clínicas e hospitais?

Necessidades e oportunidades

Edmar Maciel conta que o Brasil possui apenas quatro bancos de pele humana — todos eles localizados no Sul e no Sudeste.

Esse material é fundamental para o tratamento de queimaduras mais graves. Ele é usado como enxerto e ajuda a preencher as partes superficiais do corpo que foram afetadas pelo fogo.

“Mas a captação de peles é quase insuficiente no país, principalmente pela falta de uma cultura do nosso povo de fazer a doação desse tecido”, diz ele.

Para completar, o Brasil não utiliza a pele porcina (vinda de porcos) para esse tipo de tratamento, como ocorre em partes da Europa e dos Estados Unidos.

Diante de uma necessidade não atendida, os especialistas viram uma possibilidade: por que não estudar a pele de tilápia para este fim?

“Esse é um peixe criado em grande quantidade no Brasil e no mundo, com a segunda maior produção, atrás apenas das carpas. Além disso, ele possui um ciclo reprodutivo rápido, aguenta temperaturas que variam entre 12 e 38 ºC em cativeiro e demora cerca de seis meses para ter entre 800 gramas e 1 kg”, resume o médico.

Para ter ideia, o anuário de 2022 da Associação Brasileira da Piscicultura aponta que a tilápia já representa 63,5% (ou 486,2 mil toneladas) da produção brasileira de pescados, e a tendência é que esse número suba para 80% até o final da década.

“Nós já sabíamos também que os animais aquáticos trazem um risco menor de transmissão de doenças zoonóticas em comparação com as espécies terrestres.”

Há ainda um último detalhe que torna a pele de tilápia um potencial alvo de estudos. Cerca de 99% desse material não tinha qualquer aplicação comercial e era descartado pelos produtores durante o processamento dos filés.

“O uso evita a contaminação do meio ambiente e ainda gera uma cadeia produtiva e de empregos”, destaca Maciel.

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Pele de tilápia sendo preparada em laboratório

As avaliações iniciais

Com financiamento garantido, Borges e Maciel concordaram em concentrar as pesquisas na Universidade Federal do Ceará.

Lá, as primeiras investigações desvendaram as propriedades moleculares da pele de tilápia e testaram como ela funcionaria em animais de laboratório.

“Nas primeiras etapas, nossa equipe detectou que esse material trazia o colágeno tipo 1, que é muito importante no processo de cicatrização”, detalha Maciel.

Em ratos, os pesquisadores puderam observar que a pele de tilápia tinha uma série de vantagens no tratamento das queimaduras.

“Ela adere na ferida e não permite a contaminação a partir do meio externo, evita a perda de líquidos ou proteínas e reduz a necessidade de trocar o curativo todos os dias”, lista o cirurgião plástico.

Nas palavras do médico, os resultados obtidos nessas primeiras pesquisas foram satisfatórios.

“Infelizmente, essa necessidade de trocar os curativos diariamente é algo que acontece na rede pública brasileira, em que o tratamento das queimaduras depende da aplicação de cremes ou pomadas.”

Com o passar do tempo, os testes passaram a envolver seres humanos. A pele de tilápia foi usada inicialmente em queimaduras simples e mais superficiais, mas logo acabou também aplicada em ferimentos mais graves e profundos, que exigem internação.

Esses trabalhos se concentraram principalmente no Instituto Dr. José Frota, um hospital público de Fortaleza.

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A tilápia é um dos peixes mais produzidos no mundo; no Brasil, 99% da pele era jogada no lixo

Um novo produto

O final de 2017 marca o início de uma nova etapa nas investigações sobre a pele de tilápia no Ceará.

Após os primeiros estudos, os cientistas perceberam uma grande barreira para o uso amplificado do material.

“Nosso primeiro produto, a pele de tilápia em glicerol, precisa ficar a uma temperatura de 2 a 4 ºC. Para realizar o transporte dela, é necessário usar uma caixa especial, com gelo seco e termômetro. Toda essa logística eleva o custo”, detalha Maciel.

Para resolver essas questões, os especialistas desenvolveram a pele de tilápia liofilizada. Em resumo, o material é desidratado, esterilizado e embalado a vácuo.

Esse processo de esterilização utiliza substâncias radioativas e acontece no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), em São Paulo.

Importante dizer que essa radiação é inócua e não causa nenhum problema de saúde no paciente — ela serve apenas para eliminar micro-organismos potencialmente perigosos que estavam localizados na pele do pescado.

“A vantagem é que essa pele não precisa ser refrigerada, pode ficar na prateleira em temperatura ambiente, e tem uma validade de dois anos e meio”, pontua o médico.

“Ou seja, ela possui os mesmos objetivos e aplicações da pele de tilápia em glicerol, só que com um custo 90% menor no transporte para outros locais”, calcula ele.

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A pele de tilápia liofilizada não precisa de refrigeração e tem validade superior a dois anos

Novas fronteiras terapêuticas

A partir de 2018, a pele de tilápia liofilizada virou o carro-chefe do time de investigadores. O produto passou a ser testado não apenas no tratamento de queimaduras, mas em uma série de outras áreas da saúde.

