- Shin Suzuki
- Da BBC News Brasil em São Paulo
A sequência caótica dos eventos do 8 de janeiro em Brasília tem uma narrativa mais coesa dentro de grupos bolsonaristas porque existe a ideia de um “grande plano” em curso, afirma Leonardo Nascimento, da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Segundo o pesquisador, acontecimentos relacionados ao universo de apoiadores de Jair Bolsonaro sempre têm uma explicação e uma justificativa porque, na visão deles, “tudo foi planejado antes e faz parte de uma estratégia bem definida”.
“É uma potência narrativa mesmo. Nada escapa a ela. Então há a ideia de que existe um grande plano por trás, silenciosamente executado, e que o patriota deve acreditar no ex-presidente”, diz.
“Essa arquitetura depende da ação de certos agentes para que ela aconteça da forma ideal, acreditam eles. Por isso que devem ir para a rua para ativar os militares e permitir que Bolsonaro volte.”
As cenas de quebra-quebra e vandalismo que resultaram em destruição de espaços, peças históricas e obras de arte dentro do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal levaram figuras públicas ligadas ao bolsonarismo a criticar os atos ou a se manter em silêncio.
Mas a tônica dentro de grupos de apoiadores, no dia seguinte aos ataques, foi de apostar na narrativa dos “esquerdistas infiltrados”.
“Eles estão dizendo que a manifestação livre democrática do povo foi um sucesso, mas que o ‘Estado comunista’ já tinha tudo articulado para tentar incriminá-los através de ‘esquerdistas infiltrados’. A trama é essa, a narrativa é toda essa. Quem atacou e quem quebrou? Eles justificam que ‘não eram patriotas, porque patriota não quebra patrimônio, patriota não ataca policial'”, diz o pesquisador da UFBA.
Ele cita a utilização nas redes sociais bolsonaristas do vídeo de um invasor que segura uma bandeira do PT e acena para a câmera de um drone. Segundo o site Metrópoles, o objeto foi furtado de dentro do Congresso.
“Há uma dimensão performativa para ocultar o próprio ataque.”
Até o silêncio e a ambiguidade desempenham um papel na forma como as narrativas se desenrolam dentro das redes bolsonaristas.
O pesquisador diz que o recolhimento e os raros pronunciamentos do ex-presidente após a derrota no segundo turno da última eleição também ganham uma interpretação de seus apoiadores.
“Os psicanalistas têm uma expressão interessante: ‘aquilo que não é dito prolifera nas sombras’. Ou seja, quando você não fala, você dá margem para proliferar o trabalho do inconsciente, para milhões de coisas. Tudo isso serve de elemento para a construção de uma grande narrativa oculta, silenciosa.”
É uma característica semelhante a de um outro movimento que se baseia em teorias conspiratórias — o QAnon nos Estados Unidos.
O perfil anônimo da internet, que serviu para galvanizar uma grande base de apoio para o ex-presidente norte-americano Donald Trump, ficou conhecido por divulgar mensagens cifradas. Chegou a passar um ano e meio sem postagens. Mas seus seguidores especulavam e criavam teorias sobre a natureza desse silêncio.
“Costumam falar que é preciso tomar a red pill [pílula vermelha] para entender o que está acontecendo”, diz Nascimento, em referência ao termo que se popularizou em fóruns de extrema direita e tem origem em Matrix (1999).
No filme das irmãs Lilly e Lana Wachowski, o protagonista Neo tem que escolher entre tomar a pílula azul, que permite seguir em um mundo de ilusões, e a vermelha, para encarar a realidade. O conceito virou uma metáfora para aceitar os preceitos de diversos grupos radicais.
Narrativas coordenadas
Nascimento, que desenvolve há alguns anos um monitoramento do material postado em redes bolsonaristas junto a Letícia Cesarino, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Paulo de Freitas Castro Fonseca, também da UFBA, afirma que essa “potência narrativa” tem uma dinâmica que não é obra do acaso.
“Existe uma coordenação. E isso é uma coisa que a gente percebe desde 2020, durante a pandemia, quando a gente começou a analisar posts sobre cloroquina no Twitter. E quando a gente conseguiu ter uma visão de rede ampliada, detalhada e complexa do Telegram, aí foi possível entender como essa coordenação funcionava.”
“É tudo muito bem organizado no sentido de promover certas narrativas ou dar o start para determinadas narrativas.”
E esse trabalho tem sido facilitado pela automatização de postagens que tem o objetivo de espalhar e ampliar as ideias de um determinado grupo — algo que vem sendo replicado também pelos usuários humanos.
Os pesquisadores estão analisando o que chamam de “botificação” de participantes dessas redes radicalizadas.
Bots são aplicativos programados para executar tarefas de uma maneira que simula uma ação humana. É comum que bots, muitas vezes sob o avatar ou a imagem de um usuário humano, disparem em um determinado horário do dia vídeos e notícias que vão pautar um grupo no Telegram, por exemplo.
“As pessoas de carne e osso, ao interagir com esses perfis botificados, elas de certa forma se modificam. Elas repetem padrões, disseminam conteúdos sem que necessariamente interajam como humanos.”
“Existem pessoas que postam vídeos todos os dias, o dia todo, de diversos canais, com conteúdo que incita a radicalização e a violência. Algumas delas dedicam bastante tempo do seu dia. E vão entrando cada vez mais nessas narrativas”, afirma ele.
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