- Author, Rebecca Wragg Sykes*
- Role, BBC Future
Em algum momento, entre 50 mil e 135 mil anos atrás, mãos sujas de sangue carregaram mais de 35 cabeças de animais enormes com chifres para o interior de uma caverna pequena, escura e sinuosa.
Pequenas fogueiras foram acesas sobre o chão de pedras. Na câmara iluminada pelas chamas, ecoava o ruído monótono dos homens batendo, quebrando e esmagando os crânios de bisões, gados selvagens, cervos-vermelhos e rinocerontes.
Esta cena sangrenta não é a abertura de um romance de horror da era glacial. É o cenário de um fascinante mistério dos neandertais.
No início de 2023, pesquisadores anunciaram que um sítio arqueológico espanhol — cujo nome é um trocadilho, Cueva Des-Cubierta — abrigava uma quantidade incomum de crânios de animais de grande porte.
Os crânios estavam todos fragmentados, mas seus chifres ou galhadas estavam relativamente intactos. Alguns foram encontrados perto de restos de fogueiras.
As cavernas do Vale de Lozoya, a cerca de uma hora de carro ao norte da capital espanhola, Madri, eram conhecidas desde o século 19, mas a Des-Cubierta só foi encontrada em 2009, durante uma pesquisa em outras cavernas na encosta da montanha.
À medida que os pesquisadores escavavam lentamente as camadas no seu interior, começou a surgir uma imagem impressionante do local.
Eles afirmam que os crânios têm um significado que vai além dos simples detritos da caça e coleta. Na verdade, eles acreditam que os crânios eram simbólicos — talvez um santuário que abrigava os troféus da caçada.
Se os pesquisadores estiverem certos, isso levanta uma perspectiva é tentadora. Os neandertais teriam sido capazes de formar conceitos simbólicos complexos — comportamentos característicos da nossa espécie.
Será que podemos realmente sugerir que os neandertais, espécie de hominídeo que se extinguiu há cerca de 40 mil anos, desenvolveram rituais baseados nos crânios das suas presas?
Outras descobertas demonstram diversos aspectos da sua cultura e algumas até sugerem que os neandertais produziam formas do que podemos chamar de arte. Mas as respostas ainda estão longe de serem claras.
Entrar na mente dos povos antigos é um dos grandes desafios da arqueologia, que dirá na mente de uma espécie diferente da nossa.
Desde que foram identificados os primeiros restos de neandertais no século 19, sua forma de vida e pensamento é uma questão fundamental que intriga os pesquisadores. E, apesar dos imensos avanços da arqueologia alcançados nos últimos 160 anos, a resposta para estas questões ainda é difícil e, às vezes, problemática — em parte, devido aos nossos próprios preconceitos.
Os neandertais sempre representaram um contraste filosófico para o Homo sapiens — ou seja, para nós mesmos.
Inicialmente, eles eram a única outra espécie de hominídeo conhecida na Terra. E, mesmo com a descoberta de outras espécies antigas, eles mantiveram um lugar especial como “os outros”, uma espécie de espelho com o qual nos comparávamos. E essas comparações, até pouco tempo atrás, eram todas a nosso favor.
O fato de os neandertais terem desaparecido há cerca de 40 mil anos, depois de terem sobrevivido no oeste da Eurásia por centenas de milhares de anos, era considerado uma evidência de que houve algo que fez com que eles “merecessem” sua extinção (no sentido científico e, talvez, também moral).
Conscientemente ou não, os pesquisadores procuravam provas de que os neandertais eram menos bem-sucedidos — uma versão beta da humanidade, destinada a ser substituída pela nossa espécie superior. E um dos elementos mais óbvios em que eles se concentravam refletia exatamente o que acreditávamos que distinguia nossa espécie de todas as outras formas de vida no planeta Terra: a cognição.
Mas o que é a cognição? Em poucas palavras, é a forma como pensamos — nossos processos e habilidades mentais, desde a solução de problemas até a nossa imaginação. E ela também inclui a atribuição de significados simbólicos a ações, objetos ou lugares.
Se a equipe de pesquisa que está escavando em Des-Cubierta estiver certa, os neandertais aparentemente eram capazes de atingir pelo menos algumas dessas formas superiores de cognição.
É claro que os neandertais não estão aqui para que a gente possa perguntar o que eles pensavam — e tampouco podemos viajar no tempo para observá-los. O que temos é a arqueologia e a ciência do século 21 para nos ajudar a reconstruir, ao máximo possível, a vida dos nossos parentes extintos.
