- Author, Mariana Alvim
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
- Twitter, @marianaalvim
Já se passaram quase cinco anos mas, para a enfermeira aposentada Maria José Costa, todos os dias parecem os mesmos desde que sua filha foi morta, em 24 de julho de 2018, após ser alvejada, na Nicarágua.
Raynéia Gabrielle da Costa, médica residente na capital Manágua, perdeu a vida em meio ao turbulento contexto político do país que dura até hoje — embora não haja qualquer evidência de que ela tenha tomado parte no conflito.
A jovem dirigia na noite de 23 de julho daquele ano quando passou por um grupo de homens armados. Segundo as informações registradas em um processo judicial que correu na Nicarágua, o professor de taekwondo e segurança Pierson Gutiérrez Solís se assustou com a movimentação do carro de Raynéia e, com um tiro de fuzil, a atingiu no abdômen. Ela foi levada para o hospital e morreu no dia seguinte.
Gutiérrez Solís foi condenado na Justiça nicaraguense a 15 anos de prisão em novembro de 2018; menos de um ano depois, ele foi perdoado e libertado por uma lei de anistia relativa às turbulências políticas no país.
Para Maria José, “de jeito nenhum” houve justiça no caso da sua filha. Ela — e mais duas fontes entrevistadas pela BBC News Brasil — contesta a versão que se consolidou na Justiça nicaraguense e acredita que pessoas mais poderosas que Gutiérrez Solís podem estar por trás da morte.
Há também uma petição tramitando na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) que questiona o processo ocorrido na Nicarágua (leia mais abaixo).
“Eu vivo a cada dia como se fosse o dia do acontecimento”, desabafou, chorando, Maria José Costa em entrevista à BBC News Brasil por telefone no dia 15.
“Minha filha não sai da minha mente. A falta dela é imensa, fazia quatro anos que eu não a via pessoalmente”, diz a mãe, que hoje tem 60 anos e mora em Caruaru (PE).
“Eu estou vivendo esperando o dia que Deus vai me chamar. Mas, antes disso, eu quero ver a justiça.”
Maria José deposita sua esperança por justiça no novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), de quem se diz eleitora.
Na semana passada, a aposentada enviou uma carta à presidência pedindo “a ajuda necessária […] para que o caso de minha filha seja resolvido”. Ela deseja um encontro com Lula para conversar sobre o caso e para pedir que as investigações e os processos sejam impulsionados. Até a publicação desta reportagem, a aposentada diz não ter tido retorno.
“Estou tentando enxergar uma luz no fim do túnel com o presidente atual, porque ele é uma pessoa mais para o pessoal carente, mais para o lado humano das pessoas”, diz a mãe, afirmando não ter recebido apoio dos ex-presidentes Jair Bolsonaro (PL) e Michel Temer (MDB) — que ocupava a Presidência quando Raynéia morreu.
Entretanto, a posição do governo Lula sobre a Nicarágua se tornou um ponto sensível: em 3 de março, o Brasil não assinou uma declaração do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas repudiando o regime autoritário de Daniel Ortega.
O PT tem uma histórica simpatia com Ortega, que liderou a revolução sandinista — um movimento popular de esquerda que derrubou a ditadura dos Somoza, família que governou o país por mais de 35 anos.
Lula fez nos últimos anos algumas declarações defendendo que a democracia vigore na Nicarágua, mas nem ele nem seu partido têm adotado uma postura contudente sobre o assunto.
Ortega foi eleito presidente pela primeira vez nos anos 1980. Após ser novamente eleito em 2007, conseguiu alterar as regras do país para permitir a reeleição indefinida e intensificou o autoritarismo.
Testemunhas exiladas
O ano de 2018 foi um ponto crucial na guinada autoritária no país centro-americano: em abril, começaram protestos contra reformas previdenciárias anunciadas pelo governo.
