- Author, Mariana Sanches e Leandro Prazeres
- Role, Da BBC News Brasil em Washington e Pequim
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Em 2004, quando esteve na China pela primeira vez como presidente, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) fez uma despretensiosa e tranquila escala em Kiev, a capital da Ucrânia.
Ali, visitou o Monastério de Lavra, um monumento cristão ortodoxo do século 16. Quase 20 anos mais tarde, o mesmo monastério foi parcialmente destruído após a invasão russa ao país e Lula decidiu trazer a Ucrânia como um tema obrigatório na conversa que teve com o presidente chinês, Xi Jinping, nesta sexta-feira (14/4) em Pequim.
Foi o brasileiro quem criou expectativas de que, do encontro com Xi, pudesse sair algum tipo de decisão central para os rumos da guerra, iniciada em fevereiro de 2022.
“Estou confiante que quando voltar da China e você me fizer essa pergunta (sobre a guerra), eu vou dizer que está criado o grupo que vai discutir a paz”, declarou Lula durante café da manhã com jornalistas uma semana antes de embarcar pra Xangai, onde chegou na quarta-feira (12/4).
Esta foi apenas a última das declarações do presidente brasileiro a respeito do chamado “clube da paz”, que ele tem tentado articular com outros líderes globais desde que assumiu o Palácio do Planalto. Já o Itamaraty nega que o Brasil tenha intenção de ser um mediador do conflito.
A posição de Lula, porém, tem sido vista como ambivalente internacionalmente. Embora formalmente o Brasil condene a invasão russa a territórios ucranianos em organismos multilaterais como a Organização das Nações Unidas (ONU) e em uma declaração conjunta com os Estados Unidos – o único integrante do bloco dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) a fazê-lo -, Lula já disse que o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, era tão responsável pela crise quanto o líder russo, Vladimir Putin.
Recentemente, Lula sugeriu que a Ucrânia teria que abrir mão do território da Crimeia em prol do fim do conflito, o que foi rechaçado pelos ucranianos e desagradou potências ocidentais.
Do ponto de vista da diplomacia brasileira, seria justamente o não alinhamento a qualquer dos lados que tornaria o Brasil um ator credenciado a participar da costura de uma saída para o impasse.
“Eu tenho proposto a eles (líderes mundiais) que é preciso criar uma espécie de G-20 para discutir a paz (…). Então o Brasil está se colocando para discutir paz, a gente quer juntar a China, vou falar com o Xi Jinping isso, se for necessário discuto com o Putin isso, porque é necessário a gente entender que primeiro a gente precisa parar a guerra”, disse Lula há um mês em entrevista ao jornalista Reinaldo Azevedo.
A China, aliás, parecia um elemento central na ideia de Lula. Em janeiro, após a visita do chanceler alemão, Olaf Scholz, a Brasília, Lula afirmou que “nossos amigos chineses têm um papel muito importante”.
“Está na hora da China colocar a mão na massa”, declarou.
Mas diplomatas e analistas brasileiros e estrangeiros lançam dúvidas sobre as condições do Brasil de ser protagonista nesta história. Mais do que isso, o discurso de Lula não tem ganhado muita tração com os líderes globais.
Lula já apresentou sua ideia ao presidente americano, Joe Biden, e ao chanceler alemão Scholz, que a receberam com ceticismo e reserva. E, agora, o brasileiro viu frustrada sua ideia de voltar da China com “um grupo pela paz” chancelado por Xi Jinping.
Dos 49 tópicos do comunicado conjunto que resultou do encontro de mais de uma hora entre Lula e Xi, apenas um menciona o que caracteriza como “crise na Ucrânia”.
O termo “guerra”, rechaçado pela Rússia, foi evitado no texto diplomático de Brasil e China, que não traz nenhum compromisso concreto no tema além de “manter os contatos sobre o assunto”.