O cérebro e seu uso
Os neandertais estão entre os nossos parentes mais próximos conhecidos. Nosso último ancestral comum viveu em algum momento de 550 mil a 800 mil anos atrás, o que é um período realmente muito recente em termos de evolução.
Somente por isso, já deveríamos esperar que os neandertais fossem muito parecidos conosco em diversos aspectos, incluindo o poder cerebral. Os crânios dos neandertais, por exemplo, indicam que seu cérebro tinha pelo menos o mesmo volume do nosso.
Mas a mente envolve muito mais do que apenas o tamanho do cérebro. Os cérebros dos neandertais podiam ser grandes, mas, aparentemente, eram um pouco diferentes.
Seu formato geral — que deduzimos a partir do formato interno do seu crânio — era diferente. Isso pode indicar possíveis funções cerebrais distintas, devido à forma em que as diferentes regiões do cérebro parecem estar relacionadas com funções específicas, como o pensamento analítico e a memória.
Também podemos encontrar indicações genéticas. Pesquisas recentes descobriram, por exemplo, que alterações minúsculas em dois genes ligados ao desenvolvimento neurológico tiveram impactos importantes no cérebro humano.
Uma delas, denominada NOVA1, afeta o crescimento e a atividade elétrica dos neurônios. Já outra, TKTL1, parece aumentar significativamente a quantidade de neurônios e o número de dobras do cérebro. Os neandertais tinham versões levemente diferentes desses genes.
E, quando os pesquisadores inseriram um gene NOVA1 de neandertal em células-tronco humanas para fazer crescer os chamados “minicérebros” (na verdade, conjuntos de células diferenciadas), eles descobriram que o gene alterou o crescimento dos neurônios e as conexões entre eles, em comparação com a nossa espécie.
Da mesma forma, a versão neandertal do TKTL1 — diferente da nossa em apenas um aminoácido — pode ter levado a espécie a desenvolver um neocórtex menor que o dos seres humanos modernos. E o neocórtex é a parte do cérebro relacionada às funções cognitivas superiores, como o raciocínio e a linguagem.
Mas alguns pesquisadores sugerem que milhões de seres humanos modernos também podem carregar a “versão neandertal” deste gene, o que levanta novas dúvidas sobre a diferença entre os nossos cérebros e os dos nossos parentes.
Os ossos e o DNA são a única forma de explorar como realmente teria sido a mente dos neandertais.
Pesquisas recentes sobre a sua audição, por exemplo, sustentam a ideia de que os neandertais se comunicavam pela voz na sua vida diária. E a arqueologia, que é o instrumento mais próximo de uma máquina do tempo que temos disponível, pode nos mostrar o que eles realmente faziam e sobre o que eles provavelmente falavam.
Os avanços da arqueologia nas últimas três décadas produziram uma espécie de renascimento da nossa compreensão, minando inevitavelmente os preconceitos de que os neandertais, de alguma forma, eram inferiores a nós.
Embora haja uma perspectiva crescente das capacidades cognitivas dos neandertais, alguns pontos pareçam ser exclusivos da nossa espécie, como a elaboração de projetos de manufatura mais extensos e complicados.
Acredita-se, por exemplo, que a produção de arcos e flechas tenha sido inventada pelo Homo sapiens na África, pelo menos 80 mil anos atrás. E que este processo tenha sido introduzido na Eurásia por algumas populações há 55 mil anos.
Mas, do uso da pedra e da tecnologia da cola até as técnicas de caça, aos poucos descobrimos cada vez mais sobre os neandertais — e as diferenças entre as duas espécies parecem cada vez menores. Atualmente, são relativamente poucas as áreas em que ainda observamos diferenças claras.
Os entalhes e o uso das cores
Uma faceta de comportamento na qual os pesquisadores vêm procurando diferenças há muito tempo é a capacidade de pensamento abstrato, estético e simbólico dos neandertais.
Sabemos desde meados do século 19 que os antigos humanos que viveram pouco depois da extinção dos neandertais produziam pinturas espetaculares de animais dentro de cavernas, pequenas estátuas detalhadamente esculpidas e também enterravam seus mortos com objetos solenes, como contas de conchas.
Apesar de mais de um século de descobertas arqueológicas, ainda não encontramos nada verdadeiramente comparável entre os neandertais. Mas o que foi descoberto indica que suas vidas iam além de uma simples perspectiva baseada na sobrevivência.
Um exemplo são os entalhes ou incisões. Estudos microscópicos já demonstraram que muitos objetos encontrados, principalmente de ossos, foram raspados ou arranhados naturalmente. Mas outros foram elaborados de forma claramente intencional.
