- Author, Giulia Granchi
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
- Twitter, @GranchiGiulia
As carcaças de oito animais silvestres estendidas em uma lona com a frase: “E agora? Vocês nos veem?” ficaram por horas à frente da sede do DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, no dia 15 de maio.
Os corpos dos animais foram levados como uma forma de protesto pela segurança das rodovias estaduais, em especial do trecho da BR-262, conhecida como “a estrada da morte” para a fauna do Pantanal e do Cerrado, que corta esses dois biomas e é administrada pelo DNIT.
“Ela passou a ser chamada assim porque a visão dos animais mortos na pista infelizmente é algo comum nessa rodovia, que é muito utilizada. Todo mundo que vai para o Pantanal, saindo de Campo Grande ou de outros locais do Estado, precisa passar por ela”, diz Gustavo Figueiroa, biólogo da SOS Pantanal e um dos ativistas responsáveis pelo protesto.
A BR-262 é uma das maiores rodovias do Brasil – sua extensão tem mais de dois mil quilômetros e liga Espírito Santo, Minas Gerais, São Paulo e Mato Grosso do Sul.
O trecho que vai de Campo Grande, a capital, até a cidade de Corumbá tem uma extensão de 420 quilômetros e é utilizado para o transporte de diversos tipos de cargas, como produtos agropecuários, minérios e combustíveis.
Essa parte da BR-262 é considerada por pesquisadores e ativistas de proteção animal como prioritária para receber medidas de mitigação para evitar mortes de animais e pessoas.
“Não temos dados que provem que é a rodovia mais mortal do Brasil, já que os levantamentos que ficam públicos são geralmente coletados por instituições e ONGs. Mas sabemos que muitas vidas – animais e humanas – são perdidas ali”, diz Figueiroa.
No Mato Grosso do Sul, segundo dados da Polícia Rodoviária Federal, entre 2018 e 2023, ocorreram 372 colisões com animais envolvendo vítimas humanas fatais ou feridas.
Média de 180 atropelamentos por mês
Em 3 anos de monitoramento, feito entre 2017 e 2020, pesquisadores do ICAS (Instituto de Conservação de Animais Silvestres) registraram 6.650 animais mortos, uma média de 180 por mês, na BR-262 entre Campo Grande e a ponte do Rio Paraguai – uma extensão de 339 km na mesma direção da cidade de Corumbá, mas parando a cerca de uma hora de carro antes.
Destes, 316 eram de espécies ameaçadas de extinção (tamanduá-bandeira, anta, cervo-do-Pantanal, queixada, lobo-guará, cachorro-vinagre, gato-palheiro, gato-mourisco).
Os pesquisadores apontam, no entanto, que o número deve ser muito maior do que esse.
“Muitos dos animais que morrem em colisões somem, já que os próprios veículos podem jogar as carcaças de volta para a mata com o impacto da batida, alguns são levados pela chuva, comidos por outros bichos ou têm seus corpos atropelados várias vezes, o que nos impede de identificar a espécie”, explica Arnaud Desbiez, fundador do Icas, zoólogo e Doutor em Manejo da Biodiversidade pelo Instituto de Conservação e Ecologia de Durrell, da Universidade de Kent, no Reino Unido.
Dados mais recentes, levantados pelo Instituto Homem Pantaneiro entre 2016 e 2023, apontam que 19 onças-pintadas morreram vítimas de atropelamento na BR-262 no trecho de cerca de 200 km entre Miranda e Corumbá.
Somente neste ano, de acordo com a Polícia Militar Ambiental, foram três animais da espécie mortos no mesmo trecho.
De modo geral, os atropelamentos não são intencionais. “A partir do momento que o animal está na pista, por uma questão de segurança, não há como evitar a colisão. Frear ou desviar do animal seria muito mais perigoso do que colidir, em especial para veículos pesados”, aponta o estudo do ICAS.
O documento mostra que mais de 80% dos acidentes com animais na rodovia ocorrem no período noturno e que 40% dos animais registrados tinham tamanho suficiente para causar danos materiais aos veículos.
‘Sumidouro’ da vida silvestre
“Ano após ano, a BR-262 continua oferecendo risco para animais e pessoas – não houve mudanças significativas”, diz Arnaud Desbiez.
