Está marcado para esta quarta-feira (26/04) o depoimento do ex-presidente Jair Bolsonaro à Polícia Federal, dentro do inquérito que apura se ele teve alguma responsabilidade nos ataques realizados em 8 de janeiro às sedes dos Três Poderes da República.
Como investigado, Bolsonaro tem direito a não comparecer ou a permanecer calado durante o interrogatório, mas a expectativa é que ele se apresente à PF e dê sua versão sobre as acusações.
A BBC News Brasil procurou a assessoria do ex-presidente para comentar o assunto, mas não obteve retorno.
Publicamente, Bolsonaro tem negado envolvimento no 8 de janeiro. Enquanto ainda estava nos EUA, disse, sem apresentar provas, que “pessoas de esquerda” programaram as invasões.
“As manifestações da direita ao longo de 4 anos foram pacíficas e não temos nada a temer. Jamais o nosso pessoal faria o que foi feito agora no dia 8 [de Janeiro]. Cada vez mais nós temos certeza que foram pessoas da esquerda que programaram aquilo tudo”, disse o ex-presidente à emissora NBC.
A investigação foi solicitada ao Supremo Tribunal Federal (STF) pela Procuradoria-Geral da República (PGR) após 79 procuradores do Ministério Público Federal assinarem uma representação acusando o ex-presidente de ter cometido o crime de incitação, previsto no artigo 286 do Código Penal, com pena de até seis meses de prisão e multa.
Entenda a seguir os argumentos do MPF que ligam Bolsonaro aos atos de 8 de janeiro e como o ex-presidente tem respondido às acusações. Saiba também por que criminalistas avaliam que pode ser complexo estabelecer uma relação de causalidade entre a atuação de Bolsonaro e os ataques aos Três Poderes.
‘Crimes por meio de palavras’
A representação contra Bolsonaro foi feita no dia 12 de janeiro, após o ex-presidente compartilhar em sua conta no Facebook um vídeo que dizia, sem provas, que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não tinha sido eleito, mas sim “escolhido por ministros do STF e TSE (Tribunal Superior Eleitoral)”.
Esse vídeo foi compartilhado por Bolsonaro no dia 10 de janeiro, dois dias após bolsonaristas radicais invadirem e depredarem o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF).
Na visão dos procuradores, essa mensagem divulgada pelo ex-presidente teria configurado “uma forma grave de incitação, dirigida a todos seus apoiadores, a crimes de dano, de tentativa de homicídio, e de tentativa violenta de abolição do Estado de Direito, análogos aos praticados por centenas de pessoas ao longo dos últimos meses”.
Para embasar essa acusação, os autores da representação lembram que o vídeo compartilhado se somou a uma longa trajetória de falas e omissões de Bolsonaro que teriam, ao longo dos últimos anos, instigado atos criminosos, culminando nos ataques de 8 de janeiro.
“Crimes de incitação comumente são praticados por meio de palavras e outros gestos ilucionários. Não envolvem apertar um gatilho, executar diretamente agressões físicas, praticar de mão própria violações à integridade pessoal ou patrimonial de outrem, mas influenciar, no plano simbólico, publicamente, que terceiros o façam”, diz a representação.
Os autores da representação notam que Bolsonaro, mesmo tendo sido eleito por meio das urnas eletrônicas para mandatos de deputado federal e, em 2018, vencido a eleição para Presidente da República, passou a questionar com insistência a integridade do sistema eleitoral brasileiro.
“Ao longo de seu mandato presidencial, foram numerosas as ocasiões em que afirmou que o resultado das urnas que o elegeram não foi fidedigno à votação que teria recebido, e que, se não fossem por elas, ele teria sido eleito não no segundo, mas no primeiro turno em 2018”, destacam os procuradores, lembrando que essas acusações eram repetidas “em lives realizadas semanalmente para seus eleitores e seguidores em redes sociais, em discursos públicos e mesmo em conversas nas ruas com apoiadores”.
A representação do MPF ressaltou ainda que as acusações de fraudes no sistema eleitoral foram reforçadas por Bolsonaro poucos meses antes da eleição de 2022, quando ele reuniu em julho embaixadores “sem apresentar qualquer elemento idôneo que amparasse suas alegações”.
Ataques ao Poder Judiciário
Além de acusar Bolsonaro de falsas alegações contra a integridade do sistema eletrônico de votação, os procuradores dizem que o presidente fez também acusações infundadas contra “instituições judiciárias brasileiras, responsáveis pela organização dos pleitos, alegando que elas tramavam contra sua reeleição”.
Eles lembram, por exemplo, repetidas falas de Bolsonaro de que haveria uma “sala secreta” no TSE onde ocorreria a apuração do resultado. Para rebater essa acusação, a Corte chegou a convidar no ano passado os partidos políticos a conhecerem a área de totalização dos votos. Na ocasião, Valdemar Costa Neto, o presidente do PL, partido do presidente Jair Bolsonaro, reconheceu que a sala não era secreta, ao ser questionado por jornalistas.
A BBC News Brasil tentou ouvir o ex-presidente sobre as acusações por meio do ex-chefe da Secretaria Especial de Comunicação Social do seu governo Fabio Wajngarten, mas ele respondeu que Bolsonaro não se manifestaria.