Um desses objetos foi encontrado em Les Pradelles, na França: um pequeno pedaço de osso da coxa de uma hiena, com uma série de nove incisões paralelas com cerca de cinco milímetros de comprimento cada uma, datando de cerca de 70 mil anos atrás.
Estudos microscópicos cuidadosos concluíram que uma única ferramenta de pedra foi usada — e que o fabricante trabalhou da esquerda para a direita, aplicando cada vez mais pressão até a linha final, provavelmente porque mudou o ângulo ou a forma de segurar a ferramenta.
Na base de duas das linhas, foram gravados outros conjuntos de marcas minúsculas, provavelmente com a mesma ferramenta.
Não se sabe ao certo o que significam as marcas de Les Pradelles — foi sugerido que elas podem representar uma anotação ou algum tipo de registro.
Mas existem outras interpretações, e pode haver também uma motivação estética. As marcas secundárias são tão pequenas que senti-las pode ter sido tão importante quanto vê-las.
O entalhe gráfico mais complexo já encontrado no contexto neandertal vem de um sítio arqueológico alemão chamado Einhornhöhle (que significa “caverna do unicórnio”).
Neste caso, o osso data de cerca de 51 mil anos atrás e vem do dedo do pé de um Megaloceros (cervo gigante). Algumas das suas extremidades foram alteradas, e o osso parece ter sido raspado ou talhado.
Um dos lados curvos do osso inclui 10 entalhes lineares individuais. Quatro deles correm paralelamente ao longo da base em ângulo diagonal, mas os outros seis são mais complexos. Dois conjuntos de três entalhes se interseccionam em ângulos de 92 a 100 graus. O efeito é um padrão Chevron (de setas) repetitivo.
E embora, mais uma vez, seja impossível determinar algum significado preciso, parece ser mais do que um simples marcador ou registro.
Objetos entalhados — ou casos como o da caverna de Gorham, em Gibraltar, onde foi gravada uma “hashtag” em uma parte elevada do próprio chão de pedra — são raros entre os artefatos neandertais. Há menos de 10 exemplos claros desses objetos.
Mas existem mais evidências de que os neandertais se interessavam pelas cores. Pigmentos minerais, em cores que variam do preto até o vermelho, laranja, amarelo e branco, foram encontrados em mais de 70 sítios arqueológicos.
Em alguns casos, há quantidades significativas, como os mais de 450 fragmentos de pigmento encontrados nas camadas de Peech de l’Azé, na Dordonha, sul da França. E também há evidências claras de que esses fragmentos eram processados e utilizados.
Alguns deles possuem marcas de raspagem e polimento, enquanto outros apresentam vestígios que mostram que foram esfregados com objetos mais macios.
Os neandertais parecem, às vezes, ter até selecionado substâncias minerais específicas para determinar a intensidade dos pigmentos, além de combiná-los e misturá-los. Eles usavam vermelho e amarelo para produzir laranja, o que é um feito notável.
Um tipo de pigmento preto — o dióxido de manganês — pode ter servido também para acender o fogo. No mais, só o que podemos fazer é tentar adivinhar para o que eram usadas essas cores.
E foram descobertos alguns objetos “pintados” extraordinários. Eles incluem uma mistura de laranja combinado com pirita cintilante (“ouro dos tolos”) em uma concha, e um pigmento vermelho sobre a superfície externa de uma pequena concha fossilizada. Outra mistura de pigmentos também foi encontrada sobre a garra de uma águia em Krapina, na Croácia.
Há ainda evidências impressionantes da caverna de Combe Grenal, perto de Domme, na Dordonha, de que os neandertais que viveram ali aparentemente preferiam cores diferentes conforme o passar do tempo.
Os pigmentos encontrados no local (uma caverna que desabou) eram diferentes a cada camada. Embora não exista uma explicação óbvia para mudanças da disponibilidade de fontes minerais no local, há uma correlação aproximada com mudanças nos tipos de ferramentas de pedra, que pode indicar diferentes tradições culturais de uso dos pigmentos.
Nos últimos anos, surgiram novas indicações de que os neandertais aplicavam pigmentos vermelhos às paredes das cavernas.
Estudos em três cavernas espanholas, conhecidas há muito tempo por conterem pinturas pré-históricas, analisaram algumas das crostas que cobrem manchas vermelhas, uma linha vermelha e a impressão de uma mão. Os resultados variaram de 55 mil a 64 mil anos, muito além de qualquer era aceita para a presença de Homo sapiens na Península Ibérica.
Mais recentemente, fragmentos de pigmento vermelho foram encontrados em uma dessas cavernas na Espanha (Ardales, em Málaga), em camadas contendo artefatos de pedra típicos dos neandertais, que podem ser datados da mesma época em que o pigmento vermelho foi usado para colorir formações de estalagmites.