Desbiez aponta que a estrada contribui diretamente com a redução da quantidade de animais que vivem no Cerrado e principalmente no Pantanal, bioma presente na maior parte do trecho. “É como se houvesse um sumidouro e os animais fossem a água. Eles vão sendo puxados até que a fonte seca.”
“Nossos dados mostram que os animais mais prejudicados são os que vivem perto da pista. É o caso do tamanduá-bandeira: as mortes causam uma redução da taxa de crescimento populacional de mais de 50%.”
“Em apenas um dia dirigindo na BR-262, entre Campo Grande e Miranda, vi cinco tamanduás-bandeiras mortos. É algo muito impactante”, complementa Erica Naomi Saito, bióloga e presidente da REET Brasil (Rede Brasileira de Especialistas em Ecologia de Transportes).
Desbiez aponta que a diversidade de espécies mortas em colisões é surpreendente.
“Em 20 anos trabalhando no Pantanal há espécies que eu nunca consegui ver com vida, ou que vi uma única vez como o cachorro-vinagre. E aí, encontrá-los mortos nas estradas é um choque muito triste.”
O que dizem os responsáveis pela segurança da estrada
A BBC News Brasil pediu dados mais recentes de atropelamentos fatais ao DNIT, assim como se há um plano para reduzir os óbitos na BR-262, mas não houve resposta aos questionamentos. Em vez disso, a autarquia enviou a seguinte resposta:
“O DNIT informa que para os casos de atropelamento de fauna nas rodovias federais, o Departamento investe nos Programas Ambientais de Atropelamento de Fauna, no qual a sensibilização, o monitoramento e as medidas mitigatórias são abrangidas.”
“No caso da BR-262/MS foram instalados redutores de velocidade, placas de sinalização, cercas condutoras e passagens superiores de fauna. Nesse trecho, a rodovia passa pela região do Pantanal Sul-mato-grossense, onde o monitoramento dos casos de atropelamento da fauna demonstrou a necessidade de intervenção do poder público, visando a diminuição do conflito entre fauna e os veículos que trafegam pela rodovia. Está em andamento também por iniciativa da SR/MS, a contratação de monitoramento dos atropelamentos no segmento entre Campo Grande-MS e Anastácio-MS.”
Os ativistas presentes no protesto afirmaram à BBC News Brasil que o DNIT possui um plano de mitigação em mãos, mas que estavam demorando a implementá-lo.
Na ocasião, Euro Nunes Varanis Júnior, superintendente estadual do DNIT, justificou que o plano citado não foi executado por falta de autorização do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).
“Ano passado apresentamos plano de mitigação de acidentes de Aquidauana até Corumbá. Ele foi feito pela empresa Via Fauna. Agora, estamos esperando a aprovação do Ibama para saber se aquelas medidas propostas podem ser implementadas ou não”, disse.
Em resposta à BBC, o Ibama confirmou que recebeu o plano de mitigação do DNIT.
“O Ibama analisou o conteúdo apresentado e solicitou complementação de informações, que já foi apresentada. No momento, a equipe que conduz o licenciamento ambiental da rodovia analisa o plano de forma prioritária com vistas a autorizar sua execução, o que está previsto para ocorrer ainda em maio.”
As soluções para diminuir colisões
De acordo com o Ibama, o plano de mitigação tem como principais focos a definição dos pontos críticos de atropelamento e de medidas como a implantação de passagens de fauna e cercas direcionadoras, controle e redução de velocidade, sinalização das vias e campanhas educativas.
“O cercamento vai impedir que o animal acesse a rodovia. Só que pode criar um problema de conectividade. Como é então que esse animal vai atravessar? Aí é que vem a importância da passagem da fauna [feita por cima ou por baixo das rodovias]. Essa combinação é muito importante e efetiva, principalmente para animais de médio a grande porte, que são aqueles que capazes de se envolver em acidentes bastante graves com vítimas humanas”, explica Erica Naomi Saito, especialista em ecologia de transportes, complementando que as medidas devem considerar animais de diferentes tamanhos e espécies.
A bióloga explica que, embora o problema chame atenção na BR-262 e no Estado do Mato Grosso do Sul pelos números, o problema é muito comum em todas as rodovias brasileiras.
“Isso porque, infelizmente, no Brasil, essa preocupação em proteger a fauna e, por consequência, proteger os usuários da rodovia foi historicamente deixada de lado. Foi só na última década que começamos uma discussão mais intensa, e sabemos que o processo de implantação dessas medidas de mitigação é muito lenta.”
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