• Alessandra Corrêa
  • De Washington (EUA) para a BBC News Brasil

Crédito, Biblioteca do Congresso dos EUA

Legenda da foto,

Alguns americanos negros planejavam deixar os EUA rumo a países africanos ou da América Latina, em busca de um lugar onde pudessem desfrutar de cidadania plena; na foto, uma família de agricultores em Oklahoma

No início da década de 1920, um grupo de americanos negros decidiu deixar para trás a violência e o racismo que enfrentava nos Estados Unidos e começar uma nova vida no Brasil.

Essa era uma época em que o Brasil estava em busca de imigrantes, principalmente para trabalhar em lavouras de café. Atraídos por anúncios publicados pelo próprio governo brasileiro em jornais do exterior, os americanos esperavam encontrar um “paraíso racial”, onde não houvesse preconceito e todos teriam oportunidades.

Mas, quando o governo brasileiro ficou sabendo que esse grupo de imigrantes era formado por pessoas negras, houve uma mobilização para impedir sua entrada no país, e o assunto passou a dominar debates na imprensa e no Congresso.

Preocupados em manter a imagem de “democracia racial”, que era cultivada pelo Brasil com orgulho, defensores do veto alegaram que os americanos não estavam sendo rejeitados por serem negros, mas sim porque poderiam perturbar a ordem pública. A motivação não seria, portanto, racial, e sim de segurança nacional.

Esse episódio é um entre vários analisados pelo historiador Ousmane Power-Greene, professor da Clark University, no Estado de Massachusetts, em um livro que vai abordar as experiências de americanos negros que deixaram os Estados Unidos entre o fim do século 19 e o início do século 20 para se instalar em outros países.

“Alguns estudos se dedicam aos americanos negros que emigraram para a Libéria, outros aos que foram para o Canadá, ou México, ou Haiti. Mas não há um retrato que englobe todos (esses movimentos)”, diz Power-Greene à BBC News Brasil. “Meu objetivo é contar a história da emigração de americanos negros de maneira mais ampla.”

Romantização brasileira

Se no Brasil, pelo menos de acordo com o que se imaginava a respeito do Brasil internacionalmente, pessoas de todas as raças conviviam em harmonia, nos EUA a realidade enfrentada pela população negra no início do século 20 era bem diferente.

O período de Reconstrução, iniciado após o fim da Guerra Civil americana (1861-65), havia resultado em avanços para os americanos negros. Mas logo as conquistas começaram a ser revertidas e, nos anos 1920, essa parcela da população já havia perdido vários dos direitos conquistados após o fim da escravidão.

Episódios de violência racial e linchamentos se espalhavam pelo país, e os Estados do Sul, que haviam perdido a guerra, passaram a implementar rígidas leis de segregação.

“A partir dos anos 1880, as condições para os americanos negros começam a se deteriorar, com altos níveis de violência”, observa Power-Greene.

O historiador ressalta que, na época, a maioria da população negra continuava morando no Sul. Diante do aumento da violência e das restrições, eles iniciaram o que se tornaria a “Grande Migração”, movimento no qual milhões deixaram a região e se mudaram para outras partes do país em busca de melhores condições.

Crédito, Biblioteca do Congresso dos EUA

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Na primeira metade do século 20, enquanto o Brasil cultivava uma imagem de país sem preconceitos, a população negra dos EUA enfrentava violência racial e segregação; na foto, família de agricultores do Texas nos anos 1930

Nesse contexto, muitos passaram a cogitar deixar os Estados Unidos rumo a países africanos ou mesmo da América Latina, onde esperavam poder desfrutar de cidadania plena.

Um dos principais nomes do movimento que defendia o retorno à África era o ativista político e líder nacionalista negro Marcus Garvey, fundador da Unia (Associação Universal para o Progresso Negro e Liga das Comunidades Africanas), que na década de 1920 tinha presença em mais de 40 países.

Power-Greene observa que, quando o projeto de enviar americanos negros para a África começou a enfrentar obstáculos por parte de diversos poderes coloniais, membros da UNIA passaram a focar em outras partes do mundo, entre elas o Brasil.

