Crédito, Guilherme Leporace / Netflix

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Os atores Pedro Sol, Raquel Karro e Paulo Gorgulho em cena da minissérie ‘Todo Dia A Mesma Noite’

A advogada de 42 famílias de vítimas e sobreviventes da boate Kiss diz, em entrevista à BBC News Brasil, que existe a chance de um processo contra a Netflix por causa da série ficcional Todo Dia a Mesma Noite, mas que seus clientes “querem um diálogo colaborativo” com o serviço de streaming, para evitar o que chamam de “exploração comercial da tragédia”.

Segundo Juliane Müller Korb, as famílias que ela representa pretendem pedir uma explicação à Netflix sobre por que não foram ouvidas ou consultadas.

Ela alega que muitas só tomaram conhecimento da série no dia de seu lançamento, na sexta-feira passada (27/1), marco de dez anos da tragédia — o incêndio na casa noturna ocorreu em 27 de janeiro de 2013.

Contatada, a Netflix não se pronunciou sobre o caso até a conclusão desta reportagem.

O fogo durante a festa universitária “Agromerados” causou a morte de 242 pessoas e deixou mais de 600 feridas, em sua maioria jovens.

As famílias também pedem a alteração no trailer exibido na TV e nas redes sociais que inclui cenas do reconhecimento dos corpos em um ginásio, “um conteúdo sensível que fez alguns reviverem o trauma”, diz Müller Korb.

Por fim, desejam “debater a responsabilidade social de produções audiovisuais baseadas em fatos reais”, acrescenta a advogada.

Crédito, Kiss: Que Não Se Repita/Divulgação

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Destruição provocada pelo incêndio dentro da boate

“As famílias não querem a utilização comercial da tragédia às custas de dor e sofrimento. Faltou sensibilidade à Netflix. Ficou para elas um sentimento de resignação, de indignação, de dor e de revolta muito grande”, segundo Müller Korb.

Ao mesmo tempo, diz a advogada, “ninguém quer que essa tragédia seja esquecida, que seja varrida para debaixo do tapete; por isso, a necessidade de uma avaliação minuciosa sobre os próximos passos” — o que incluiria, eventualmente, uma ação judicial contra a plataforma de streaming.

Há relatos de familiares de vítimas e sobreviventes sendo abordados por empresas interessadas em vender artigos, como bebidas e camisetas, com promessas de que parte da renda seja revertida em benefício deles, o que, segundo a advogada, “gerou ainda mais revolta e indignação”.

Müller Korb reforça que as famílias não querem “qualquer tipo de compensação financeira”.

E que a ideia de construção de um memorial em homenagem às vítimas, inicialmente contemplada, foi descartada após a assinatura do termo de compromisso pelo prefeito de Santa Maria de que um monumento seria erguido.

As obras devem começar ainda este ano, mas não há uma data definida, prometeu o prefeito Jorge Pozzobom (PSDB).

Permanece em discussão, no entanto, a possibilidade de pedir à Netflix que parte dos lucros sejam repassados para o tratamento dos sobreviventes.

Crédito, Kiss: Que Não Se Repita/Divulgação

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90% das vítimas tinham entre 18 e 30 anos

Lançamento e repercussão

Todo Dia a Mesma Noite foi lançada pela plataforma de streaming na sexta-feira (27/1), para coincidir com os dez anos da tragédia.

Crédito, Kiss: Que Não Se Repita/Divulgação

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Mais da metade dos mortos estavam nos banheiros da boate

Dividida em cinco episódios, a série, que mistura realidade e ficção, é baseada no livro homônimo da jornalista Daniela Arbex e retrata a história de quatro familiares específicos. As vítimas, familiares e amigos são interpretados por atores.

A produção tem recebido críticas positivas da imprensa e de usuários nas redes sociais. Muitos destacam a sensibilidade com que a obra audiovisual tratou a tragédia.

Diante da grande repercussão, consideram-na importante para preservar a memória, lutar contra a impunidade e evitar que eventos similares se repitam.

A série contou com o apoio da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) que, em nota assinada pelo seu presidente, Gabriel Rovadoschi Barros, informou não ter relação com qualquer intenção de processar a Netflix (ver nota completa ao fim desta reportagem).

“Não há nenhum valor sendo pago a nós com a produção, e o que ganhamos é a crença no fortalecimento na luta por justiça e pela memória. Para que não se repita”, diz o comunicado.