A repressão foi dura, inclusive com a participação de paramilitares pró-governo, segundo vários relatórios da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
Dados divulgados pelas Nações Unidas mostraram que, nos primeiros três meses do conflito, a partir de 18 de abril, 280 pessoas morreram — incluindo 19 policiais.
Duas fontes da Nicarágua entrevistadas pela BBC News Brasil sob condição de anonimato, um jornalista e um advogado, afirmam que Gutiérrez Solís é um paramilitar pró-Ortega.
Em Manágua, na época dos protestos, havia um toque de recolher informal às 19h para civis — Raynéia circulava de carro por volta das 23h quando foi atingida.
Não se sabe ao certo por que ela estava na rua, mas uma possibilidade é que ela estava se deslocando do trabalho em um hospital.
No relatório de fatos anexado ao processo judicial, é dito que Gutiérrez parou para conversar com amigos que eram seguranças no bairro de Lomas de Monserrat quando viu o carro de Raynéia sendo conduzido de maneira “errática”.
“Gutiérrez é um conhecido paramilitar do governo. Ele fazia serviços como paramilitar e participou da repressão de forma direta”, diz um advogado da organização nicaraguense Acción Penal, exilado na Espanha.
“Pode ser que mais pessoas tenham disparado também. Mas também é possível que os superiores dele tenham dado sinal verde para atacar fortemente qualquer pessoa que se aproximasse daquela área.”
Maria José acredita que Gutiérrez foi um bode expiatório para proteger alguém mais poderoso responsável pela morte de Raynéia.
A BBC News Brasil tentou falar com Gutiérrez por meio do WhatsApp dele e de ligações telefônicas, mas não foi atendida. Também buscou-se contato com ele por meio do departamento de esporte da prefeitura de Manágua, ao qual sua escola de taekwondo está vinculada, mas tampouco houve retorno.
Na matéria publicada pelo Nicaragua Investiga, ele afirmou que não tinha “nada a responder” sobre o caso Raynéia.
O advogado da Acción Penal diz que o réu teve um processo atípico: após confessar o crime, teve um julgamento “relâmpago” e um “direito de defesa que ningúem tinha naquele contexto”.
Ele acredita que apesar da promotoria ter mostrado eficiência na acusação teria havido intenção de beneficiar o réu abrandando a carga acusatória.
“A promotoria, embora tenha sido eficiente na sua acusação, buscou beneficiá-lo. Como na acusação de homicídio, e não de assassinato, já que a pena por homicídio é muito menor do que a de assassinato”, explica o advogado, que diz ter deixado a promotoria na Nicarágua após a politização da instituição.
“Nesse caso, também não sabemos quais são as provas que existem. No local, havia câmeras de segurança. Desconhecemos o conteúdo, se é que ainda existe ou apagaram tudo. Ela [Raynéia] estava em um veículo. Não sabemos onde está esse carro e quantas marcas de disparos ele tinha.”
Em novembro de 2018, Gutiérrez foi condenado a 15 anos de prisão por homicídio e porte ilegal de armas e munições.
Em julho de 2019, o réu confesso foi perdoado pelos crimes por conta de uma lei de anistia levada à frente pela bancada da FSLN e aprovada no Congresso.
Os parlamentares afirmaram em conjunto que a lei teve como objetivos “a busca pela estabilidade, a garantia da paz e a melhoria das condições econômicas para alcançar o desenvolvimento integral das famílias nicaraguenses que foram afetadas pelos atos violentos e destrutivos iniciados em 18 de abril de 2018”.
Ainda que alguns opositores ao regime tenham sido libertados — como os líderes estudantis Edwin Carcache, Amaya Eva Coppens, Nahiroby Olivas, Byron Corea e Kevin Espinoza, e os jornalistas Miguel Mora e Lucía Pineda —, a lei não foi exatamente motivo de comemoração para estes grupos.
