- Mariana Schreiber – @marischreiber
- Da BBC News Brasil em Brasília
Em meio à permanente tensão entre o Palácio do Planalto e o Poder Judiciário, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes voltou a adotar medidas duras contra apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL), ao autorizar uma ação da Polícia Federal contra empresários que teriam manifestado apoio a um eventual golpe de Estado caso o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva vença a eleição presidencial de outubro.
A medida gerou revolta no meio bolsonarista, com acusações de autoritarismo contra Moraes. Houve também questionamentos de juristas que não apoiam o presidente mas viram possíveis excessos e ilegalidades na decisão que autorizou a apreensão de celulares e o bloqueio de contas bancárias e de perfis dos empresários nas redes sociais na terça-feira (23/08).
Juristas ouvidos pela BBC News Brasil se dividiram sobre possíveis ilegalidades na ação autorizada pelo ministro. Eles ressaltaram, porém, que isso só será esclarecido quando a decisão se tornar pública. Como ela continua em sigilo, não foi divulgada a fundamentação apresentada por Moraes para autorizar a ação da PF.
Por enquanto, tudo que se sabe é que os oito empresários alvos da ação policial — Luciano Hang, Afrânio Barreira Filho, José Isaac Peres, Ivan Wrobel, André Tissot, Marco Aurélio Raimundo, Meyer Nigri e José Koury — teriam trocado mensagens em um grupo de WhatsApp manifestando apoio a um possível golpe de Estado, conversas que foram reveladas em reportagem do portal Metrópoles.
Para o professor de direito da USP, Rafael Mafei, se não existirem outros elementos que fundamentem a decisão além dessa troca de mensagens, houve ilegalidade na autorização de Moraes.
“Para você tomar medidas investigatórias que sejam invasivas, precisa ter indícios bastante fortes da existência de um crime e do envolvimento das pessoas impactadas com esse crime. Aquelas mensagens não revelam nenhum crime”, afirma.
Mafei ressalta que as mensagens divulgadas até o momento não indicam ações concretas de preparação para um golpe. Na sua avaliação, as leis brasileiras não permitem uma devassa na vida das pessoas com base em meras conjecturas de possíveis crimes.
“O fato de a pessoa dizer num grupo de WhatsApp fechado que tem saudade da ditadura ou que achava que, se fosse para dar o golpe, já tinha que ter sido dado logo no começo do governo, isso não configura crime. A não ser que haja prova que essas pessoas estejam efetivamente agindo e se movimentando para viabilizar um golpe de Estado nessas eleições. Aí sim, a gente estaria diante de uma situação grave, que exigiria uma ação antecipada e dura como essa”, reforça.
Já a advogada criminalista Dora Cavalcanti, conselheira do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), considera “impossível qualificar a decisão (contra os oito empresários) como um abuso ou como um excesso por antecipação, sem conhecer os fundamentos e, inclusive, os termos em que a medida pode ter sido requerida (pela Polícia Federal), ou para qual finalidade”.
À BBC News Brasil, ela ponderou que outras medidas menos invasivas poderiam ter sido adotadas primeiro.
“Acho que nesse momento do país, faltando 40 dias para a eleição, em que se tenta construir, vamos dizer, um ambiente de respeito às eleições, à democracia e ao funcionamento das instituições, a gravidade das considerações que chegaram a público é indiscutível”, disse.
“Mas, como advogada de defesa, sabemos sempre que qualquer medida de exceção deve ser tomada e determinada só quando as demais não funcionam. Então, rotineiramente, uma hipótese de depoimentos (dos suspeitos), uma hipótese de (requisição para) apresentação de documentos são justificáveis”, argumenta.
O ex-procurador-geral da República Claudio Fonteles, por sua vez, apoiou a decisão do ministro Alexandre de Moraes. Na sua avaliação, a liberdade de expressão garantida na Constituição não protege declarações que atentem contra o Estado Democrático de Direito, havendo indícios suficientes para iniciar uma investigação contra os empresários.
“Você não precisa esperar que haja um dano, ou seja, um efetivo fato concreto a pôr em perigo o Estado Democrático de Direito para que você investigue. Para que se abra um quadro investigatório, basta ter indícios”, argumenta.
“No momento, você tem pessoas falando claramente que não vão aceitar a vitória do candidato de oposição e claramente dizendo que é o caso de se dar um golpe no país. É um abuso eloquente da liberdade de manifestar o pensamento”, disse ainda.
Outro ponto controvertido da decisão de Moraes foi a falta de participação da Procuradoria-Geral da República. As medidas autorizadas pelo ministro atenderam a um pedido direto da Polícia Federal.