Questionada sobre se a polêmica poderia prejudicar a imagem das famílias que representa junto à opinião pública, Müller Korb diz estar despreocupada.

“Acho que as pessoas não têm que tomar lado. Os dois lados precisam de respeito. Quem concorda com a exibição e quem não concorda com a exibição da forma como ela está sendo feita. Os dois lados têm que ser ouvidos porque são grupos que pensam diferente, mas que compartilham a mesma dor.”

Segundo a advogada, as famílias reconhecem que a série gerou “forte comoção social”, mas temem que, “ao visar o lucro”, possa encorajar outras formas de “mercantilização” da tragédia.

“As famílias sempre foram favoráveis a todo o conteúdo sobre o assunto e querem que o Brasil nunca se esqueça do que aconteceu. Mas não que a a tragédia seja explorada comercialmente. Uma década depois, eles ainda clamam por justiça”, conclui.

Crédito, Kiss: Que Não Se Repita/Divulgação

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Os quatro réus no processo foram condenados, mas meses depois a sentença foi anulada — e não há data para novo julgamento

Em 2021, um julgamento foi finalmente realizado e resultou na condenação dos quatro réus acusados do incêndio: os sócios Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann e os integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão.

No entanto, após acolher alguns dos argumentos dos réus, o júri foi anulado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul no ano passado — e os condenados, soltos.

Os motivos vão de critérios para a escolha dos jurados a provas apresentadas supostamente sem prazo suficiente para análise da defesa, o que é contestado pelo juiz do caso.

Recursos, tanto da acusação quanto da defesa, ainda estão sendo avaliados em instâncias superiores.

Ainda não se sabe, portanto, se o veredicto será mantido ou se um novo julgamento terá que ser realizado.

Confira a íntegra da nota da AVTSM:

“Perante a divulgação em inúmeros veículos da imprensa acerca de um processo contra a empresa Netflix em função da série “Todo o dia a mesma noite”, a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da tragédia de Santa Maria esclarece através dessa nota que estávamos sim cientes que a produção estava sendo realizada com base nos personagens do livro “Todo dia a mesma noite: a história não contada da Boate Kiss”, de Daniela Arbex, e sente-se representada por ela bem como pelo livro da autora.

A produção não retrata de forma individual os 242 jovens assassinados, mas sim um recorte das quatro famílias de pais que foram processados. Todos familiares de vítimas e sobreviventes retratados por personagens da obra estavam cientes e em concordância. Além disso, reiteramos que não estamos movendo nenhum processo contra as produções, nem pretendemos, por acreditarmos na potência das produções na luta por justiça e a luta por memória.

Acreditamos, acima de tudo, que tragédias como a que vivenciamos precisam ser contadas através de todas as formas. Recontar essa história significa denunciar as inúmeras negligências e tentativas de silenciamento que encontramos pelo caminho, além de auxiliar na prevenção para que esse tipo de tragédia não aconteça com mais nenhuma família, algo que temos como propósito desde o 1º dia de nossa fundação.

Mostrar o que aconteceu na Kiss faz com que a morte de nossos filhos e filhas, irmãos e irmãs, pais e mães, amigos e amigas não tenha sido em vão. Mostrar a morosidade, a burocracia e como é o sistema judiciário brasileiro serve como denúncia e como protesto. É preciso falar, debate, produzir materiais sobre o que aconteceu naquela trágica noite de 27 de janeiro de 2013, pois só assim conseguiremos que as pessoas entendam o que a ganância, a negligência e a omissão são capazes de fazer. Em Santa Maria, esses fatores mataram 242 jovens e deixaram 636 com marcas físicas e psicológicas.

Entendemos que rever a tragédia, principalmente nos dois primeiros episódios pode mobilizar os sentimentos, as lembranças e dimensionar a impunidade em sua ferocidade, e, com isso, a associação se disponibiliza a acolher e a promover ações para comporem o movimento por justiça.

Por fim, esclarecemos que desde o dia 27 de janeiro de 2013, nós sofremos com a perda irremediável de nossos filhos, irmãos e amigos, sabemos o quanto isso nos dói. Não há nenhum valor sendo pago a nós com a produção, e o que ganhamos é a crença no fortalecimento na luta por justiça e pela memória. Para que não se repita.

Santa Maria, 29 de janeiro de 2023.

Gabriel Rovadoschi Barros

Presidente da Associação dos Familiares de Vìtimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria.”