- André Biernath – @andre_biernath
- Da BBC News Brasil em Londres
O Grupo de Trabalho (GT) sobre Saúde do Governo de Transição diagnosticou a principal ameaça aos primeiros meses de governo: a falta de informações.
“Recebemos dados confusos, que não batem, que estão incompletos… O atual governo nem consegue nos dizer quantas vacinas estão para vencer em breve”, relata o médico Arthur Chioro, coordenador do GT e ex-ministro da Saúde.
“E isso chega até a inviabilizar algumas das ações que precisam ser tomadas”, complementa.
O chamado “apagão” também é mencionado em relatórios do Tribunal de Contas da União (TCU) compartilhados com a equipe de transição, que mencionam até um possível “cenário insustentável” para o Sistema Único de Saúde (SUS).
O Ministério da Saúde nega essas alegações e diz ter todos os dados disponíveis.
Mas o que a possível ausência desses indicadores pode significar na prática para o novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT)? E como isso pode afetar as políticas públicas em saúde no curto e no médio prazo?
A BBC News Brasil ouviu especialistas para entender o cenário da saúde de 2023 e os principais entraves para as políticas públicas de prevenção e o tratamento de doenças entre os brasileiros.
A importância das estatísticas
A médica Fatima Marinho, assessora técnica sênior da Vital Strategies, organização global de saúde pública, explica que os dados são vitais para definir políticas e tomar decisões.
“Se eu sei que a cobertura de uma vacina está menor do que a meta estipulada, posso identificar quem não tomou as doses indicadas e lançar campanhas específicas para esse público”, exemplifica.
“Ou seja: pela informação, consigo transformar a realidade e decidir quem, onde, como e por que vou fazer isso ou aquilo”, complementa.
A especialista, que também trabalhou com essa área de epidemiologia e análise de estatísticas no Ministério da Saúde, acrescenta que manter os dados atualizados e disponíveis é primordial para “a sociedade acompanhar e cobrar os representantes”.
Quando essas informações não estão disponíveis, tudo fica mais complicado: ora, como o governo será capaz de definir a compra de medicamentos para diabetes, por exemplo, se não sabe ao certo o número de portadores da doença no país?
A falta de dados pode levar ao desabastecimento — se os números forem subestimados — ou ao desperdício — caso sejam superestimados.
E, nesse caso, tanto a falta quanto o excesso podem ser prejudiciais. Seguindo o exemplo do diabetes: por um lado, a falta de medicamentos pode significar a piora da saúde (e até a morte) de muitas pessoas; por outro, o exagero na hora de comprar esses fármacos significa que o recurso público foi investido em algo que não era necessário, e pode faltar dinheiro para outras áreas.
O que diz o TCU
Em junho, o TCU divulgou um relatório intitulado Lista de Alto Risco na Administração Pública Federal.
O documento, que traz análises sobre diversas áreas, como energia elétrica, benefícios sociais e segurança hídrica, dedica um capítulo inteiro para o acesso e a sustentabilidade do SUS.
Os responsáveis pelo artigo apontam como principais problemas do setor o cenário fiscal, a inflação, o envelhecimento da população e a judicialização (em que o governo acaba sendo obrigado pela Justiça a custear tratamentos para indivíduos).
O texto também apresenta os “problemas de governança e gestão que impactam custos e eficiência do SUS” entre 2015 e 2021.
Entre os pontos, estão o desperdício de recursos, as deficiências na pactuação federativa (quem é responsável por custear cada coisa entre Governo Federal, Estados e municípios), e ineficiências nos sistemas de auditoria do SUS.
Em novembro, o TCU também compartilhou com o governo de transição outros documentos, em que cita “indícios de insustentabilidade” do sistema público de saúde do país e afirma que o Governo Federal não possui dados específicos sobre a vacinação contra a covid, especialmente a respeito dos grupos prioritários e a divisão por faixa etária.
No tópico sobre tecnologias da informação em saúde, o documento cita o termo “apagão” e lista “deficiências no funcionamento dos comitês de governança” do Ministério da Saúde.
“Constatou-se que os dois comitês internos mais importantes da pasta — o Comitê Interno de Governança (CIG) e o Comitê de Informática e Informações em Saúde (CIINFO) — se encontravam inoperantes durante a maior parte do período de acompanhamento”, escrevem os autores.
“As reuniões destes comitês foram retomadas no final do período acompanhado, já em 2022, após provocação da equipe de fiscalização”, informam.
O relatório admite que aconteceram alguns avanços (como a própria retomada dos tais comitês, ainda considerada “incipiente”), mas indica a necessidade de implementar vários aperfeiçoamentos nessa área de dados em saúde.
O que diz o governo de transição
Chioro, que também é professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), afirma que muitos dados pedidos pelo GT de Saúde ao ministério “estão em sigilo”.