O procurador-geral da República, Augusto Aras, chegou a dizer que não foi comunicado previamente da ação, mas o gabinete de Moraes divulgou documentos mostrando que a PGR foi acionada para acompanhar a atuação da PF na véspera por meio “da entrega da decisão proferida para a Assessoria de Apoio aos Membros da Procuradoria-Geral da República no STF”.
Depois disso, a decisão “foi encaminhada ao Gabinete da Vice-Procuradora-Geral da República às 15h35, onde recebida às 16h40 do mesmo dia”, informou ainda o gabinete.
À BBC News Brasil, o ex-PGR Fonteles disse não ver problema em Moraes ter determinado a ação a partir da solicitação da PF, sem consulta prévia a Aras, porque se trata ainda de fase investigatória, anterior à abertura de um eventual processo, que só poderia ser iniciado após pedido do Ministério Público.
Na sua avaliação, a medida se justifica “dada a inércia flagrante, para lá de notória, do procurador-geral da República” em investigar o presidente e seus apoiadores — algo que Aras nega.
Segundo o portal de notícias Jota, a apreensão dos celulares dos empresários revelou troca de mensagens de empresários com o PGR.
Ao portal, assessores de Aras reconheceram que o PGR troca mensagens com amigos do meio empresarial, mas reiteraram que ele não tomou conhecimento prévio da ação da PF e, portanto, não falou sobre isso com os investigados.
Inquéritos controversos
A decisão de Moraes foi tomada dentro do inquérito das Milícias Digitais, que investiga uma suposta organização criminosa que atuaria digitalmente com a finalidade de atentar com a democracia brasileira.
Essa investigação foi iniciada após o arquivamento do inquérito que apurava a organização de atos antidemocráticos. Além desses, Moraes preside o inquérito das Fake News, que tem também como alvo o presidente e seus aliados, investigando ameaças e informações falsas contra o Poder Judiciário e os ministros do STF.
A abertura dessas investigações foi alvo de controvérsias porque elas atingem, inclusive, pessoas sem foro privilegiado — que, a princípio, devem ser investigadas em outras instâncias judiciais.
No entanto, o plenário do Supremo considerou o inquérito das Fake News legal em um julgamento em 2020. Prevaleceu o entendimento de que ameaças e notícias falsas contra o STF e seus ministros podem ser investigadas pela Corte. Essa decisão acabou servindo de precedente para as outras investigações presididas por Moraes.
Embora essas investigações sejam alvo de controvérsia e gerem reações do Palácio do Planalto e de apoiadores de Bolsonaro, Mafei não considera que Moraes deva “abrandar” as investigações. Para o professor da USP, o problema não está na gravidade das medidas autorizadas pelo ministro, mas se há ou não fundamentos que justifiquem a decisão.
“Alexandre Moraes não deve se orientar para atender à expectativa do Bolsonaro e dos militares de que ele abrande a sua atuação. Seu horizonte de preocupação deve ser tomar todas as medidas que ele tiver de tomar, não importa o quanto elas desagradem o governo e seus apoiadores, desde que ele seja muito claro, muito técnico, muito preciso no embasamento dessas medidas, justamente para que ele não possa ser acusado de estar agindo de maneira parcial e ao arrepio da lei, em prejuízo do Bolsonaro”, destaca o professor da USP.
Possíveis crimes
Se houver elementos que indiquem de fato uma movimentação dos empresários para evitar a posse do presidente eleito em outubro, os juristas ouvidos pela BBC News Brasil dizem que eles poderiam ser enquadrados na nova Lei de Segurança Nacional.
Essa lei prevê como crime de golpe de Estado tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído. A pena de prisão prevista pode chegar a 12 anos, sem contar o agravamento da punição por possíveis atos violentos.
Também é considerado crime na nova lei “impedir ou perturbar a eleição ou a aferição de seu resultado, mediante violação indevida de mecanismos de segurança do sistema eletrônico de votação estabelecido pela Justiça Eleitoral”. A pena é de até seis anos de prisão e multa.
Mesmo que a ação da Polícia Federal identifique provas desses crimes, porém, Mafei considera que ainda assim a decisão de Moraes pode ser considerada ilegal se não trouxer uma fundamentação prévia que justifique as medidas que ele autorizou.
“Porque se não está presente a hipótese legal que autoriza a medida preventiva, essa medida está em desacordo com a lei, independentemente do que seja encontrado (nas buscas da PF)”, ressalta.
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