- Author, Leandro Prazeres
- Role, Da BBC News Brasil em Brasília
- Twitter, @PrazeresLeandro
As investigações sobre a suposta fraude em cartões de vacina contra a covid-19 que teria beneficiado o ex-presidente Jair Bolsonaro, sua filha de 12 anos de idade e auxiliares próximos apontaram, também, a existência de conversas entre militares e ex-militares que chamaram atenção das autoridades.
O funcionamento do esquema foi divulgado pela Polícia Federal no dia 3 de abril, após a deflagração da Operação Venire. A operação prendeu seis pessoas, entre elas o tenente-coronel e ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid, e o ex-major do Exército Ailton Barros.
Segundo a PF, o esquema funcionaria a partir da inserção de dados falsos no Sistema de Informação do Programa Nacional de Imunização (SI-PNI) indicando que Bolsonaro, sua filha e alguns de seus auxiliares mais próximos constasse como vacinados contra a covid-19 quando, na realidade, eles não teriam sido imunizados contra a doença.
Em entrevista na semana passada à rádio Jovem Pan, Bolsonaro negou qualquer irregularidade e voltou a dizer que não se vacinou. “Não existe adulteração de minha parte. Eu não tomei a vacina”, disse o ex–presidente.
Nos dias que se seguiram, porém, emissoras de TV como a CNN Brasil e a Globo News passaram a divulgar o conteúdo de mensagens de texto e de áudio que mostravam aliados de Bolsonaro discutindo um suposto plano a ser executado pelas Forças Armadas após a derrota do ex-presidente para Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para impedir que o petista assumisse o governo.
As mensagens teriam sido interceptadas pela Polícia Federal após perícia em telefones celulares apreendidos dos suspeitos. Para o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, as mensagens foram classificadas como “tratativas para a execução de um golpe de Estado”.
Segundo as mensagens, o plano envolvia, inclusive, que militares das Forças Armadas prendessem Moraes.
As mensagens também mencionam o coronel do Exército e ex-secretário-executivo do Ministério da Saúde Antônio Elcio Franco Filho.
A BBC News Brasil procurou a defesa do presidente Jair Bolsonaro e Mauro Cid para se pronunciarem sobre o assunto.
O advogado de Bolsonaro, Marcelo Bessa, disse que só se manifestaria sobre o caso nos autos do processo. Por mensagem de texto, o assessor de imprensa de Bolsonaro, Fabio Wajngarten, negou que o ex-presidente soubesse do teor das conversas.
“Zero (conhecimento). Tanto que ele não aparece nos áudios”, disse. A BBC News Brasil não conseguiu identificar quem faz a defesa de Ailton Barros.
A defesa de Mauro Cid não respondeu aos contatos.
De acordo com as informações divulgadas pela CNN Brasil e pela Globo News, as mensagens mostram, de um lado, Ailton Ramos repassando a Mauro Cid o que seria um plano a ser executado após a derrota de Bolsonaro nas eleições.
Em outro momento, as mensagens mostram Elcio Franco detalhando sua versão do plano a Ailton Ramos.
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que o impacto das mensagens é grave uma vez que elas se tratariam de um plano de golpe de Estado tramado por pessoas muito próximas ao então presidente.
Eles apontam, no entanto, que ainda há perguntas importantes sem resposta sobre o caso, especialmente em relação à suposta participação ou conhecimento de Bolsonaro sobre o assunto.
O que ainda falta ser respondido?
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que o conteúdo das mensagens é “gravíssimo” e podem levar os envolvidos à cadeia. Porém, eles apontam que ainda há pontos a serem esclarecidos, especialmente, em relação à possibilidade de envolvimento ou conhecimento de Bolsonaro sobre o suposto plano de golpe de estado.
As principais perguntas que, segundo eles, ainda faltam ser respondidas são:
- Que medidas Mauro Cid tomou após ter recebido as mensagens de Ailton Barros?
- Mauro Cid compactuava com os planos esboçados pelo ex-major?
- Bolsonaro tinha conhecimento sobre o que Ailton Barros e Elcio Franco discutiam?
- Se tinha conhecimento, que medidas o ex-presidente tomou?
Para o advogado especialista em direito eleitoral e constitucional Arthur Rollo, uma das questões a serem respondidas pela investigação é se Mauro Cid tomou alguma medida ao receber as mensagens de Ramos para impedir o ex-militar de continuar com o suposto plano.