Bolsonaro tem rebatido as acusações de que teria cometido crimes ao questionar a integridade do sistema eleitoral brasileiro. Em um processo que enfrenta na Justiça Eleitoral relacionado à reunião que teve com embaixadores, sua defesa diz que o ex-presidente apenas teria levantado preocupações legítimas sobre a segurança da urna eletrônica e que “não houve qualquer hostilidade antidemocrática ao sistema eleitoral no evento”.
“Está, portanto, dentro dos limites da liberdade de convicção pessoal de determinado player político formular uma posição sobre o sistema de coleta de votos adotado no Brasil”, disse ainda a defesa de Bolsonaro nas alegações finais desse processo, que pode deixar o ex-presidente inelegível por oito anos, caso seja condenado.
O não reconhecimento da derrota
Para os procuradores, outro comportamento do ex-presidente que teria contribuído para os atos antidemocráticos foi a decisão de não reconhecer a eleição de seu adversário, como é praxe em sistemas democráticos.
“Diante de sua derrota, e corroborando sua postura de sistematicamente lançar suspeita sobre as instituições e os processos democráticos do país, ele se tornou o primeiro presidente, na história da Nova República, a não reconhecer expressamente o resultado do pleito, nem mesmo quando seus apoiadores ocupavam, em revolta, rodovias Brasil afora, em prejuízo à circulação de pessoas bens e serviços”, diz a representação.
Os autores ressaltam ainda que Bolsonaro tampouco participou da cerimônia de posse de Lula, deixando de lhe entregar a faixa presidencial. Ele deixou o país dois dias antes do término do seu mandato, rumo aos Estados Unidos, onde viveu por cerca de três meses na Flórida, até retornar a Brasília.
Na visão dos integrantes do MPF, as falas de Bolsonaro tiveram “uma posição de destaque na câmara de eco desinformativo do país” e “compuseram o rol de motivações de muitos dos quais, ao longo dos últimos meses, alimentados por essas campanhas, praticaram atos violentos e participaram de graves atos antidemocráticos no país”.
A representação lista como exemplo desses atos violentos e antidemocráticos os bloqueios de rodovias logo após a vitória de Lula; os atos de vandalismo em Brasília e tentativa de invasão da sede da Polícia Federal no dia dez de dezembro, após a cerimônia de diplomação do petista; e uma tentativa de atentado com caminhão-bomba no aeroporto da capital, no final de 2022.
“O ápice desses crescentes movimentos veio, finalmente, no último dia 08/01/2023, quando, como é amplamente sabido, milhares de pessoas se deslocaram, vindas de várias cidades do país, a Brasília/DF, e lá chegando invadiram o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal, quebrando janelas de suas sedes, vandalizando gabinetes, destruindo objetos de valor histórico, em um quadro de violência política absolutamente sem precedentes na história da Nova República brasileira”, reforça a representação.
Na avaliação dos procuradores, é esse contexto de repetida contestação do resultado eleitoral, com crescentes atos violentos, que permitiria enquadrar como crime de incitação o vídeo compartilhado por Bolsonaro dois dias após os atos de 8 de janeiro.
“Embora isoladamente possa parecer inofensiva aos olhos desatentos, considerado todo o contexto acima exposto, a princípio, parece configurar uma forma grave de incitação, dirigida a todos seus apoiadores, a crimes de dano, de tentativa de homicídio, e de tentativa violenta de abolição do Estado de Direito, análogos aos praticados por centenas de pessoas ao longo dos últimos meses”, argumenta a representação.
Segundo apuração do jornal O Globo, Bolsonaro negará no depoimento qualquer articulação política após a derrota nas urnas para Lula e usará sua viagem aos Estados Unidos como argumento para mostrar seu distanciamento do que ocorreu no dia 8 de janeiro.
Dificuldade de estabelecer nexo causal
No entanto, criminalistas ouvidos pela BBC News Brasil, destacam que não será fácil estabelecer uma relação de causalidade entre as falas e omissões de Bolsonaro e os atos de 8 de janeiro.
Juliana Bertholdi, professora de Processo Penal da PUC-PR, explica que, para o ex-presidente ser enquadrado como mentor intelectual dos crimes de golpe de Estado e atentado violento ao Estado de Direito, é preciso ficar claro que ele tinha a intenção de induzir seus eleitores a invadir os Três Poderes.
“A gente tem que demonstrar que a pessoa tinha a intenção de, com aquele comportamento, atingir aquele resultado danoso. Então, a gente entra num espaço de subjetividade e complexidade bastante significativo”, disse.
Para a criminalista, Bolsonaro foi cauteloso em suas manifestações, conseguindo se comunicar com seus apoiadores mais radicais sem incitá-los de maneira direta a cometer crimes.
“A forma como ele construiu o discurso foi seguramente muito pensada, porque em nenhum momento ele afirma o que ele parece querer afirmar. Ele sempre se utiliza de subterfúgios na hora de fazer as afirmações”, diz.
O professor de Processo Penal da USP Gustavo Badaró também destaca que será um desafio estabelecer um nexo causal entre as falas de Bolsonaro e as invasões. Por isso, segundo ele, a PF deverá construir uma narrativa que agregue diferentes condutas e falas como evidência do possível envolvimento do ex-presidente com os atos de 8/1.
“A gente não tem um ato decisivo que a gente possa falar que claramente foi crime. A questão é verificar se, pelo conjunto da obra, os pequenos atos, sinalizações e omissões têm, do ponto de vista jurídico, relevância causal para o 8 de janeiro”.
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