“Nesse período, havia entre os americanos negros a ideia de que lugares como o Brasil ainda preservavam muito do modo de ser africano, da cultura, da religião”, diz ainda Power-Greene. “Então, havia uma romantização do Brasil.”

‘Oportunidades ilimitadas’ no Brasil

Na mesma época em que muitos americanos negros cogitavam deixar seu país, o governo brasileiro vinha anunciando em jornais do exterior o desejo de receber imigrantes e a promessa de trabalho, benefícios e até subsídios para que as famílias se instalassem no Brasil.

Desde o fim do século 19, o Brasil buscava atrair imigrantes para trabalhar na agricultura e também ajudar a povoar áreas remotas no interior. Nas décadas seguintes, milhões de alemães, italianos, espanhóis, portugueses, japoneses, sírios e libaneses, entre outros, chegaram ao país.

No estudo “In Search of the Afro-American ‘Eldorado’: Attempts by North American Blacks to Enter Brazil in the 1920s” (“Em busca do ‘Eldorado’ Afro-Americano: Tentativas de Negros Norte-Americanos de Entrar no Brasil nos anos 1920”, em tradução livre), de 1988, os historiadores Teresa Meade e Gregory Alonso Pirio listaram vários exemplos de anúncios sobre o tema publicados na imprensa negra americana.

Em 1920, o jornal Baltimore Afro-American, da cidade de Baltimore, detalhava a oferta de passagem, acomodação e crédito de longo prazo para trabalhadores e agricultores dispostos a se estabelecer no Brasil.

Segundo o jornal, o Brasil oferecia “oportunidades ilimitadas”, sem segregação racial e com uma população que tinha mais indígenas, negros e mestiços do que brancos. “Um homem negro pode ser presidente do Brasil sem provocar mais comentários do que a eleição de um homem branco aqui (nos Estados Unidos)”, dizia o jornal.

Em 1921, em artigos no Chicago Defender, principal jornal da imprensa negra dos EUA na época, o autor E. R. James falava sobre “oportunidades de sobra no Brasil para todos, independentemente de raça, crença ou cor”.

Os historiadores destacam que esse tipo de mensagem atraía americanos negros “desiludidos” com as chances de se estabelecerem na África e “condicionados a ver o Brasil como um paraíso racial”. Essa imagem era projetada no exterior desde o século anterior, alimentada por relatos de estrangeiros que haviam visitado o Brasil.

Como o governo brasileiro não divulgava no exterior sua relutância em aceitar imigrantes negros, artigos na imprensa negra dos EUA “presumiam equivocadamente que o apelo oficial do Brasil por imigrantes norte-americanos incluía os negros”.

‘Liberdade e riqueza em uma terra de fartura’

Foi nesse cenário que, em 1920, um grupo de americanos negros da cidade de Chicago criou uma empresa chamada Brazilian-American Colonization Syndicate (Bacs) com o objetivo de comprar terras no Mato Grosso para estabelecer colônias agrícolas.

A empresa logo começou a publicar anúncios nos principais veículos da imprensa negra nos EUA. Um deles, reproduzido por Meade e Pirio, perguntava: “Você quer liberdade e riqueza em uma terra de fartura? Oportunidade e igualdade sem limites?”. E concluía: “Então compre terras no Brasil”.

Os historiadores lembram que braços da Unia, a organização de Garvey, estavam ligados ao projeto de colonização. Eles citam informações repassadas ao FBI (Federal Bureau of Investigation, a polícia federal americana) por um informante de que, em um encontro da Unia, havia sido mencionada a fundação “de uma república negra no norte do Brasil”.

Crédito, Biblioteca do Congresso dos EUA

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Um dos principais nomes do movimento que defendia o retorno à África era o líder nacionalista negro Marcus Garvey, fundador da UNIA (Associação Universal para o Progresso Negro e Liga das Comunidades Africanas).

Mas, apesar de o desejo de atrair imigrantes e do orgulho da imagem de tolerância racial que o Brasil tinha no exterior, as autoridades brasileiras não tinham a intenção de receber as famílias negras.