“As partes (Brasil e China) afirmam que diálogo e negociação são a única saída viável para a crise na Ucrânia e que todos os esforços conducentes à solução pacífica da crise devem ser encorajados e apoiados”, diz o texto, que afirma que o Brasil “recebeu positivamente” os 12 pontos para a paz propostos pela China no Conselho de Segurança da ONU no início do ano – mas não os endossou. Já a China “recebeu positivamente” as gestões de Lula em prol de um clube para a paz – e ficou nisso.
“As partes apelaram a que mais países desempenhem papel construtivo para a promoção da solução política da crise na Ucrânia”, afirma ainda o comunicado.
O que quer o Brasil?
Não foi surpresa para o Itamaraty o desfecho lacônico para o assunto, apesar das declarações de Lula em sentido contrário.
Diplomatas com conhecimento das negociações ouvidos reservadamente pela BBC News Brasil recusavam há semanas o termo “mediação” para tratar das pretensões do país no tema e diziam que o Brasil queria apenas deixar “um canal aberto” para tratar do conflito com os chineses e servir como “um facilitador” para possíveis futuras conversas sobre o assunto – sem trazer à mesa nenhuma proposta ou processo estruturado para chegar à paz.
“O Brasil está apenas se colocando como disponível para colaborar. Seria muita arrogância chegar com um plano, é um governo recém-empossado, estamos ouvindo, não queremos sentar na janelinha”, afirmou um embaixador brasileiro.
Seria com esse espírito que o assessor especial de política externa de Lula, Celso Amorim, esteve com o líder russo Vladimir Putin em Moscou recentemente e que, na semana que vem, o chanceler russo, Serguei Lavrov, visitará Brasília.
Há algumas semanas, o vice-ministro das Relações Exteriores da Rússia, Mikhail Galuzin, em entrevista à agência russa Tass, afirmou que “tomamos nota das declarações do presidente do Brasil sobre o tema de uma possível mediação, a fim de encontrar caminhos políticos para evitar a escalada da guerra na Ucrânia”.
Galuzin acrescentou que estão “examinando as iniciativas, principalmente do ponto de vista da política equilibrada do Brasil e, claro, levando em consideração a situação in loco”. De outro lado, Lula fez uma ligação de vídeo com Zelensky.
Para diplomatas ouvidos pela BBC News Brasil, as condições para a construção de qualquer diálogo pela paz ainda não estão dadas, já que tanto russos quanto ucranianos nutrem esperanças de uma vitória militar.
Em Pequim, durante as negociações para a reunião bilateral, os chineses já haviam deixado claro que tinham disposição de ouvir as ideias de Lula, mas demonstraram que não pretendiam avançar em qualquer tipo de compromisso quanto ao tema.
Às vésperas do encontro de Xi com Lula, o jornal chinês Global Times, ligado ao Partido Comunista Chinês, deu manchete à visita do líder brasileiro ao país asiático. Entretanto, no longo texto de reportagem, não foram mencionados nem uma única vez os termos “guerra” ou “Ucrânia”.
Considerado um bom termômetro dos interesses de Xi, o jornal se estendeu sobre planos sobre comércio bilateral em yuan (e sem o dólar), sobre o fortalecimento dos Brics e o aumento do fluxo de negócios. E apenas citou marginalmente que os dois líderes deveriam tratar de “temas regionais e internacionais quentes” e de “sua devida contribuição para a paz”.
A China é superpotência. O Brasil, não
A falta de entusiasmo dos chineses com a ideia de Lula se explica. Assim como a Ucrânia de hoje não é mais aquela que Lula visitou em 2004, Brasil e China também mudaram. Em 2004, o Produto Interno Bruto (PIB) chinês era apenas três vezes maior que o brasileiro, e os dois países eram nações emergentes.
Em 2022, o PIB chinês foi 9,2 vezes maior que o do Brasil, e a China se consolidou como uma superpotência global, capaz de rivalizar com os Estados Unidos por poder e influência.
Em março, os chineses foram os responsáveis por reestabelecer relações diplomáticas entre Irã e Arábia Saudita, algo desejado internacionalmente – e celebraram o acordo em Pequim, para deixar clara a autoria da mediação.