“O conteúdo das mensagens é gravíssimo. Podemos dizer que estamos diante de atos próximos à preparação de um golpe de estado. O que precisamos saber é se Mauro Cid tomou alguma medida ao receber essas mensagens porque se ele não tomou, isso poderia configurar prevaricação, que é quando um agente público deixa de reportar uma conduta errada ou criminosa mesmo tendo conhecimento dela”, disse Rollo.
Rollo explica que, diante do conteúdo das mensagens enviadas a Mauro Cid, o ex-Ajudante de Ordens teria a obrigação, como funcionário público, de denunciar o ocorrido para impedir que o suposto plano continuasse a ser discutido.
“Caso ele não tenha feito isso, há implicações tanto na esfera criminal quanto na esfera administrativa. Ele pode ser punido se ficar comprovado que ele não tomou nenhuma medida”, afirmou o advogado.
O professor do Departamento de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Rodrigo Kanayama, disse que saber se Mauro Cid fazia parte da trama supostamente elaborada por Ramos e Elcio também é importante.
Ele diz que, como até agora, não foram divulgadas as respostas do ex-Ajudante de Ordens a Ramos, ainda não é possível responder a essa pergunta com precisão.
“O simples fato de haver agentes públicos trocando mensagens com esse tipo de conteúdo já merece ser investigado. Agora, com base no conteúdo que já foi divulgado, ainda não dá para dizer se ele compactuava com isso. É preciso que as investigações avancem para responder isso”, disse o professor.
Kanayama também diz que é preciso que as investigações conduzidas pela Polícia Federal ajudem a responder se Bolsonaro tinha conhecimento sobre o que Elcio Franco e Ailton Barros discutiam.
Na época em que o diálogo entre os dois se deu, Franco era assessor especial da Casa Civil, que funciona no Palácio do Planalto. Era considerado um nome próximo ao núcleo militar do governo de Bolsonaro. Foi após deixar o Ministério da Saúde que Franco assumiu um cargo na Casa Civil.
Franco foi o número 2 do Ministério da Saúde durante a passagem do hoje deputado federal Eduardo Pazuello como ministro da pasta, entre 2020 e 2021. Por sua participação na condução da resposta do governo à epidemia de Covid-19, ele foi alvo da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia.
Ailton Barros, por sua vez, era um antigo aliado de Bolsonaro no Rio de Janeiro. Ele participou de eventos com o ex-presidente e era chamado por ele de “segundo irmão”. Ele chegou a se candidatar a deputado estadual pelo Rio de Janeiro, mas não foi eleito.
Nos pedidos de prisão e busca e apreensão feitos pela Polícia Federal, os investigadores citam que teriam sido encontradas evidências de que Barros, possivelmente, mantinha contato com Bolsonaro.
“As imagens capturadas de diálogos indicam inclusive que Ailton Barros trocava mensagens sobre os referidos temas com o contato registrado como ‘PR01’, chamado pelo investigado de ‘PR’, possivelmente se referindo ao ex-Presidente da República Jair Messias Bolsonaro, revelando sua atuação como um dos propagadores da ideologia professada pela milícia digital investigada”, diz um trecho do pedido feito pela PF ao STF.
O documento, no entanto, não cita se ou como Bolsonaro respondia às mensagens de Barros.
A expectativa, neste momento, recai sobre a perícia que a PF já começou a fazer no telefone celular do presidente, apreendido pelos investigadores na semana passada.
Além de saber se Bolsonaro tinha conhecimento do que Franco e Barros conversavam, a expectativa é de que a análise do conteúdo do celular do ex-presidente possa responder à última pergunta elencada pelos especialistas: se chegou a saber do que se discutia, que medidas Bolsonaro tomou a respeito?
“É preciso ter muito cuidado porque não é porque um assessor ou alguém próximo como Mauro Cid ou Elcio Franco discutiam isso que, necessariamente, o presidente tinha conhecimento. Isso ainda precisa ser alvo de investigação. Até agora, não foi divulgada nenhuma mensagem indicando algo nesse sentido. Não se pode presumir nada. É preciso haver um vínculo direto”, diz Arthur Rollo.
O professor Rodrigo Kanayana concorda com Rollo.
