• Lais Modelli
  • De São Paulo para a BBC News Brasil

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A pequena Haia Pinkhasovna Lispector tinha um ano e três meses quando desembarcou no porto de Maceió, em Alagoas, em 1922. Acompanhada dos pais e das duas irmãs, ela migrou da Ucrânia para o Brasil logo após a Guerra Civil Russa (1918-1921).

Em solo nordestino, as meninas foram rebatizadas com nomes brasileiros. A caçula, Haia, virou Clarice. E, 20 anos depois, se tornaria a famosa escritora Clarice Lispector — naturalizada brasileira nos anos 1940.

De origem judaica, quase toda a família Lispector — não só os pais de Clarice, como também seus tios e primos — chegou ao Brasil fugindo das perseguições contra judeus na Ucrânia no início do século 20.

“Os familiares que não saíram da Ucrânia naquela época certamente morreram. É o caso de um dos avós de Clarice, que teria sido assassinado em um pogrom”, afirma a escritora Teresa Montero, uma das maiores biógrafas de Clarice Lispector.

Os “pogroms” foram uma onda de ataques violentos contra judeus, com motivações políticas e religiosas, que varreu a Ucrânia nas décadas de 1910 e 1920.

Os Lispector foram alvo de um pogrom praticado por militares russos na aldeia onde moravam, em Chechelnyk, na província de Podólia, por volta de 1919. O episódio foi descrito no livro Clarice, Uma Biografia, do crítico americano Benjamin Moser.

Segundo a obra, o ataque aconteceu durante uma viagem do pai de Clarice, o comerciante Pinkhas, e a mãe dela, Mania, teria sido estuprada e contraído sífilis.

Clarice foi concebida neste contexto: a família acreditava, segundo uma crença popular, que uma gravidez poderia curar a doença de sua mãe. Não à toa, o nome Haia significa “vida” em ucraniano.

A cura de Mania, contudo, não aconteceu, e ela morreu quando Clarice tinha dez anos. A escritora contou o episódio em uma crônica, publicada no livro A Descoberta do Mundo, de 1968:

“(…) Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa culpa: fizeram-me para uma missão e eu falhei.”

Os pogroms

“Os anos 1910 e 1920 foram difíceis para toda a Ucrânia, mas particularmente para a população judaica”, afirma Jeffrey Veidlinger, professor de história e estudos judaicos da Universidade de Michigan, nos EUA.

Ele explica que, durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a maioria dos judeus na Ucrânia, na época pertencente ao Império Russo, eram artesãos ou comerciantes pobres que viviam em pequenas aldeias e sofriam perseguições religiosas e políticas.

“Durante a Primeira Guerra, os militares russos deportaram centenas de milhares de judeus das fronteiras do império russo, temendo que eles pudessem ser recrutados como espiões para os alemães”, explica Veidlinger.

A situação piorou a partir de 1917, com a Guerra Civil Russa instaurada com o fim do czarismo e a consolidação da Revolução Russa, liderada pelos bolcheviques.

“Os pogroms mais letais foram praticados entre 1917 e 1921 por gangues armadas e unidades militares dos exércitos russos, ucranianos e poloneses”, diz Veidlinger.

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Escritora chegou ao Brasil ainda pequena, quando ainda se chamava Haia Pinkhasovna Lispector

Estima-se que mais de 100 mil judeus foram mortos durante os pogroms de 1917 a 1921, segundo o professor, e outros 600 mil foram forçados a fugir da Ucrânia.

Com o desmantelamento do Império Russo, a Ucrânia e a Polônia vivenciaram um breve período de independência, mas também passaram por uma guerra civil em que judeus frequentemente eram alvos de saques e perseguições.

“O Exército ucraniano e o Exército Branco [russos contrários à Revolução Russa] atacaram os judeus com a suspeita de que eram leais aos bolcheviques. Já os poloneses acusaram os judeus de serem leais aos ucranianos”, descreve Veidlinger.

A maior parte da violência contra os judeus, no entanto, foi cometida sob a acusação de que eles estavam do lado dos bolcheviques.

Crédito, AMLB-FCRB

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Clarice e família: de origem judaica, quase todos chegaram ao Brasil enquanto fugiam de perseguição

“Os bolcheviques inicialmente atacaram os judeus sob a acusação de que eram capitalistas burgueses. Depois, o Exército Vermelho defendeu os judeus. Vários dos líderes bolcheviques mais visíveis, incluindo o chefe do Exército Vermelho, Leon Trotsky, eram conhecidos por terem origem judaica”, completa Veidlinger, lembrando que o próprio Trotsky nasceu na Ucrânia.

Depois do Holocausto cometido pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial (1941-1945), os pogroms são considerados o pior episódio antissemita da história.

Memórias da Ucrânia

Teresa Montero lembra que, apesar de Clarice ter falado muito pouco sobre a sua origem, trechos de suas crônicas publicadas no Jornal do Brasil, onde foi colunista entre 1967 e 1973, tocam brevemente no tema.