Mas os pesquisadores ainda não encontraram a similaridade química entre o pigmento e as pinturas.
Obras de arte e de engenharia
É muito difícil classificar algo feito pelos neandertais como “arte”, já que esta definição é muito sujeita à interpretação.
Podemos considerar, por exemplo, que esses objetos são criações finalizadas e contêm informações simbólicas. Mas pode ser útil verificar o que eles realmente estavam fazendo com os materiais e falar em “estética”.
O que os entalhes e os pigmentos dos neandertais têm em comum é a intenção de alterar a percepção das superfícies, seja visualmente ou de forma táctil.
As garras de Krapina, por exemplo, incluem minúsculas áreas polidas, como se tivessem sido esfregadas contra outros materiais rígidos, talvez umas contra as outras.
Uma interpretação é que elas podem ter sido usadas como colares, mas também é possível que as garras lustrosas e talvez pintadas tenham formado um chocalho, compondo uma experiência estética visual e sonora.
Mas essas conclusões exigem cuidado. Talvez nunca venhamos a saber se esses instrumentos foram feitos e guardados por indivíduos específicos ou se eram exibidos e utilizados por várias pessoas.
De qualquer forma, os neandertais parecem ter sido capazes de criar objetos materiais que, sem sombra de dúvida, envolviam a interação comunitária, como comprovou um anúncio espetacular feito em 2018, sobre uma caverna perto de Bruniquel, no sul da França.
As descobertas naquele local remontam a 1987, quando um adolescente fascinado por cavernas encontrou uma minúscula cavidade de onde vinha uma brisa, como se a montanha estivesse respirando.
Depois de cavar e rastejar pacientemente por três anos, ele descobriu um sistema de grandes câmaras, algumas com belas piscinas rasas. Uma delas, com cerca de 300 metros, continha uma construção realmente notável.
O que parecia inicialmente ser algum tipo de represa feita de estalagmites caídas se revelou uma estrutura composta de pedaços arrancados, obviamente feita por seres humanos, que não deixaram vestígios, a não ser alguns pedaços de ossos queimados.
Em meados dos anos 1990, a datação por radiocarbono indicou uma idade bastante antiga, além do limite de 45 mil anos imposto pela técnica da época.
Somente em 2016, com a datação de depósitos de calcita sobre as estalagmites usando um método diferente, que mede as proporções de urânio e tório na rocha, foi possível chegar à verdadeira idade dos anéis: 174 mil a 176 mil anos.
A única conclusão possível é que seus criadores tenham sido neandertais.
Bruniquel, de fato, é um local impressionante. Mais de 400 seções de estalagmites que pesam, ao todo, cerca de duas toneladas foram selecionadas por tamanho e dispostas em dois anéis. O maior deles tem mais de seis metros. Duas pilhas de estalagmites ficam na parte interna e outras duas, na parte externa.
Há muitas evidências de queima, possivelmente para ajudar a quebrar as colunas. E é um trabalho cuidadoso: em alguns pontos, os anéis são compostos de quatro camadas, às vezes com peças encostadas nelas. E, em algumas regiões, há diversas peças dentro das paredes equilibradas umas sobre as outras, como se fossem colunas e barras minúsculas.
Bruniquel certamente contém algo que foi construído pelos neandertais, mas o que era aquilo? Parece improvável que tenha sido algum tipo de moradia ou espaço frequentado regularmente.
O sistema de cavernas, até o momento, não parece ter uma entrada perto da câmara, que fica em um local profundo na montanha. É muito mais remoto do que outros locais de moradia dos neandertais, que costumam ficar na entrada ou a poucas dezenas de metros para dentro das cavernas.
A localização remota da câmara também significa que teria sido necessário haver iluminação permanente, o que significaria, além de um gasto extraordinário de tempo e energia em uma época fria e sem abundância de árvores, um ambiente permanentemente cheio de fumaça.
E o mais surpreendente: até agora, não foram encontradas ferramentas de pedra.
Pegadas de ursos que usaram as cavernas muito tempo depois provavelmente apagaram as pegadas dos neandertais. Mas, se fosse um lugar ocupado, deveria haver ainda algum fragmento das suas vidas diárias.
E, exceto pelos 18 pontos de fogueira e dos fragmentos de ossos queimados, não foi encontrado até hoje nenhum artefato, tampouco outros vestígios dos seus frequentadores.
O local ainda está sendo estudado — e é possível que haja artefatos escondidos embaixo do piso de sedimentos que se formou à medida que a água gotejava lentamente para o interior da caverna. Na verdade, sinais magnéticos indicam que há braseiros ocultos embaixo do piso.