“Rechaçamos essa lei de autoanistia porque eles [o governo] estão pensando na impunidade das pessoas que torturam e mataram nicaraguenses que exerceram seu direito de protestar”, disse na época Daniel Esquivel, porta-voz da Comissão Pró-Liberação de Presos Políticos, à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC).
Para organizações de direitos humanos, aqueles que protestaram contra o governo e acabaram detidos eram “presos políticos”; para o governo da Nicarágua, eram “acusados por delitos contra a segurança comum e a tranquilidade pública”.
O advogado da Acción Penal denuncia também que sua organização tentou muitas vezes atuar como uma defesa particular representando Maria José na Nicarágua, mas isso “sempre foi negado”.
Outra lacuna no processo vem do fato de que testemunhas e pessoas próximas a Raynéia precisaram se exilar, como o namorado nicaraguense que a acompanhava na noite do crime, segundo conta a mãe.
“Minha filha vinha dirigindo o carro dela e o namorado vinha seguindo atrás. Quando ela foi alvejada, foi ele quem viu o atirador. Foi ele quem socorreu ela. Depois, quando ele saiu do hospital, a polícia já estava na porta esperando ele para levar para a delegacia.”
Ela conta que o namorado da filha teria sido ameaçado na delegacia. ” Lá, disseram: se você falar a verdade, você e sua família serão mortos”, relata Maria José.
“Ele e a família saíram às escondidas para um outro país, que eu não sei nem onde é”, acrescenta.
O Ministério Público Federal (MPF) em Pernambuco pediu em 2021 informações à Justiça nicaraguense sobre o caso Raynéia, mas não teve retorno. Por conta disso, no início deste mês, o órgão formalizou um pedido de cooperação internacional para investigar o caso.
Já na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), está avançando uma petição para que o processo judicial realizado na Nicarágua seja revisto por conta da “investigação insuficiente e da aprovação de uma lei da anistia”.
A petição foi aprovada na etapa de admissibilidade em outubro de 2022 e está na fase de análise do mérito. Ela está em nome de Maria José e dois advogados especializados em direitos humanos.
A Nicarágua rejeitou a petição, afirmando que os acontecimentos que levaram à morte de Raynéia fazem parte de um contexto que foi pacificado com a anistia e que o caso recebeu as devidas investigações e julgamentos.
A BBC News Brasil pediu um posicionamento do governo do país por meio da embaixada da Nicarágua no Brasil, mas não teve retorno.
Condenado por morte hoje tem cargo público, segundo site
No início do mês, o site jornalístico Nicaragua Investiga revelou que Pierson Gutiérrez Solís tem um cargo público no Instituto Regulador del Transporte del Municipio de Managua e, no momento do crime, era funcionário da Empresa Nicaragüense de Petróleo (Petronic).
A reportagem afirma também que o “paramiltar” tem uma agitada vida pública, participando de eventos e entrevistas para meios de comunicação controlados pelo regime sandinista.
“Só começamos a saber quem era Pierson quando ocorreu o caso Raynéia. Então, ficamos sabendo que ele era um militante fiel do regime sandinista e que foi um membro ativo do exército da Nicarágua”, diz um jornalista da Nicaragua Investiga que não quis se identificar.
“Ele participa de eventos públicos, é chamado de sabonim, que é uma posição de honra no taekwondo. A cada evento, ele não oculta sua afinidade com o regime sandinista, aproveita cada ocasião para endeusar o presidente Daniel Ortega.”
‘Lampião na rua, escuridão em casa’
Maria José da Costa diz que “está vivendo por viver” desde que sua filha foi embora — uma dor não só pelo que passou, mas pelo que poderia ter sido.
“Minha filha seria como uma ajuda pra minha velhice”, afirmou à reportagem, depois caindo em prantos.
Perguntada se recebeu auxílio psicológico neste período, Maria José afirma que experimentou algumas sessões de terapia, mas não se adaptou.