“Na Polônia, eu estava a um passo da Rússia. Foi-me oferecida uma viagem à Rússia, se eu quisesse. Mas não quis. Naquela terra eu literalmente nunca pisei: fui carregada de colo”, escreve Clarice em uma crônica sobre suas viagens como mulher do diplomata Maury.

A escritora também nunca se manifestou publicamente sobre os episódios políticos que marcaram a Ucrânia e a Rússia.

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Uma das hipóteses sobre o silêncio de Clarice diante das questões políticas do seu país de origem era o medo de ser deportada

“Não tem nenhum depoimento ou entrevistas em que Clarice tenha falado sobre a vida política da Ucrânia, nem sobre a União Soviética”, afirma Montero.

Uma das hipóteses sobre o silenciamento de Clarice diante das questões políticas do seu país de origem era o medo de ser deportada.

“Quando entrevistei a tradutora Tati de Moraes, amiga de Clarice, ela me contou que a escritora tinha medo de ser deportada”, lembra a biógrafa.

Contudo, isso não significa que Clarice não tivesse uma postura política.

“Ela [Clarice] foi fichada pela ditadura por ter participado da Passeata dos Cem Mil. Antes, ela já havia sido fichada pelo governo [Eurico Gaspar] Dutra, certamente por ser judia e de origem russa”, ressalta Montero.

A Passeata dos Cem Mil foi uma manifestação popular contra a ditadura militar e a favor da democracia, encabeçada por intelectuais, artistas e estudantes, em 1968, no Rio de Janeiro.

Marcos históricos ocorridos na Ucrânia que foram contemporâneos de Clarice:

– 1921: Parte da Ucrânia é incorporada à Polônia.

– 1922: Ucrânia é incorporada à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).

– 1930: tem início o Holodomor (matar pela fome, em ucraniano), em que Joseph Stalin passa a exigir dos camponeses ucranianos grande parte da produção agrícola. Estima-se que 5 milhões de camponeses morreram de fome na região em pouco mais de três anos.

– 1953: a Ucrânia anexa a Crimeia.

Quem seria responsável por narrar as memórias da família Lispector na Ucrânia seria a irmã mais velha de Clarice, a também escritora Elisa Lispector.

“Elisa nasceu em 1911, era a mais velha das três irmãs. Clarice, a caçula, nasceu em 1920. Então, quem tinha memória do período na Ucrânia era Elisa, que chegou no Brasil já com 10 anos”, diz Montero.

No livro Retratos Antigos, publicado postumamente em 2011 (Elisa morreu em 1989, deixando a obra inédita), a escritora conta sobre os pogroms e a vida dos judeus na Ucrânia.

“Como se iniciava um pogrom?, já me perguntaram por mais de uma vez, e eu não soube responder. Talvez porque eles mesmos, os que faziam os pogroms, não pudessem dizer”, diz ela em um trecho do livro.

Elisa escreve que as cidades permitiam que apenas uma porcentagem de judeus frequentasse a escola e universidade e que, apesar de terem o direito de morar nas cidades, “até nos pequenos vilarejos, nos casebres de madeira, nas ruas tortuosas de caminhos de lama, os judeus viviam segregados e com medo”.

Nacionalidade russa

“Hoje, falamos ucraniana, mas, na realidade, a nacionalidade da Clarice é russa, porque, na época do seu nascimento, a região pertencia ao Império Russo”, explica Montero.

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Ao longo da carreira, Clarice publicou 18 livros, entre romances, contos e crônicas

A questão fica clara na carta que Clarice escreveu ao presidente Getúlio Vargas pedindo sua naturalização, em que afirma ser:

“Uma russa de 21 anos de idade e que está no Brasil há 21 anos menos alguns meses. Que não conhece uma só palavra de russo (…) Que não tem pai nem mãe — o primeiro, assim como as irmãs da signatária, brasileiro naturalizado — e que por isso não se sente de modo algum presa ao país de onde veio, nem sequer por ouvir relatos sobre ele. Que deseja casar-se com brasileiro e ter filhos brasileiros. Que, se fosse obrigada a voltar à Rússia, lá se sentiria irremediavelmente estrangeira, sem amigos, sem profissão, sem esperanças.”

Apesar do tom dramático, Teresa lembra que a carta foi escrita às vésperas do Brasil entrar na Segunda Guerra Mundial — o documento é de 3 de junho de 1942, e o país declarou guerra à Alemanha em 22 de agosto do mesmo ano — e que Clarice estava noiva do diplomata Maury Gurgel Valente, mas não podia se casar por ser estrangeira.

“O Itamaraty não permitia que diplomatas se casassem com estrangeiros, e Clarice não era só estrangeira, era também russa”, explica a biógrafa.

A naturalização foi concedida um ano após a carta endereçada a Vargas. Cerca de duas semanas depois, Clarice e Maury se casaram.

A escritora morreu em 1977, no Rio de Janeiro, tendo afirmado durante toda a vida adulta ser brasileira.

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