- André Bernardo
- Do Rio de Janeiro para a BBC News Brasil
Dos mais de 35,5 mil versículos da Bíblia, o favorito de Sidney Francisco Sales, de 53 anos, é o sétimo do Salmo 91: “Caiam mil ao teu lado, dez mil à tua direita, nada poderá atingi-lo”. E não é por acaso.
Na tarde de 2 de outubro de 1992, cerca de 340 homens da Polícia Militar de São Paulo receberam ordens para invadir o Pavilhão 9 da Casa de Detenção, mais conhecida como Carandiru, para conter uma rebelião.
Por volta das cinco da tarde, Sales subiu às pressas para o quinto andar, onde ficava sua cela, a 504-E, e deu de cara com três policiais militares.
“Vai ter que acontecer um milagre em sua vida hoje”, disse, em tom de deboche, o soldado que segurava uma argola com cerca de 50 chaves.
“Um milagre? Por quê?”, perguntou Sales, ainda esbaforido, arregalando os olhos.
“Vou escolher uma dessas chaves”, começou a explicar o PM, engatilhando a escopeta calibre 12. “Se a chave abrir o cadeado da cela, você entra e vive. Se não abrir, você fica e morre aqui mesmo no corredor”, avisou, apontando a arma para a cabeça do preso.
“Vamos executar você!”, completou o outro agente da lei.
Naquela época, Sales ainda não acreditava em milagres. Pelo sim pelo não, fechou os olhos com força e começou a rezar baixinho o único versículo bíblico que conhecia.
Uma semana antes, sua mãe, Maria da Conceição Sales, lhe enviara uma carta, onde copiou, a mão, o bendito salmo. Sales ainda recitava baixinho o texto sagrado quando ouviu o ruído do cadeado se abrindo.
Trinta anos depois, ele imita o barulho, estalando a língua.
“Minha mãe morreu há uns dois anos. Foi a maior perda que sofri na vida. Nunca desistiu de mim. Sempre repetia: ‘Mãe de joelho e filho de pé’!”, emociona-se.
Campo de concentração
Em uma das últimas cenas do filme Carandiru (2003), dirigido pelo cineasta argentino Hector Babenco (1946-2016), Sales aparece lendo a carta da mãe.
No longa adaptado do livro Estação Carandiru (1999), escrito pelo médico Drauzio Varella, ele é interpretado pelo ator Robson Nunes e se chama Davidson, ou Dada, o craque do time do presídio.
O pastor evangélico Sidney Sales é um dos sobreviventes do Massacre do Carandiru, o maior da história do sistema carcerário brasileiro.
Estima-se que, em apenas 20 minutos, 111 presos foram mortos e outros 35 ficaram feridos durante uma operação da PM para conter uma rebelião.
Os números são da Secretaria de Segurança Público do Estado de São Paulo.
Do total de mortos, 102 foram executados por armas de fogo e nove por armas brancas.
Segundo estimativas extraoficiais, os números de mortos são ainda maiores. “111 é pouco. Morreram mais de 250. Muitos não tinham pai ou mãe para reclamar seus cadáveres”, defende Sales.
Nenhum policial foi morto na operação.
“Peço desculpas a quem perdeu a família nos campos de concentração nazistas, mas só tinha visto aquilo nos filmes da Segunda Guerra Mundial. Carandiru foi meu Auschwitz”, compara.
A hora da invasão
Paulista de Jundiaí, município a 57 km da capital, Sales chegou à Casa de Detenção do Carandiru, o maior complexo penitenciário da época na América Latina, em 1989.
Tinha 19 anos quando foi preso em flagrante pela Polícia Federal por roubo de carga em Osasco e levado para o Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado (Deic), o antigo Departamento Estadual de Investigações Criminais.