“Eles não sabem dizer quantas vacinas contra a covid foram distribuídas para Estados e municípios, ou qual o prazo de validade das doses que estão em estoque”, critica o coordenador.
O médico revela que, desde as eleições, o GT da Saúde fez 38 audiências com diversos representantes do setor, como a indústria farmacêutica, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), diversas associações de trabalhadores…
“Dessas, em 37 reuniões as pessoas apontaram a falta de informações como um problema”, calcula.
“Descobrimos a duras penas que, no início de dezembro, o Ministério da Saúde não tinha feito a programação de compra das vacinas para a campanha contra a gripe, que começa em março ou abril do ano que vem”, acrescenta.
Procurado pela BBC News Brasil, o Instituto Butantan, responsável pela fabricação das doses contra o vírus influenza usadas na rede pública do país, confirmou a informação.
A médica sanitarista Lucia Souto, presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e integrante do GT, considera a situação “gravíssima”.
“Como não há dados, não temos uma dimensão adequada do problema que enfrentaremos”, diz.
“O que deu para constatar foi uma desmobilização do Programa Nacional de Imunizações (PNI) e de setores que cuidam da saúde da mulher, dos indígenas e da assistência farmacêutica, como o programa Farmácia Popular”, lista.
A especialista, que também integra a Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz), chama a atenção para uma “demanda represada” por diagnósticos e tratamentos para as mais variadas doenças.
O que dizem os pesquisadores
Ao ser questionado sobre o assunto, o médico sanitarista Reinaldo Guimarães, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), cita uma frase dita pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) logo no início do governo, em 2019.
“À época, ele afirmou que era necessário ‘desconstruir muita coisa’ no Brasil”, lembra.
Na visão do especialista, isso de fato aconteceu em relação aos dados públicos em diversas áreas, como a saúde.
“Ao longo de muitos anos, eu fiz uma consulta sistemática ao site do Ministério de Ciência e Tecnologia para colher informações sobre gastos nacionais com pesquisa e desenvolvimento. E esses dados simplesmente deixaram de ser publicados nos últimos três anos. Algumas bases vão só até 2018 ou 2019”, conta.
“Por um lado, temos a falta de competência das pessoas que foram colocadas em cargos importantes. Por outro, há um projeto de poder que se aproveita do sequestro e do apagamento de dados”, opina.
Guimarães dá outro exemplo para entender como a ausência de números é prejudicial.
“O Censo deveria ser feito pelo IBGE em 2020, mas atrasou e só teremos os dados no início de 2023. Ou seja: todas as políticas públicas atuais são baseadas numa estimativa de 2010, sendo que nesse meio tempo tivemos uma queda na taxa de fecundidade e na expectativa de vida, além de uma pandemia que matou quase 700 mil brasileiros”, diz o pesquisador, que também é professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Para Marinho, algumas decisões tomadas pelo governo durante a crise da covid-19 aumentaram a descrença sobre as estatísticas oficiais de saúde.
“Nós tivemos aquelas tentativas de não disponibilizar os dados de casos e mortes por covid, em que foi necessária até a criação de um consórcio de veículos de imprensa para coletar as informações com as Secretarias Estaduais da Saúde”, lembra.
Já durante a vacinação contra o coronavírus, lembra a médica, os sistemas de informática de municípios, Estados e do Ministério da Saúde não “conversavam” e foram detectadas muitas discrepâncias entre as estatísticas locais e as do Governo Federal.
“Isso tudo gerou desconfiança, até porque o Brasil sempre foi um dos países mais avançados do mundo em termos de disponibilizar publicamente os dados de saúde”, conta.
O infectologista Julio Croda, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, concorda que há de fato um apagão no momento.
“Não temos acesso adequado a respeito da cobertura vacinal, ou de quantas pessoas internadas receberam ou não as doses”, afirma.
Mas o especialista, que é professor da FioCruz e também trabalhou no Ministério da Saúde, chama a atenção para algumas dificuldades crônicas de obter informações nessa área.
“Desde a criação do SUS em 1988, nunca tivemos um sistema com capacidade de avaliar o impacto das medidas que são tomadas”, avalia.
“Com isso, sempre foi difícil saber o real impacto dos serviços que o SUS executa. Por exemplo, como um novo tratamento contra o AVC [Acidente Vascular Cerebral] reduziu os casos e as mortes em cada região? Ou qual foi o resultado da implementação de uma UPA [Unidade de Pronto Atendimento] numa cidade?”, questiona.
“Esses processos de avaliação de saúde pública muitas vezes são feitos por instituições como a FioCruz e as universidades públicas, mas precisamos também que isso seja realizado de forma constante pelo próprio Ministério da Saúde”, opina.