“Neste momento, não vi nenhuma mensagem expressa do ex-presidente autorizando a discussão sobre essa hipótese (golpe de estado). Isso é uma das coisas que a PF deverá investigar”, disse.
Kanayana afirma, porém, que Bolsonaro pode ser responsabilizado pelo simples fato de ter conhecimento sobre o suposto plano. A lógica seria a da prevaricação.
“Só fato de ele saber e se omitir já seria suficiente. Ainda que não haja evidências de que ele participou do plano, se ele se omitiu, já cabe uma responsabilização. Se ele se envolveu diretamente, o problema seria ainda maior”, explica o professor.
O que dizem as mensagens?
No dia 15 de dezembro de 2022, Ramos teria enviado uma mensagem a Cid detalhando seu plano. Naquele momento, milhares de pessoas acampavam em frente a quarteis e unidades militares de todo o país pedindo uma intervenção militar para impedir que Lula tomasse posse. Apesar dos apelos de diversos segmentos da sociedade, o Exército não tomou medidas para retirar os acampados.
“[…] entre hoje e amanhã, sexta-feira, tem que continuar pressionando o Freire Gomes (então comandante do Exército) pra que ele faça o que ele tem que fazer. Até amanhã à tarde, ele aderindo… bem, (sic) ele faça um pronunciamento. Então, se posicionando dessa maneira para defesa do povo brasileiro. E se ele não aderir quem tem que fazer esse pronunciamento é o Bolsonaro para levantar a moral da tropa que você viu, né?”, diz um trecho da mensagem.
“[…] a primeira coisa é essa. É esse pronunciamento ou do Freire Gomes ou do Bolsonaro até amanhã à tarde. E também, até amanhã à tarde, todos os atos, todos os decretos da ordem de operações já têm de estar prontos”, prossegue Ramos.
Em seguida, Ramos cita o plano para prender Alexandre de Moraes, apontado por militantes bolsonaristas como um dos principais adversários do ex-presidente.
“Nos decretos e assim nas portaria que tiverem que ser assinadas, têm que ser dada a missão ao comandante da Brigada de Operações Especiais de Goiânia de prender Alexandre de Moraes no domingo, na casa dele. Como ele faz com todo mundo”, diz a mensagem.
Não há informações sobre como Cid teria respondido a Barros neste episódio.
No outro conjunto de mensagens divulgado, Elcio Franco e Ailton Barros conversam sobre o assunto.
“O Freire (possível menção ao então comandante do Exército Freire Gomes) não vai. Você não vai esperar dele que ele tome à frente nesse assunto, mas ele não pode impedir de receber a ordem. Ele vai dizer, morrer de pé junto, porque ele tá mostrando. Ele tá com medo das consequências, pô. Medo das consequências é o quê? Ele ter insuflado? Qual foi a sua assessoria? Ele tá indo pra pior hipótese. E qual, qual é a pior hipótese?”, indaga Elcio.
Em outro trecho, Elcio Franco volta a mencionar uma suposta hesitação de Tomás Freire em tomar as medidas cogitadas por ele e Ailton Barros. Ele menciona até o que poderia ser alegado por Freire em um hipotético julgamento pelo Tribunal de Nuremberg, que julgou lideraças nazistas após a Segunda Guerra Mundial.
“Ah, deu tudo errado, o presidente foi preso e ele tá (sic) sendo chamado a responder. […] Eu falei, ó, eu, durante o tempo todo [ininteligível] contra o presidente, pô, falei que não, não deveria fazer, que não deveria fazer, que não deveria fazer e pronto. Vai pro Tribunal de Nuremberg desse jeito. Depois que ele me deu a ordem por escrito, eu, comandante da Força, tive que cumprir. Essa é a defesa dele, entendeu? Então, sinceramente, é dessa forma que tem que ser visto”, disse Elcio Franco a Ailton Barros, segundo a CNN Brasil.
Em outra leva de mensagens, ainda segundo a CNN Brasil, Barros voltou a falar, agora com Elcio Franco, sobre a necessidade de usar os militares para prender Alexandre de Moraes.
“[É preciso convencer] o general Pimentel (provável menção ao general Carlos Alberto Rodrigues Pimentel). Esse alto comando de m… que não quer fazer as p…, é preciso convencer o comandante da Brigada de Operações Especiais de Goiânia a prender o Alexandre de Moraes. Vamos organizar, desenvolver, instruir e equipar 1.500 homens”, disse Barros.
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