- Bruna Alves
- De São Paulo para BBC News Brasil
Ao que tudo indica, a invasão que ocorreu no domingo (8/1) na Praça dos Três Poderes, em Brasília, está longe de ser uma página virada. De acordo com a Polícia Federal, 1.843 pessoas foram detidas, identificadas e devem responder por crimes de terrorismo, associação criminosa, atentado contra o Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, lesão corporal, dano qualificado, perseguição, incitação ao crime, dentre outros.
Mas não para por aí. Os problemas para quem participou dos atos de vandalismo no Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal (STF) podem estar apenas começando.
Enquanto as investigações seguem em curso, várias pessoas já foram afastadas de seus respectivos trabalhos ou mesmo demitidas por justa causa, tendo em vista que trabalham em empresas que não compactuam com tais atitudes, e têm medo de ter sua imagem atrelada à depredação que muitos assistiram ao vivo.
Esse é caso do técnico Eduardo*, que, além de atuar, ainda gravou sua participação na invasão do Congresso. Ele, que era um funcionário regido pela Consolidação das leis do Trabalho (CLT), foi demitido de uma empresa de saneamento básico por justa causa na quarta-feira (11). “A companhia reitera o respeito à democracia e repudia atos de vandalismo”, afirmou a empresa.
Uma docente de Universidade, Márcia* foi detida enquanto voltava das depredações na Praça dos Três Poderes e também não saiu ilesa no trabalho. Em nota, inicialmente, a Universidade afirmou o seu repúdio aos discursos de ódio e às manifestações de intolerância, bem como o seu compromisso irrestrito com o Estado Democrático de Direito.
Em seguida, reiterou que “repudia, com indignação, os atos de covardia e violência praticados em Brasília contra o patrimônio público. Não compartilhamos do posicionamento e atitudes de servidores públicos envolvidos em atos antidemocráticos”.
A entidade informou que a professora em questão foi afastada de forma preventiva de suas atividades desde terça-feira (10). “Isso para garantir a lisura do processo administrativo aberto evitando eventuais conflitos no ambiente acadêmico e permitindo que a docente fique à disposição da comissão, que já iniciou a apuração das informações relativas ao referido processo que pode culminar, inclusive, na sua exoneração.”
Outro trabalhador que foi afastado de seu cargo, em uma indústria de maquinários, foi Everton*. Ele atuava no setor de desenvolvimento de produtos, mas está preso em Brasília por ter participado da manifestação.
Procurada pela reportagem, a empresa disse que “não compactua com os eventos ocorridos em Brasília, e confirma que tem um empregado detido, o qual teve seu contrato de trabalho suspenso até apuração de seu envolvimento nos fatos”.
Mas afinal, demissão com justa causa, afastamento: o que diz a lei?
O Artigo 482 da Constituição Federal, que aborda a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) determina que o empregado pode ser demitido por justa causa apenas em alguns casos, tidos como exceções, como não cumprir com suas obrigações, ser desonesto, tentar ser um concorrente, tomar atitudes prejudiciais ao seu serviço.
Para esclarecer o assunto, a BBC News Brasil ouviu os seguintes especialistas: Jouberto de Quadros Pessoa Cavalcante, advogado trabalhista, professor convidado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (ULisboa) e de Pós-Graduação Lato Sensu e Stricto Sensu da Universidade Presbiteriana Mackenzie; Maíra Fernandes, advogada, professora de direito penal convidada da Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito Rio) e; Paulo Renato Fernandes da Silva, advogado e professor de direito trabalhista da FGV Direito Rio.
A dispensa com justa causa é uma forma de punição máxima. Isso significa, que ela deve ser pautada sempre pela ideia de uma “falta grave” que impeça a manutenção do contrato de trabalho. Isso, em regra, deve estar relacionado ao trabalho em si, não a vida pessoal do trabalhador, ou seja, ao que ele faz fora do seu horário de trabalho, não deve interferir na sua relação empresarial.
Esse direito também está resguardado pela Constituição Federal, por isso, em tese, esses atos não deveriam justificar uma demissão com justa causa. E isso tem a ver com a própria democracia, cidadania e diversos outros aspectos.
Entretanto, há brechas na lei, conforme explica o advogado e professor da FGV do Rio de Janeiro, Paulo Renato Fernandes da Silva.
“Se as condutas ilícitas praticadas por esses trabalhadores atingirem a imagem da empresa, abalando de algum modo a confiança e boa fé que existe entre as partes, há justificativa para essa demissão”, especifica o especialista, lembrando que pode haver essa relação, porque a conduta do empregado deve preservar os valores da empresa ao qual ele pertence, e não influenciá-la negativamente. “Mas isso é exceção”, afirma.
2. E no caso de pessoas que são concursadas, muda alguma coisa?
Nas empresas privadas, a dispensa motivada (com justa causa) é um ato unilateral do empregador, ou seja, ele simplesmente decide a partir da análise de fatos imediatamente.
No caso de professores concursados ou demais servidores públicos, sejam eles já estáveis ou não (estáveis após 03 anos de efetivo exercício do cargo), esse tipo de dispensa depende de procedimento administrativo prévio, com amplo direito de defesa. Por isso que essas pessoas podem ser apenas afastadas do cargo, como ocorreu com a professora universitária.
3. É preciso ter provas para que a empresa não seja processada posteriormente, depois da demissão? Que tipo de provas realmente respaldariam tais demissões?
Para começar, hoje existem inúmeras ações judiciais trabalhistas em que são discutidas as dispensas com justa causa por falta dos requisitos legais.
