O carro deslizava suavemente pela rodovia impecavelmente conservada de AlUla, uma região no noroeste da Arábia Saudita, quando o motorista saiu abruptamente da estrada.
“Perdi o desvio”, disse ele.
Olhei pela janela meio confusa, pois não conseguia ver uma curva óbvia.
“Aqui”, exclamou ele, enquanto o carro sacudia pelas rochas de basalto para pegar um caminho quase imperceptível para o deserto.
Seguimos por uma paisagem vasta e plana. Um céu azul brilhante nos cercava por todos os lados, e um punhado de nuvens brancas pairava baixo.
Depois de alguns minutos, paramos em um círculo de pedras empilhadas. Saí do carro, esperando encontrar Jane McMahon, integrante de uma equipe de arqueólogos da Universidade da Austrália Ocidental que trabalha em AlUla desde 2018.
Ao meu redor havia uma planície árida de rochas cinzas-escuro levemente polvilhadas com areia rosada.
Havia algo de sobrenatural naquilo tudo: a falta de uma única árvore ou pedaço de grama; a quietude do ar que só era interrompida de vez em quando por uma rajada implacável de vento que gelava até os ossos.
Vim até aqui porque as recentes descobertas em AlUla estão lançando luz sobre um período fascinante da história na Arábia Saudita.
Como o país só abriu para pesquisas internacionais há alguns anos (e para turistas em 2019), muitos de seus sítios arqueológicos antigos estão sendo estudados pela primeira vez.
Embora os historiadores estejam familiarizados com as ruínas das cidades de cerca de 2.000 anos de Hegra e Dadan, localizadas na Rota do Incenso (as tumbas e monumentos de Hegra são Patrimônio Mundial da Unesco), eles não tinham muito conhecimento sobre a civilização que veio antes — até agora.
Vestígios milenares
Eles descobriram que, espalhados pela vasta e remota paisagem de AlUla, estão vestígios arqueológicos milenares que podem mudar nossa compreensão da pré-história.
O trabalho de McMahon e seus colegas está lançando luz sobre alguns dos primeiros monumentos de pedra da história mundial — anteriores a Stonehenge e à primeira pirâmide de Gizé.
Quando McMahon chegou, explicou que o círculo de rochas ao meu lado era os restos de uma casa ocupada no período Neolítico (de 6000 a 4500 a.C.), e que esta área já foi repleta de prósperos assentamentos.
Até recentemente, o pensamento predominante era que esta região tinha pouca atividade humana até a Idade do Bronze após 4000 a.C.
Mas o trabalho de McMahon e seus colegas revelou uma história muito diferente: que a Arábia Saudita neolítica era uma paisagem dinâmica, intensamente povoada e complexa, espalhada por uma vasta área.
Ao meu redor, havia mais de 30 moradias e túmulos, e isso era apenas uma pequena fração dos vestígios encontrados aqui.
Tentei imaginar como a paisagem poderia ser há milhares de anos: verde, exuberante e repleta de pessoas que se moviam ruidosamente, pastoreando cabras e chamando umas pelas outras.
“O clima e a paisagem inerte da Arábia Saudita significam que a maior parte da arqueologia está muito bem preservada na superfície de 5 mil a 8 mil anos atrás. Então exatamente do jeito que você vê, é como era todo esse tempo atrás”, diz McMahon.
Ela explica que entender mais sobre a vida destes primeiros povos também poderia esclarecer como os grandes e densos assentamentos de Hegra e Dedan se desenvolveram, e como ocorreram as mudanças culturais e tecnológicas na região — como a agricultura de irrigação, metalurgia e textos escritos — nos milênios seguintes.
“As mudanças culturais que aconteceram após o Neolítico são enormes, mas não sabemos muito como estas mudanças ocorreram”, diz ela. No entanto, mesmo nas mãos de arqueólogos tão experientes, uma descoberta em AlUla continuou carecendo de explicação.
Espalhadas por uma área de impressionantes 300 mil quilômetros quadrados e construídas num modelo relativamente consistente, estão 1,6 mil estruturas monumentais retangulares de pedra que também datam do período Neolítico.
Inicialmente chamadas de “portões” devido à sua aparência vista de cima, as estruturas foram posteriormente renomeadas como “mustatil”, expressão árabe que pode ser traduzida como “retângulo”.
“Faz voar sua imaginação pensar que temos estruturas tão grandes quanto cinco a seis campos de futebol, feitas de milhares de toneladas de pedra, que não apenas cobrem uma região geográfica enorme, como também têm 7.000 anos”, diz Hugh Thomas, codiretor dos Projetos de Arqueologia Aérea do Reino da Arábia Saudita (AAKSAU, na sigla em inglês).
Ele tem trabalhado ao lado de McMahon nos últimos dois anos, realizando pesquisas arqueológicas aéreas e escavações direcionadas para entender o propósito do mustatil.