Condenado a quatro anos de prisão, Sales foi transferido para o Pavilhão 9, que abrigava cerca de 2,5 mil dos quase 8 mil detentos do Carandiru. Para lá, eram mandados os réus primários ou, no linguajar do presídio, os “cabeças de bagre”. Os presos de maior periculosidade ficavam no Pavilhão 8.
Dos 111 mortos no Carandiru, 88 (80% do total) eram presos provisórios. Ou seja, que ainda não tinham sido julgados pelos delitos que cometeram.
Minutos antes da invasão, Sales comemorava a vitória do Cascudinho, time que ajudou a fundar e no qual jogava como zagueiro, por 2 a 1.
Por volta de uma e meia da tarde, ouviu dizer que Antônio Luiz Nascimento, o Barba, e Luiz Tavares de Azevedo, o Coelho, tinham se envolvido numa briga no segundo andar do pavilhão.
Até hoje, não se sabe ao certo o motivo do desentendimento. Dias antes, Barba tinha vendido fiado para Coelho. Como um não pagou o que devia, o outro resolveu cobrar a dívida.
Os carcereiros ainda tentaram apartar a briga, mas os detentos não deixaram. Segundo a lei da cadeia, uma briga entre líderes de facções só termina quando um dos dois morre.
Nenhum deles morreu, mas ambos ficaram feridos. Coelho foi transferido para o ambulatório, no Pavilhão 4. Já Barba demorou a ser socorrido pelos agentes penitenciários.
As facções, espumando de ódio, declararam guerra entre si. Na confusão, atearam fogo na marcenaria. As chamas se espalharam e chegaram à cozinha. Houve explosão de gás.
Com um megafone, o diretor do presídio, José Ismael Pedrosa (1935-2005), tentou acalmar os ânimos. Não conseguiu. Foi quando pediu ajuda à PM para controlar a situação.
O então secretário de Segurança Pública de São Paulo, Pedro Franco de Campos, autorizou a entrada dos policiais militares sob o comando do coronel Ubiratan Guimarães (1943-2006).
Com a repercussão negativa do caso, Campos deixou o cargo seis dias depois da operação.
Participaram da intervenção, além da Tropa de Choque, as Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), o Comando de Operações Especiais (COE) e o Grupo de Ações Táticas Especiais (Gate).
Não havia reféns no Pavilhão 9. Todos os 20 carcereiros, diante da iminente explosão da panela de pressão, deram no pé.
Barril de pólvora
A ordem para invadir o Carandiru foi dada às quatro e meia da tarde. À medida que os policiais entravam, armados de fuzis, metralhadoras e escopetas, os presos, munidos de paus, estiletes e facões, fugiam, acuados, para os andares superiores.
Os detentos ainda improvisaram uma barricada com móveis e colchões. Mas, de nada adiantou.
À princípio, Sales achou que os policiais estivessem usando balas de borracha. Mas, quando o cheiro de pólvora se espalhou pelo ar, viu que estava enganado.
Ele e outros presos tentaram procurar abrigo em uma caixa d’água no telhado do prédio, mas o rasante de um helicóptero da polícia cuspindo bala os obrigou a voltar para dentro do pavilhão.
No quinto andar, o grupo se trancou em uma das celas. Um policial abriu o guichê (a abertura na porta de ferro) e efetuou disparos a esmo. Um ricocheteou na parede e atingiu a nuca de um preso chamado Estevão. Morreu na hora.
Do lado de fora, o policial perguntou quantos presos havia na cela e, em seguida, ordenou que todos tirassem as roupas e saíssem.
No corredor de pouco mais de dois metros de largura, Sales se deparou com dezenas de corpos amontoados no chão. Muitos estavam de bruços, com marcas de tiro à queima-roupa. Outros, ainda vivos, gemiam de dor ou gritavam por socorro.
Perto da escada que levava para o quarto andar, os policiais improvisaram um corredor polonês e agrediram os presos a golpes de cassetete. Alguns eram arremessados no poço do elevador.
Dos 111 mortos, 78 foram executados no segundo andar. Quinze morreram no primeiro andar, 10 no quarto e oito no terceiro.