Um desses testes se concentra na ginecologia: no Ceará, algumas pacientes com a Síndrome de Mayer-Rokitansky-Kuster-Hauser, que nascem sem a vagina (e outras estruturas sexuais/reprodutivas), foram recrutadas para um estudo. O objetivo era construir esse órgão por meio de uma cirurgia que tem a pele de tilápia como um dos componentes principais.

Já alguns trabalhos realizados na Universidade de São Paulo (USP) e na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) focaram nas mulheres que sofrem um encurtamento na vagina, seja por causa de um câncer ou pelo efeito da radiação no aparelho reprodutor feminino.

Por fim, um especialista de Cali, na Colômbia, avaliou a pele de tilápia em cerca de 160 pacientes que passaram pela cirurgia de redesignação sexual — em que há a alteração dos órgãos sexuais masculinos para os femininos.

Nesses três casos, a pele de tilápia é colocada no molde que, durante e após o procedimento operatório, vai garantir o formato da nova vagina.

“O colágeno do material fica em contato com essa nova área e é totalmente transferido para o organismo. Desse modo, se forma um epitélio vaginal, com uma cicatrização espontânea”, detalha Maciel.

Ou seja: nesses casos, as fibras de colágeno da pele de tilápia são transferidas para o leito da vagina, ajudando na formação adequada dessa estrutura.

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Cobra recebendo um curativo de pele de tilápia

Crianças e animais

No mundo da pediatria, a pele de tilápia virou objeto de estudos que avaliam o material em crianças que nascem com alterações nos dedos das mãos.

Alguns desses indivíduos possuem os dedos colados — e, após a cirurgia para separá-los, esse produto foi avaliado como um curativo que acelera a cicatrização e facilita a aceitação de um posterior enxerto de pele humana.

Maciel também destaca que, nos últimos anos, a pele de tilápia foi utilizada para tratar animais feridos em incêndios florestais que ocorreram no Pantanal, em Uberaba (MG), na Califórnia (EUA) e no Líbano.

Ainda no meio veterinário, há um terceiro produto feito a partir da pele de tilápia que passou a ser testado mais recentemente.

“Falamos aqui da matriz dérmica. Nós pegamos a pele de tilápia e tiramos a parte de cima, que é o epitélio onde estão as escamas”, explica Maciel.

“O que sobra funciona como um andaime, um arcabouço, feito de colágeno puro. Esse produto é para ser usado internamente no organismo”, complementa ele.

A tal matriz dérmica feita a partir da pele de tilápia está sendo avaliada em cirurgias de hérnia abdominal (quando um pedacinho dos órgãos digestivos escapa pela camada de tecidos protetores que recobre a área) e até em operações no sistema nervoso e nos olhos.

“Hoje, são mais de 430 cachorros operados de úlcera de córnea com o uso da matriz dérmica. Ano que vem, devemos começar os estudos em seres humanos”, projeta o cirurgião plástico.

Por fim, a equipe ainda avalia um quarto produto: o colágeno extraído da pele de tilápia na forma de pomadas, cremes, sprays e suplementos alimentares. Uma possível aplicação aqui seria na área de estética.

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A matriz dérmica é um terceiro produto das pesquisas realizadas no Ceará. Ela não traz a camada superficial do couro do peixe e forma um andaime de colágeno

O futuro

Vale lembrar que todas essas pesquisas estão em fase experimental. Isso significa que a pele de tilápia é aplicada como um candidato a tratamento, mas não está aprovada ainda para uso clínico pelas agências regulatórias.

Maciel diz que há planos para ampliar o acesso ao produto num futuro próximo.

A pele de tilápia em glicerol já possui patente no Brasil e nos Estados Unidos. A equipe também já registrou os demais produtos (a pele liofilizada, a matriz dérmica e a extração de colágeno) e aguarda uma resposta dos órgãos responsáveis.

“A Universidade Federal do Ceará poderá fazer uma chamada pública e lançar um edital para que empresas interessadas possam licenciar o produto”, informa o médico.

A empresa escolhida, por sua vez, terá o trabalho de buscar a aprovação regulatória (no caso do Brasil, o aval da Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para que o produto possa ser comercializado para determinados fins terapêuticos — como o tratamento das queimaduras, por exemplo.

Segundo Maciel, é possível que alguns dos produtos com um volume maior de pesquisas sejam submetidos a esse processo de licenciamento a partir do início do ano que vem.

Para o médico, a tendência é que o material seja muito utilizado na saúde pública.

“A pele de tilápia vem para somar e complementar o trabalho que é feito nos bancos de pele já instalados no país, que têm uma produção pequena por causa dos problemas de captação dos tecidos”, diz ele.

“A ideia é que tudo seja adquirido pelo Ministério da Saúde e distribuído nos centros de queimados e nos hospitais, para que a população mais carente tenha acesso. Estima-se que 97% dos pacientes que se queimam não têm plano de saúde.”

Questionado sobre como vê toda a repercussão do trabalho iniciado há nove anos — inclusive em séries ficcionais produzidas no exterior — Maciel confessa que não esperava tanto.

“Jamais imaginávamos chegar onde estamos hoje. Nosso sonho inicial virou realidade com 36 artigos científicos publicados, 24 prêmios e muita repercussão na mídia”, calcula ele.

“E a satisfação é muito maior diante do fato de que este virou um trabalho de 337 pessoas, número que aumenta a cada semana com a inclusão de novos projetos de pesquisa”, conclui o médico.