Os mustatils são certamente impressionantes, e a única maneira real de ter uma noção do seu tamanho é pelo ar. Quando sobrevoei as estruturas de helicóptero, pude ver as grandes pedras dispostas em linhas retas na areia, com aproximadamente o comprimento de quatro campos de futebol e uma largura de pelo menos dois.
“Na minha opinião, os mustatils estão entre as estruturas arqueológicas mais únicas identificadas até agora no mundo”, avalia Thomas.
“Quando olhamos para outras estruturas que datam do Neolítico que são tão impressionantes em sua construção, tenho dificuldade de pensar em alguma que cubra uma região geográfica tão grande.”
Além de ter registrado mustatils de vários tamanhos e complexidade, a equipe de Thomas também notou características consistentes. Todos foram construídos de maneira semelhante, empilhando pedras para formar paredes baixas que são preenchidas com cascalho — e incluem uma cabeça (o topo da estrutura), uma base e paredes compridas que os conectam.
Alguns possuem entradas e vários pátios interiores estreitos. As pedras usadas para a construção foram especialmente escolhidas, de modo a se encaixar e suportar as grandes estruturas, demonstrando uma profunda compreensão dos materiais locais.x
Para que serviam os mustatils?
Estes monumentos pré-históricos foram registrados pela primeira vez na década de 1960 por uma equipe local que realizava levantamentos de solo, mas naquela época ninguém sabia do que se tratava.
Pesquisas de sensoriamento remoto realizadas pelo professor David Kennedy (também da Universidade da Austrália Ocidental), em 2017, acentuaram o interesse na área, e as teorias iniciais sugeriam que os mustatils eram usados como marcadores territoriais para pastagens ancestrais.
No entanto, à medida que foram encontradas cada vez mais estruturas, todas datando do mesmo período, surgiu um entendimento diferente.
Desde então, Thomas, McMahon e suas equipes descobriram evidências que sugerem a prática de um culto.
Eles acharam um grande número de crânios e chifres de gado, cabra e gazela selvagem em pequenas câmaras nas cabeças dos mustatils, mas não encontraram nenhuma indicação de que fossem mantidos para uso doméstico.
Como não foram encontradas partes do corpo de nenhum outro animal, isso levou a equipe a deduzir que eram sacrifícios. E sugeria que os animais eram sacrificados em outro lugar. Isso é importante porque é evidência de uma sociedade de culto altamente organizada, muito mais antiga do que se pensava anteriormente — antecedendo o Islã na região em 6 mil anos.
“A escavação de vários mustatils revelou artefatos sugestivos de práticas rituais que ocorriam dentro das estruturas”, diz Thomas.
“As pessoas que os construíram tinham uma cultura e um sistema de crenças compartilhados, e esta não era uma prática localizada. Ela se espalhava por uma área enorme da Arábia, do tamanho da Polônia.”
“A Arábia Saudita tem a aparência de ser uma paisagem árida e inóspita, vista como isolada do resto do mundo, exceto por alguns locais notáveis, como Dedan e Hegra. No entanto, evidências arqueológicas, como os mustatils, demonstram que a região tinha uma história rica e complexa. Ter uma estrutura tão amplamente dispersa em uma área tão grande sugere um sistema de crenças, idioma e cultura compartilhados em uma escala que eu pessoalmente nunca imaginei ser possível”, acrescenta Thomas.
‘Mais pesado que a Torre Eiffel’
Munirah Almushawh, codiretor de um projeto arqueológico em Khaybar (outra área de AlUla), concorda, observando que esta sociedade não apenas compartilhava um sistema de crenças único, como viajou grandes distâncias para compartilhar o conhecimento que permitiu construir as estruturas.
Alguns dos mustatils pesam até 12 mil toneladas; mais do que a Torre Eiffel. Sua construção teria exigido conhecimento, habilidade e organização por longos períodos de tempo. “O mustatil sugere grandes redes sociais, habilidades arquitetônicas inovadoras e vasta exploração na Arábia pré-histórica”, observa Almushawh.
Apesar destas descobertas emocionantes, o conhecimento sobre os mustatils ainda é incipiente, com apenas cinco dos 1,6 mil escavados até agora. A única certeza é que AlUla continuará a revelar seus mistérios.
À medida que a região reabre para o turismo pós-pandemia de covid-19, há planos para construir um enorme museu a céu aberto, onde os visitantes podem se embrenhar por vários sítios arqueológicos ou contar com o serviço de um guia.
Os turistas vão poder aprender sobre o período Neolítico, ver as antigas ruínas de casas e mustatils, e imaginar como esta sociedade aparentemente altamente organizada vivia e se deslocava pela paisagem.
McMahon e Thomas estão tão animados com o futuro de AlUla quanto com seu passado.
“O significado do que descobrimos está reescrevendo a história do Neolítico no noroeste da Arábia”, afirma McMahon.
“Nosso trabalho revelou até agora apenas o que sempre existiu: a complexidade do período Neolítico nesta região, que anteriormente havia sido considerada inabitável ou meramente sem importância na época.”
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