Historiadores salientam que, na época, havia no Brasil um esforço para “branquear” a população. “Eles esperavam que, após várias gerações, negros brasileiros e imigrantes europeus se misturassem de maneira que uma população de raça mista, ou ‘branqueada’, iria predominar”, escreveram Meade e Pirio em 1988.

Ao ficar sabendo da intenção da BACS, as autoridades brasileiras trataram de impedir o projeto, vetando a concessão de terras e negando os pedidos de visto.

‘Divisão de raças que não conhecemos’

O tema dos americanos negros gerou polêmica no Brasil, em um momento em que já havia no país um grande debate sobre a imigração, inclusive de europeus. Em julho de 1921, os deputados federais Cincinato Braga (SP) e Andrade Bezerra (PE) apresentaram um projeto de lei que proibia a imigração de pessoas negras.

A proposta chegou a receber parecer favorável do Instituto dos Advogados do Brasil, mas fracassou na Câmara, classificada por opositores como “um atentado à Constituição”, “à dignidade da raça negra” e “à fé cristã”. Críticos salientavam que, “perante a Constituição”, não havia “privilégios de raça” ou distinção “entre brancos, negros e pardos”.

Na imprensa brasileira, alguns comentaristas criticavam duramente a ideia de proibir os americanos negros de imigrar para o país. Muitos, como o jornalista Assis Chateubriand, consideravam a proposta inconstitucional.

Outros, porém, defendiam o projeto de lei, descrevendo esses imigrantes como “indesejáveis” e citando “uma longa tradição de ódios” da população negra nos Estados Unidos e o temor de que introduzissem no Brasil “uma divisão de raças que não conhecemos”.

Um comentarista no Jornal do Brasil resumia a posição de muitos dos que eram favoráveis ao veto aos americanos: “não porque são pretos, mas porque trazem no espírito, contra o branco, um sentimento de hostilidade que será, na nossa ordem social, um perigo e um mal”.

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Estados do Sul, que haviam perdido a Guerra Civil americana, passaram a implementar rígidas leis de segregação; na foto, homem negro bebe água em bebedouro só para pessoas de cor

Historiadores ressaltam que havia também o temor de que um ativismo inspirado por ideias como as defendidas por Marcus Garvey ganhasse força no Brasil. Na época, ativistas e organizações negras que combatiam o racismo e as desigualdades no Brasil eram muitas vezes severamente reprimidos.

“O grande esforço do Brasil durante os anos 1920 para impedir negros de entrar no país não era apenas parte da estratégia de branqueamento”, escreveram Meade e Pirio em 1988. “As autoridades brasileiras na época estavam muito interessadas em impedir a entrada de ideologias radicais que buscassem aumentar a consciência racial.”

Colaboração entre EUA e Brasil

Historiadores destacam a cooperação que havia na época entre autoridades brasileiras e americanas.

Na década de 1920, vários grupos negros que defendiam a emigração eram vigiados pelo governo dos EUA, preocupado com focos de militância. Em seu estudo, Meade e Pirio relataram que agentes do FBI repassaram informações sobre as atividades de alguns desses grupos a autoridades consulares brasileiras.

No fim de 1921, de maneira discreta, “oficiais de imigração no Brasil orientaram cônsules nos EUA a recusar vistos a qualquer pessoa negra”.

Essas rejeições, muitas vezes envolvendo turistas, costumavam gerar protestos, mas as autoridades de ambos os países negavam que houvesse qualquer acordo oficial para impedir que americanos negros viajassem ao Brasil.

Assim, ao longo daquela década, mesmo enquanto surgiam cada vez mais notícias sobre americanos negros que tiveram o visto recusado, a imprensa negra dos EUA continuou a publicar artigos exaltando a suposta ausência de preconceito racial no Brasil.

Power-Greene lembra que, apesar desse episódio, outros projetos de imigração tiveram sucesso, e americanos negros estabeleceram colônias em diversos países.

O historiador cita exemplos desde o início do século 19, passando não apenas pela Libéria e países africanos, mas também por Canadá e República Dominicana, entre outros locais nas Américas.

“Movimentos de migração costumam ser repletos de decepção e retorno”, destaca. “É importante reconhecer a falta de sucesso. Mas também é importante entender o contexto. E olhar para essas histórias de maneira coletiva.”

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