Queima de arquivo
Terminada a operação, os policiais recrutaram alguns presos para recolher os corpos. Sales foi um deles.
Enquanto um detento segurava os braços, o outro carregava as pernas. Muitos presos, para escapar da morte, se fingiram de mortos. Sales calcula ter transportado cerca de 30 corpos. Empilhados num canto do pátio, os cadáveres eram removidos, através de rabecões, para o Instituto Médico Legal (IML).
Na madrugada do dia 3, os funcionários do IML não tiveram descanso. Os corpos não paravam de chegar ao necrotério. Dos 515 tiros disparados pelos PMs, 254 foram no peito e 126 na cabeça dos presos. Outros 135 foram desferidos nos membros inferiores.
Os peritos identificaram ainda sinais de espancamento e de mordidas de cães no corpo das vítimas.
Sales estava transportando os últimos corpos quando se deu conta de que um deles estava, havia pouco tempo, fazendo o mesmo serviço. “É queima de arquivo”, pensou. “Serei o próximo!”.
Largou o homem ali mesmo e correu para o quinto andar. Foi quando deu de cara com os PMs que decidiram sua sorte com a argola de chaves.
De volta ao crime
Um dia depois do massacre, Sales foi transferido para Mirandópolis, uma penitenciária no interior do Estado, onde terminou de cumprir sua pena. Em 1993, ganhou a liberdade, mas, negro, dependente químico e semianalfabeto, demorou para arranjar emprego. Bateu em muitas portas, mas nenhuma delas se abriu.
“Quando saí da prisão, tinha o Ensino Médio incompleto. As empresas exigiam Word, Excel, Power Point… Não fazia ideia do que era isso. O máximo que eu tinha era um diploma de datilografia”.
Passados seis meses, Sales voltou a participar de roubos e assaltos. Pior: começou a beber e a consumir drogas.
Em um confronto com a polícia, levou seis tiros e foi parar numa cadeira de rodas. Conclusão: mais dois anos de prisão, em regime fechado.
“A Lei Áurea foi assinada pela Princesa Isabel, mas ainda não entrou em vigor no Brasil. Eles não libertaram os negros. Apenas trocaram a escravidão pelo encarceramento”.
Segunda chance
Hoje, Sidney Sales mora em Várzea Paulista, no interior de São Paulo, e administra, ao lado da mulher, Adriana, quatro centros de acolhimento para pessoas em situação de rua e duas clínicas de reabilitação para usuários de drogas. Neles, oferece, entre outras, oficinas de costura, panificação e agricultura.
Por suas instituições, já passaram mais de 5 mil pessoas. Atualmente, são 150. Não satisfeito, ele ainda dá emprego para outras 50, todas com carteira assinada.
“Sou mais um ex-detento que virou pastor no Brasil. Sabe por que isso acontece? Porque a porta da igreja é a única que se abre para quem saiu da prisão e está à procura de uma segunda chance”.
Em 2007, Sales publicou Paraíso Carandiru — A História do Homem que, Levado ao Inferno, Encontrou a Porta do Céu. No momento, rascunha seu segundo livro, ainda sem título definido.
“No primeiro, falo do meu passado. No segundo, do meu presente. Meu passado me condena, eu sei. Mas, meu presente me absolve.”
Entre outros temas, Sales dá palestra sobre dependência química e ressocialização de presos em colégios, universidades e presídios.
Em 2019, participou do Brazil Conference Harvard & MIT, em Boston, a capital de Massachusetts (EUA).
Ao lado de Maria Laura Canineu, a representante do Human Rights Watch, e de Flávio Dino, o governador do Maranhão, integrou o painel sobre Transformação do Sistema Carcerário Brasileiro.
“Dizem que bandido bom é bandido morto. Discordo. Bandido bom é bandido ressocializado. O problema é que o Estado não ressocializa ninguém. Quem cumpre esse papel são as instituições filantrópicas.”