Já o Brasil amargou uma década de recessão ou crescimento modesto; com a crise do Mercosul, viu a redução de seu papel como liderança regional; e enfrentou um processo de descrédito internacional até na questão ambiental, na qual era um líder desde os anos 1990.
“Falando de um ponto de vista bem realista, se o presidente Xi Jinping percebesse a possibilidade de costurar a paz nesse momento, ele já teria feito isso, e não ia dividir esse protagonismo com o Brasil. Ele teria saído da Rússia, onde estava conversando com o presidente Putin, foi convidado pelo presidente Zelensky a ir a Ucrânia, e iria sair como o salvador da pátria, como o cara que conseguiu a paz”, afirma o coronel da reserva Paulo Roberto da Silva Gomes Filho, mestre em Estudos de Defesa Estratégica pela Universidade Nacional de Defesa da China de Pequim, na China, e pesquisador de Relações Internacionais da Universidade de Brasília.
Gomes Filho se refere à recente visita de Xi a Putin em Moscou, o 40º encontro dos dois líderes – no qual, supostamente, ambos tratariam da paz, assunto sobre o qual não houve, porém, nenhum anúncio.
A proximidade entre Putin e Xi e o peso da China no xadrez global têm levado líderes ocidentais, como o presidente francês, Emmanuel Macron, a pedirem que Xi interceda mais decisivamente pelo fim da guerra. A China, no entanto, repete com frequência que esta não é uma guerra dela. O líder chinês se resumiu a pedir que os diálogos de paz fossem retomados no âmbito da ONU, “levando em consideração as preocupações de segurança de todos os lados”, em uma alusão aos argumentos russos de que a invasão à Ucrânia foi uma resposta à expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) entre os países da antiga cortina de ferro.
A Ucrânia é o novo Irã?
No caso do Brasil, é Lula quem tem batido na porta dos líderes internacionais para propor a ideia do clube da paz. Com o bordão de que “o Brasil voltou”, o presidente brasileiro adotou uma agenda internacional caracterizada como “frenética” pelo Itamaraty.
Ou como “hiperativa” e “ingênua” pela revista britânica The Economist, que esta semana relembrou em artigo a tentativa de Lula de firmar um acordo nuclear com o Irã em 2010, quando acabou ignorado por europeus e americanos. Em carta a Lula, o então presidente americano Barack Obama endossou o plano brasileiro, mas depois recuou. E a diplomacia de Israel chegou a dizer que o Brasil estaria sendo “manipulado” pelos iranianos.
Membro não permamente do Conselho de Segurança da ONU, como também o é agora, o país àquela altura tentava evitar novas sanções americanas a Teerã. Em 2015, os Estados Unidos lideraram um novo pacto que praticamente interrompeu o programa nuclear iraniano em troca do fim imediato das sanções contra o país.
“A situação da Ucrânia e do Irã tem vários paralelos: um grande conflito de repercussão global, sem envolvimento direto do Brasil e a partir do qual o Brasil vai capitalizar a política externa. Os atores também são os mesmos: o Celso Amorim e o Lula pelo Brasil, e o ceticismo americano do governo Obama, que tinha o Biden como vice. Agora, entre as principais diferenças está o fato de que o mundo mudou muito de lá para cá e que essas mudanças estruturais reorganizaram um pouco a dinâmica de atores que se fazem relevantes”, afirma Fernanda Magnotta, coordenadora do curso de Relações Internacionais da FAAP.
Segundo ela, o Brasil tenta, legitimamente, retomar a imagem de um país que conversa com muitos grupos distintos: é parte dos Brics, forte com os latinos, tem interlocução aberta com europeus e americanos para se afirmar como um ator global, e não apenas uma potência regional.
Mas se esse já era um argumento complicado em 2010, a centralidade da China no mundo em 2023 e a presença política mais decisiva de atores como a Turquia, com um histórico de mediação de conflitos que o Brasil não tem, devem reduzir ainda mais o espaço para que o país possa manobrar mediações internacionais.