O que diz o governo
A BBC News Brasil procurou o Ministério da Saúde para saber qual o posicionamento do Governo Federal a respeito das alegações apresentadas por pesquisadores, entidades e a equipe de transição.
Em nota, a assessoria de comunicação disse que “é falsa a informação de falta de transparência dos dados relacionados à covid-19”.
“O Ministério da Saúde possui todos os registros relacionados aos brasileiros vacinados contra a doença no país, como CPF, tipo de vacina administrada, data de administração, doses de reforço aplicadas, entre outros. Todas essas informações estão disponíveis para acesso da população por meio do aplicativo Conecte SUS.”
A nota também defende que, “desde o início da pandemia, o Governo Federal atuou de forma célere e transparente para agilizar as medidas de prevenção, proteção e cuidado da população brasileira”.
“A pasta apostou na compra diversificada de vacinas, garantindo mais de 700 milhões de doses com um investimento de mais de R$ 37 bilhões. Destas, mais de 550 milhões de doses já foram distribuídas a todos os Estados e Distrito Federal.”
O texto ainda afirma que todos os dados relativos à covid-19 estão disponíveis na plataforma Localiza SUS. “Na ferramenta, também é possível localizar todos os insumos e recursos financeiros disponibilizados aos Estados e municípios durante a pandemia, como leitos, vacina, medicamentos, testes diagnósticos, EPI, entre outros.”
Por fim, o Ministério da Saúde diz que vai disponibilizar doses da vacina bivalente (que protege contra as variantes mais recentes do coronavírus) a partir de dezembro.
Após o recebimento das respostas, a BBC News Brasil enviou novamente ao Ministério da Saúde questionamentos sobre o programa Farmácia Popular, o represamento de exames e cirurgias, o mecanismo de fiscalização do SUS e o relacionamento com o governo de transição, que não foram respondidos no primeiro comunicado.
Até o fechamento desta reportagem, não haviam sido enviados posicionamentos sobre essas outras perguntas.
O que fazer?
Diante dos desafios e da falta de dados, o que o novo governo está planejando na área da saúde? E quais são as principais metas desse setor para os primeiros 100 dias de Lula na presidência?
Chioro cita que o primeiro passo é garantir um orçamento mais polpudo para a saúde em 2023.
“Pedimos para o [vice-presidente eleito] Geraldo Alckmin (PSB) recompor R$ 10,4 bilhões que foram cortados pelo governo Bolsonaro do orçamento de saúde do ano que vem. Além disso, requisitamos também mais R$ 12,3 bilhões para medidas emergenciais, como comprar vacinas e medicamentos”, estipula.
“Também precisamos recuperar a capacidade de coordenação do Ministério da Saúde. Isso inclui articular as ações com Estados e municípios, pois são eles que estão na ponta e executam as políticas públicas”, acrescenta.
O médico também cita que áreas como vacinação, saúde indígena, assistência farmacêutica, redução de filas de exames ou cirurgias e saúde mental serão prioridades.
“Vamos voltar a condicionar o Bolsa Família à carteirinha de vacinação atualizada. Exigir esse documento na hora da matrícula em creches, escolas e universidades é outra atitude para voltarmos a ter boas coberturas vacinais”, promete.
Souto destaca a necessidade de melhorar os sistemas de informação. “Precisamos turbinar essa área para que todos os dados estejam no mesmo sistema e isso facilite a vida de pacientes e profissionais da saúde”, diz.
A médica também indica a necessidade de retomar a participação popular nas políticas públicas, por meio das Conferências Nacionais de Saúde.
Para Guimarães, o início do próximo governo deveria servir para corrigir as deficiências mais urgentes, que se agravaram nos últimos quatro anos.
“É claro que temos problemas estruturais, mas precisamos compreender a situação na qual estamos, recuperar o tempo perdido e resgatar um sistema que, apesar de alguns defeitos, fornecia a maior parte das informações necessárias para o governo exercer o seu papel”, conta.
Croda vê que os primeiros 100 dias da nova gestão podem apresentar uma armadilha importante na área de saúde. “A grande dificuldade é saber se teremos insumos suficientes para iniciar os projetos, como as grandes campanhas de vacinação”, cita.
“Sem esses insumos estratégicos, como vacinas, remédios e inseticidas para controlar insetos transmissores de doenças, qualquer planejamento fica comprometido”, aponta o infectologista.
Por fim, Marinho entende que a situação é preocupante — e vai exigir ações imediatas.
“Já tínhamos que estar trabalhando na reestruturação da saúde e, ao mesmo tempo, ‘apagar os incêndios’ que aparecerão pelo caminho”, diz.
“Tudo indica que até agora só foram identificadas as pontas do iceberg de muitos dos problemas”, conclui.
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