Triste recorde
No ano em que o Massacre do Carandiru completa três décadas, o sistema prisional brasileiro atinge um recorde histórico: 919,6 mil presos — 867 mil homens e 49 mil mulheres.
É, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a maior população carcerária já registrada no país.
“Trinta anos depois, nada mudou. Pelo contrário. Piorou. Nosso sistema penitenciário faliu. Dentro dos presídios, o Estado não existe. São as facções criminosas que tomam conta das carceragens no país.”
Um levantamento do World Prison Brief (WPB), órgão do Instituto de Pesquisa de Política Criminal da Universidade de Londres (ICPR, na sigla em inglês), revela que o Brasil ocupa hoje a terceira posição no ranking dos países com maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos EUA (2 milhões) e da China (1,6 milhão). São 434 presos por cada 100 mil habitantes.
A situação carcerária no Brasil só não é ainda pior porque 352 mil mandados de prisão, 24 mil de foragidos, continuam em aberto. Caso contrário, o total de encarcerados já teria chegado a 1,2 milhão de pessoas.
“O sistema carcerário brasileiro é, para dizer o mínimo, uma calamidade. Mesmo assim, não desisti de sonhar. Quero prisões mais humanizadas, daquelas em que os presos saem de lá com uma profissão. No Maranhão, por exemplo, os detentos plantam legumes e verduras para creches e escolas. Quando o governador me contou, não acreditei. Achei que estivesse mentindo. Tive que ver com meus próprios olhos para acreditar.”
O país da impunidade
Até hoje, nenhum dos 340 policiais que invadiram o Carandiru foi preso. Entre 2013 e 2014, 74 deles foram condenados a penas de até 624 anos de prisão. Mas, o julgamento foi anulado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) em 2016. “Não houve massacre. Houve legítima defesa”, declarou um desembargador.
Em 2021, o caso sofreu nova reviravolta: uma decisão unânime do Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve a condenação dos 74 PMs.
Em 2001, o coronel da reserva Ubiratan Guimarães foi condenado a 632 anos de prisão pela morte de 102 dos 111 presos. Com direito a recorrer da pena em liberdade, o comandante da invasão foi eleito deputado estadual em 2002, com 56 mil votos pelo antigo PPB, o Partido Progressista Brasileiro.
Foi absolvido em fevereiro de 2006 por decisão do TJ-SP.
Em 10 de setembro de 2006, o Coronel Ubiratan foi encontrado morto em seu apartamento nos Jardins. Acusada de sua morte, sua namorada, a advogada Carla Cepollina, foi absolvida por falta de provas.
No muro do prédio onde ele morava, picharam a frase: “Aqui se faz, aqui se paga”.
Quem também morreu assassinado foi o antigo diretor do Carandiru, José Ismael Pedrosa.
Aposentado desde 2003, foi executado com dez tiros ao volante de seu Honda Civic em uma emboscada no dia 23 de outubro de 2005. Não andava em carro blindado, nem tinha proteção de escolta.
O crime foi cometido por integrantes do Primeiro Comando da Capital (PCC), a maior facção criminosa do país. Os assassinos receberam penas que variaram de 14 a 19 anos de prisão.
Quatro anos antes, sua filha, a médica Eulália Pedrosa Almeida, fora sequestrada em Taubaté, no interior de São Paulo. Em vez de resgate, os sequestradores pediram a soltura de líderes do PCC.
Em 42 horas, a polícia estourou o cativeiro em São Vicente, resgatou a vítima e prendeu três sequestradores.
“Não consigo mais ter raiva de ninguém. Mas reconheço o quanto eles foram incompetentes. Não souberam administrar a situação. Poderiam ter simplesmente cortado o fornecimento de água, luz ou comida. Teríamos nos rendido em dois ou três dias. Se tivessem feito isso, não teria acontecido aquela carnificina”.
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