“Neste sentido, se em 2010 o Brasil já não encontrou muito espaço para defender a mediação do Irã, em 2023, o Brasil vai encontrar menos espaço ainda. Não me parece que nem os americanos necessariamente veem o Brasil dessa forma (como um ator global), nem os chineses veem o Brasil assim. E cada um vai dispensar o Brasil do modo que mais lhe convém”, diz Magnotta.
Para o ex-embaixador do Brasil nos Estados Unidos Rubens Ricupero, além das baixas chances de produzirem a paz, as investidas de Lula no tema trazem um risco embutido ao Brasil.
“Talvez a iniciativa do Lula, embora a intenção dele seja outra, acabe sendo uma operação de propaganda para os russos e para os chineses, porque seria uma operação que mostraria que países do terceiro mundo estão mais favoráveis à paz, mas que a coisa não anda porque a Ucrânia não quer, porque os Estados Unidos não querem. Acaba sendo objetivamente uma ação em favor do lado chinês, russo e contra o lado americano, ocidental. Objetivamente, é isso que vai provavelmente acontecer”, afirma Ricupero.
Diplomatas americanos ouvidos pela BBC News Brasil afirmam acreditar nas intenções verdadeiramente pacíficas de Lula, mas aventaram a possibilidade de que os chineses usem o discurso do brasileiro em favor de seus 12 pontos pela paz — visto pelas potências ocidentais como contraditório e cínico por defender a soberania dos países ao mesmo tempo em que indica limites ao poder de decisão da Ucrânia sobre seu próprio destino.
O Brasil não se comprometeu com o plano de paz de Xi Jinping. Mas, recentemente, também se recusou a chancelar a declaração do Encontro da Democracia de Biden, que fazia uma nova condenação à invasão russa.
“O Brasil deveria sim ter um papel numa eventual negociação de paz como um líder do Sul Global. O que é mais problemático é como Lula tem retoricamente abordado o assunto, o que tem criado descrédito e ofensa desnecessários entre os ocidentais”, afirma Nick Zimmerman, ex-assessor de assuntos internacionais de Obama.
Para Zimmerman, chama a atenção o quanto o Brasil defende sua soberania sobre o próprio território – especialmente em qualquer discussão que envolva a Amazônia -, ao mesmo tempo em que estaria disposto “a ceder território de outro país” em busca da paz, em alusão ao comentário recente de Lula sobre a Crimeia.
“Há uma sensação crescente de que essas ideias (de Lula) são, na verdade, mais unilaterais do que neutras ou equidistantes. E isso não ajudará a criar a confiança que seria necessária em Washington DC, na Europa e em Kiev para considerar ativamente um projeto brasileiro para a paz”, diz Zimmerman.
Em tom cético sobre as chances de sucesso de Lula em ajudar na obtenção da paz, a revista britânica Economist sugeriu que o Brasil deveria concentrar sua política externa no que teria real vocação para liderar: a batalha global contra as mudanças climáticas. E que o ativismo de Lula sobre a Ucrânia poderia atrapalhar os objetivos verdes do país.
Em um ataque direto à postura americana na questão, Lula afirmou na manhã deste sábado (15, no horário local) em Pequim que os EUA deveriam parar de promover a guerra e promover a paz.
A declaração é uma referência aos mais de US$ 50 bilhões em armamentos que o governo Biden já enviou aos ucranianos. Os americanos afirmam que não patrocinam a guerra, apenas viabilizam a defesa de um Estado soberano cujo território foi invadido contrariando o direito internacional e que este tipo de declaração retira da Rússia a responsabilidade por ter iniciado o conflito.
Nos últimos dias, enquanto Lula se preparava para a viagem à China, recebeu do Japão o convite, intermediado por Biden, para participar da Cúpula do G7 em Hiroshima, em maio. Se for, ele terá a chance de checar na prática se o tema Ucrânia gerou ruídos em seu intento de negociar recursos para a Amazônia.
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