Mas, até o momento, é difícil ver que propósito prático os anéis de Bruniquel poderiam ter. Talvez esta construção trabalhosa tivesse outro tipo de significado para os neandertais que a conceberam.
Rituais fúnebres ou preparo de alimento?
Vamos voltar ao mistério dos crânios em Cueva Des-Cubierta, na Espanha — outra demonstração da complexidade da interpretação dos vestígios incomuns deixados pelos neandertais.
A caverna tem 80 metros de comprimento por 1 a 4 metros de largura — e se formou há pelo menos meio milhão de anos. Mas os depósitos arqueológicos datam de cerca de 50 mil a 135 mil anos atrás.
Após anos de trabalho árduo, os resultados iniciais começaram a surgir em 2012, incluindo a descoberta de fragmentos de uma criança neandertal, com de 3 a 5 anos de idade. Esta, por si só, já é uma descoberta significativa, pois cada novo fragmento de esqueleto que acrescentamos ao registro desta espécie é precioso.
À medida que a escavação prosseguia, com a descoberta de crânios de animais e restos de fogueiras, surgiu a noção de que Des-Cubierta pode ter sido algum tipo de local usado para rituais fúnebres.
A equipe de escavação sugeriu que as descobertas podem representar oferendas fúnebres ou um santuário de caça. Mas, para outros pesquisadores, Des-Cubierta não apresenta indicadores claros além do comportamento “cotidiano”.
Primeiramente, análises posteriores concluíram que os restos dos hominídeos, basicamente da mandíbula, eram originalmente da camada sobreposta à dos crânios dos animais. Em segundo lugar, não existe um padrão espacial óbvio para os crânios, exceto por alguns que estão perto de restos de fogueiras.
Em terceiro lugar, a camada onde foram encontrados os crânios e as fogueiras levou um tempo considerável para se formar. Ela tem cerca de dois metros de espessura, o que exigiria o uso ritualizado do espaço por um período muito longo.
Por fim, existe uma explicação mais “corriqueira”: as marcas de cortes e esmagamento indicam que os cérebros, olhos e línguas foram retirados para servir de alimento.
Aparentemente, os animais caçados eram esquartejados inicialmente em outro local, talvez na parte externa da caverna e perto da entrada, enquanto os crânios e outros ossos eram levados para dentro, para serem processados nas fogueiras.
Depois de retirar os pedaços de carne do interior dos crânios, não havia razão para esmagá-los ainda mais. Talvez a natureza compacta da camada indique que eles foram preservados de forma mais completa que o habitual.
Mas por que os neandertais se dariam ao trabalho de carregar aqueles pesados crânios para dentro da caverna?
Sabemos por meio de descobertas em outros sítios arqueológicos bem preservados que os neandertais separavam diferentes etapas das suas tarefas entre diversos lugares, pela área externa e dentro das cavernas.
Descobertas nos sítios arqueológicos de Abric Romaní, na Espanha, e Grotta Fumane, na Itália, mostram que, ao esquartejar aves e outros animais, diferentes partes do corpo — como asas ou crânios — às vezes eram processadas em áreas separadas. Algo muito similar parece explicar o padrão encontrado em Des-Cubierta, respaldando a dedução cognitiva de que os neandertais organizavam cuidadosamente seu tempo e suas atividades.
Por isso, talvez a explicação para Des-Cubierta não envolva o uso de crânios como troféus. Mas isso não significa que a caça e os animais não tivessem importância social para os neandertais.
Uma possibilidade fascinante, cada vez mais explorada pelos pesquisadores, é que os neandertais talvez considerassem as criaturas à sua volta em termos de relacionamento — e não como meros recursos.
Podemos observar algo similar na tendência demonstrada por alguns chimpanzés, de manter pequenos animais como se fossem de estimação, em vez de caçá-los, embora essas criaturas normalmente não sobrevivam por muito tempo.
Por isso, pode ter feito todo sentido para os neandertais — nossos parentes evolutivos mais próximos, muito curiosos e inteligentes em diversos níveis — considerar suas presas e outros predadores como criaturas semelhantes, que faziam parte do seu universo social.
Talvez os crânios de Des-Cubierta não fossem troféus. Mas a sua presença no interior da caverna, ainda relativamente inteiros, poderia significar, para os neandertais, a representação daqueles animais incríveis e poderosos que dividiam o mundo com eles.
* Rebecca Wragg Sykes é arqueóloga paleolítica e autora do livro “Kindred: Neanderthal Life, Love, Death and Art” (“Parentesco: a vida, o amor, a morte e a arte dos neandertais”, em tradução livre).
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