“Nesse caso, caberá ao empregador comprovar o ato praticado, sua gravidade, prejuízos causados, relação com a empresa etc. Sem provas, o Poder Judiciário vai anular o ato do empregador”, diz Cavalcante, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
E para tal demissão, praticamente todo tipo de prova conta, como: testemunhas, fotos/vídeos, e-mails, gravações, redes sociais, e por aí vai.
4. E se a pessoa for presa, essas “faltas” no trabalho justificariam uma demissão por justa causa?
Não justifica. No caso de uma prisão provisória/cautelar, não há como aplicar uma justa causa, já que não existe uma condenação criminal. O funcionário apenas terá os dias descontados da folha de pagamento. Essa situação também não caracteriza abandono de emprego.
“Existem as garantias constitucionais, como a de ampla defesa, o devido processo legal. Nós não temos a pré-condenação e nem a televisão e as mídias sociais são um tribunal para julgar e condenar ninguém”, lembra Silva. “A sociedade precisa ter muita calma nessa hora para realmente fazermos justiça”, acrescenta o professor de direito da Mackenzie.
5. Quais os direitos o trabalhador perde se for demitido por justa causa? Quais ele ainda terá direito?
Em caso de uma dispensa sem justa causa, o trabalhador tem direito aos dias trabalhados (imagine que foi dispensado no dia 20 do mês), ao aviso prévio trabalhado ou indenizado, férias, 13º salário, multa de 40% sobre o saldo do FGTS, saque do FGTS e seguro-desemprego.
Se a dispensa for com justa causa, ele terá direito apenas aos dias trabalhados, 13º salário e férias vencidas. Ele perde o aviso prévio, a multa sobre o FGTS, que não poderá ser sacado naquele momento, além do seguro-desemprego.
Essa resposta pode ser encontrada no art. 482, da CLT, conforme descrita abaixo:
– Ato de improbidade (desonestidade);
– Incontinência de conduta (desregramento sexual) ou mau procedimento (conduta incompatível com o ambiente de trabalho);
– Negociação habitual por conta própria ou alheia sem permissão do empregador, quando constituir ato de concorrência à empresa para a qual trabalha o empregado, ou for prejudicial ao serviço;
– Condenação criminal do empregado, passada em julgado, caso não tenha havido suspensão da execução da pena. “Nesse caso, apenas depois que houve condenação final no processo criminal. Não se aplica ao caso de prisão cautelar/provisória”, pontua Cavalcante;
– Desídia no desempenho das respectivas funções (negligência);
– Embriaguez habitual ou em serviço. Mas aqui vale lembrar nesse caso que, atualmente, a embriaguez é uma doença (dependência química), por isso, não se aplica;
– Violação de segredo da empresa;
– Ato de indisciplina, como a violação de regras gerais da empresa, ou de insubordinação;
– Abandono de emprego;
– Ato lesivo da honra ou da boa fama praticado no serviço contra qualquer pessoa, ou ofensas físicas, nas mesmas condições, salvo em caso de legítima defesa ou de outrem. “Em regra, estamos falando de agressões verbais e físicas no local de trabalho contra colegas e terceiros/clientes. Também é possível aplicar a justa causa por ofensas ao empregador ou superior hierárquico em redes sociais”, acrescenta Cavalcante.
– Ato lesivo da honra ou da boa fama ou ofensas físicas praticadas contra o empregador e superiores hierárquicos, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem;
– Prática constante de jogos de azar;
– Perda da habilitação ou dos requisitos estabelecidos em lei para o exercício da profissão, em decorrência de conduta dolosa do empregado, como quando o motorista perde a carteira de habilitação.
O advogado e professor de direito do Mackenzie destaca outro ponto importante: a prática de furto, assédio sexual e ato terrorista, devidamente comprovada em inquérito administrativo, de atos que coloquem em risco a segurança nacional, também podem ocasionar uma justa causa.
“Se o empregado durante uma manifestação violenta envolver o empregador de alguma forma (usando uniforme da empresa, camisa da empresa, ofender o empregador ou superior hierárquico por ser de direita/esquerda/centro) há a possibilidade de dispensa motivada”, ressalta Silva.
Conforme citado no início desta reportagem, as pessoas que depredaram a Praça dos Três poderes, entre outros, poderão responder pelo crime de golpe de Estado, porque houve um claro motivo para a depredação. “Não eram atos de vandalismo, puro e simplesmente, eles não concordam com o resultado das eleições democrática que tivemos”, ressalta Fernandes, professora de direito da Fundação Getúlio Vargas.
Por outro lado, a advogada diz que é preciso haver a individualização das condutas. “Ou seja, quem foi preso fazendo o quê? Quem estava apenas nas intermediações, quem participou menos ativamente? Esse é um desafio importante, porque há, sim, uma diferença entre aqueles que efetivamente depredaram os patrimônios e até filmaram para postar nas redes sociais, e os que não fizeram isso”, prioriza Fernandes.
Há grupos prioritários
Segundo a Polícia Federal, os idosos, pessoas com problemas de saúde, em situação de rua e pais/mães acompanhados de crianças tiveram prioridade. “Ao todo, 684 detidos pertencentes a esses grupos foram identificados e responderão em liberdade”, disse à BBC News Brasil.
A Polícia Federal qualificou, interrogou e prendeu 1.159 pessoas. Elas foram entregues para a Polícia Civil do Distrito Federal, responsável pelo encaminhamento ao Instituto Médico Legal e, posteriormente, ao sistema prisional. A operação, em geral, também contou com diversos órgãos e ministérios governamentais.
*Os nomes dos funcionários e das empresas foram trocados ou omitidos
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