O que acontece quando os conflitos políticos presentes hoje no Brasil invadem um relacionamento amoroso?
Esse é o tema do primeiro episódio de Brasil Partido, um podcast da BBC News Brasil, lançado nesta quarta-feira (14/09) no site da BBC, no canal da emissora no YouTube e em plataformas de áudio como Spotify e Apple Podcasts.
O episódio inaugural trata de casais que recorreram a psicólogos para mediar diferenças políticas – e de terapeutas que têm atendido muitas famílias rachadas politicamente na véspera da eleição.
Uma das pessoas entrevistadas é uma dona de casa que passou a fazer terapia de casal para lidar com diferenças políticas que surgiram em seu relacionamento após 2018.
Ela diz que, assim como o marido, votou em Jair Bolsonaro naquele ano para “tirar o PT do poder”.
Mas a mulher afirma que, desde então, os dois tomaram rumos distintos: enquanto ela passou a reprovar o governo, o marido virou um defensor ferrenho de Bolsonaro e foi, segundo ela, influenciado negativamente pelo comportamento do presidente.
“Ele (Bolsonaro) ressuscitou os machistas, ele fortaleceu, pôs para fora, tirou do armário a parte machista da pessoa – a parte autoritária, essa parte mais difícil de conviver”, diz Maria (nome fictício), que deu a entrevista sob condição de anonimato.
Podcast Brasil Partido
Apresentado pelo repórter João Fellet, o podcast Brasil Partido mostra como pessoas de diferentes grupos sociais estão sendo afetadas por conflitos políticos em suas vidas.
São abordadas situações vividas por pessoas pertencentes a grupos como mulheres evangélicas, brasileiros que se identificam como pardos, agricultores e executivos do mercado financeiro.
O podcast busca ainda entender como os brasileiros chegaram ao atual grau de divisão e se há possibilidade de diálogo entre grupos divergentes. Os episódios são lançados sempre às quartas-feiras.
Antipetismo X bolsonarismo
Maria, a dona de casa que participa do primeiro episódio, diz que hoje evita falar de política em casa para não entrar em conflito com o marido.
“Eu me sinto reprimida, eu não posso dialogar dentro da minha casa sobre a divergência que eu tenho”, afirma a mulher, casada há mais de 20 anos.
Ela afirma que, até 2018, nunca havia tido divergências políticas com o marido. “A gente pensava igual: eu queria derrubar o PT, queria derrubar o Lula, e eu me agarrei a essa ideia”, conta.
As diferenças surgiram quando ela passou a desaprovar a postura do presidente, especialmente na gestão da pandemia. “Eu não virei uma bolsonarista, e o meu marido, ele não, ele se tornou um bolsonarista.”
Relacionamentos rompidos
Os psicólogos Daniela Leal e Alexandre Coimbra Amaral, também entrevistados no podcast, dizem que têm lidado com muitos pacientes que romperam relacionamentos amorosos por causa da política.
Casados há 19 anos, eles atendem casais em sessões virtuais que começaram a organizar na pandemia. Algumas reuniões contam com mais de 100 participantes.
Amaral diz que, pela primeira vez desde que começou a trabalhar como psicólogo, tem visto pacientes que enfrentam um “adoecimento de fora para dentro, ou seja, ‘eu estou mal porque essas coisas estão acontecendo no meu país e elas reverberam dentro de casa'”.
Leal afirma que os conflitos políticos vividos pelos casais têm a ver com “decisões muito estruturais da vida parental, por exemplo, como criamos os nossos meninos e como criamos as nossas meninas”.
Eles afirmam que, em muitos desses embates, nota-se uma dificuldade dos homens em se relacionar com o feminino.
“Não só do homem se relacionar com a mulher, mas do homem se relacionar com as suas características femininas que têm a ver com delicadeza, gentileza, empatia, solidariedade”, diz o psicólogo.
Para ele, hoje vigora no Brasil “uma prática política que convida o homem a anular todo esse lado feminino dele e se postar na vida somente com esse ato bélico o tempo inteiro sendo direcionado para o mundo”.
Os psicólogos dizem que, em alguns casos, precisam intervir para que conflitos entre casais não resultem em violência física.
“O Brasil é um país extremamente feminicida e esses crimes acontecem dentro de casa, então às vezes chegam situações pra gente na clínica que podem sim se transformar em feminicídios”, diz Amaral.
O casal diz também atender muitos pacientes que vivem problemas políticos com homens mais velhos da família – em geral pais, tios ou avôs.
Segundo Leal, muitos desses homens cresceram em contextos nos quais “o questionamento era uma falta de respeito com os pais”. “E aí, de repente, ele se vê em uma época sócio-histórica onde o questionamento tá liberado, onde questionar faz parte de uma horizontalização das relações”, diz.
Há possibilidade de entendimento?
E existe alguma possibilidade de conciliação quando as divergências dentro de casa se tornam tão acirradas?
Os psicólogos afirmam que, nesse cenário, muitas pessoas optam por evitar conversas sobre temas sensíveis com o familiar discordante.
“A gente vê isso tomando muitos campos da vida, de tal forma que muitas relações se sustentam, mas com uma perda considerável de intimidade, com uma mudança da posição da pessoa no mapa afetivo da sua vida”, diz Amaral.
Nos casos em que, apesar das diferenças, as pessoas queiram manter as relações, os psicólogos recomendam que se faça um esforço para que os interlocutores se sintam “minimamente reconhecidos”.
“Se é impossível fazer isso no espectro dos valores políticos, sociais etc., que você possa reconhecer os afetos, que você possa reconhecer os momentos em que aquela pessoa foi amorosa, que ela foi generosa, que ela cuidou do neto”, diz Amaral.
“Nesses pequenos atos a gente consegue construir pertencimento familiar, e isso pode dar uma uma diluída nessa tensão que fica o tempo inteiro se apresentando como uma rocha, como um bloco que nunca se dissolve.”
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