Recebendo um salário mínimo e morando de aluguel em Caruaru, a enfermeira aposentada faz “bico” em uma escola para conseguir uma renda extra. Ela acrescenta que nunca pôde ajudar a filha na Nicarágua e que a jovem — que foi para o país estudar medicina na Universidad Americana de Managua — sempre passou dificuldades no país estrangeiro. Raynéia tinha pouco contato com o pai.
“Minha filha passou uma dificuldade muito grande, muito grande mesmo, nos últimos anos vivendo lá sozinha. Ela fazia, nas horas vagas, brigadeiro e alguns docinhos para vender no hospital, para poder ter um trocadinho. Infelizmente, eu não podia fazer nada, não podia ajudar minha filha em nada financeiramente.”
A brasileira fazia residência em cirurgia pediátrica quando foi morta.
“Começaram a ocorrer os protestos e aí o negócio foi piorando. Ela estava com medo, morrendo de medo”, lembra a mãe.
Maria José lamenta também que, com o passar do tempo, a morte de sua filha “ficou esquecida”.
“Foram quase 15 dias de notícias, era notícia de manhã, de tarde e de noite nas televisões, em jornal, nas redes sociais, em rádio. Tudo falava da morte da minha filha. Mas é aquela coisa: morreu, enterrou, acabou. Quando ela desceu ao chão, parece que aquilo ali nunca tinha existido”, diz a mãe, acrescentando que raramente encontra informações sobre a Nicarágua no noticiário.
A aposentada afirma que nunca recebeu ajuda do Itamaraty, apenas o auxílio do governo estadual de Pernambuco em alguns pontos, como o translado do corpo.
Em nota enviada à reportagem, o Itamaraty afirmou que “prestou assistência consular aos familiares da nacional brasileira desde a notícia do assassinato” e que “não há previsão legal e orçamentária para o pagamento do translado com recursos públicos”.
“Tão logo tomou ciência da morte […] a Embaixada em Manágua entrou em contato com a chancelaria nicaraguense para relatar o assassinato e solicitar informações e providências imediatas. Ademais, o Itamaraty coordenou-se com o governo de Pernambuco para possibilitar o traslado do corpo da vítima ao Brasil e intermediou os contatos entre o banco onde a brasileira mantinha conta na Nicarágua e sua família”, completou o Ministério das Relações Exteriores.
Sobre a posição do Brasil em relação ao regime sandinista, o Itamaraty destacou uma fala do representante brasileiro junto à ONU em 7 de março no Conselho de Direitos Humanos.
Na ocasião, o representante Tovar Nunes afirmou que “o governo brasileiro acompanha com extrema atenção os acontecimentos na Nicarágua e está preocupado com os relatos de graves violações de direitos humanos e restrições ao espaço democrático naquele país, em especial as execuções sumárias, as detenções arbitrárias e a tortura contra dissidentes políticos”.
O Brasil ofereceu também abrigar os mais de 300 cidadãos da Nicarágua declarados apátridas pelo regime.
Para o advogado da Acción Penal entrevistado pela BBC News Brasil, essas sinalizações recentes do Brasil o lembraram de um ditado da Nicarágua que diz: candil de la calle, oscuridad de su casa (algo como “lampião na rua, escuridão em casa”).
O ditado fala de pessoas que têm condutas exemplares fora de casa, mas não a aplicam dentro dela.
“Agradecemos o gesto aos cidadãos nicaraguenses, mas isso é como atender aqueles que estão na rua e deixar de lado quem esta em casa”, diz o ex-promotor exilado.
“Há uma vítima nacional do Brasil e a mãe dela, que também é uma vítima, está pedindo justiça. O Estado brasileiro tem obrigações com seus cidadãos. Não é possível que assassinem um cidadão brasileiro em um outro país e só por afinidades ideológicas ou para evitar um conflito, deixem indefesos e desprotegidos esses cidadãos. É inconcebível”, diz o advogado nicaraguense.
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