- Author, André Biernath
- Role, Da BBC News Brasil em Londres
- Twitter, @andre_biernath
A rolinha-do-planalto (Columbina cyanopis) não chama a atenção apenas pelos olhos azuis e a bela plumagem marrom-castanho: ela está entre as aves mais raras do mundo.
A espécie, que vivia no Cerrado e era avistada de Goiás a São Paulo, de Mato Grosso a Minas Gerais, praticamente desapareceu do mapa e não era encontrada na natureza há 75 anos.
Mas essa história ganhou uma reviravolta surpreendente em 2015, quando 12 rolinhas-do-planalto foram descobertas ao acaso no município mineiro de Botumirim, a 354 quilômetros de Belo Horizonte.
Desde então, um time de cientistas lançou uma verdadeira “operação de guerra” para tentar salvar essa espécie da extinção.
E o mais recente capítulo deste trabalho aconteceu nos primeiros meses de 2023, quando dois ovos da rolinha-do-planalto foram retirados da natureza e incubados com o auxílio de máquinas e especialistas.
Os filhotes que nasceram foram então transportados de jatinho até Foz do Iguaçu, onde inaugurarão um viveiro cheio de cuidados especiais — para que, no futuro, indivíduos dessa espécie possam ser reintroduzidos na natureza.
A BBC News Brasil conversou com os responsáveis pelo projeto — e você confere a seguir todos os detalhes da corrida para resgatar essa ave da extinção.
A descoberta
Em 2015, o ornitólogo Rafael Bessa viajava pelo interior de Minas Gerais quando decidiu parar num determinado local da Serra do Espinhaço, no norte do Estado, para tirar fotos e apreciar a vista.
Foi aí que o especialista ouviu o canto de um pássaro diferente, que ele não reconheceu de primeira.
Bessa resolveu voltar ao mesmo lugar no dia seguinte, munido dos equipamentos necessários para registrar aquela espécie misteriosa.
“Olhei pelo binóculo, e minhas pernas começaram a tremer. Sabia que tinha um verdadeiro fantasma na minha frente. Foi um momento de muita emoção, indescritível. Estava muito feliz e nervoso ao mesmo tempo”, disse o especialista à BBC News Brasil, numa reportagem publicada em junho de 2016.
“Só pensava em documentar e aproveitar o momento. Até então, não sabíamos absolutamente nada sobre a espécie, e aqueles poucos minutos de observação poderiam significar muito para a conservação da rolinha.”
Sim, Bessa estava diante da rolinha-do-planalto, que não era vista na natureza há 75 anos.
O biólogo Pedro Develey, diretor-executivo da Save Brasil, ong que trabalha pela conservação das aves na natureza, lembra que ficou sabendo da descoberta no Congresso Brasileiro de Ornitologia de 2015, realizado em Manaus.
“Os registros eram extraordinários. Estávamos diante de uma das maiores descobertas da ornitologia do último século”, pontua.
“Nós só conhecíamos a rolinha-do-planalto por algumas peças de museu, e os órgãos responsáveis já a classificavam como uma espécie praticamente extinta”, complementa ele.
O planejamento
A descoberta de Bessa deu início a uma verdadeira corrida contra o tempo. Afinal, ele só havia observado cerca de 12 indivíduos no local.
“Um de nossos primeiros questionamentos foi justamente sobre a propriedade. Quem era o dono daquela terra? Tratava-se de uma área protegida? Havia alguma ameaça à vida daquelas poucas aves?”, questiona Develey.
A Save Brasil começou a fazer toda essa investigação e, em cerca de três anos, comprou o terreno localizado na cidade de Botumirim com recursos próprios para montar uma reserva natural privada de 600 hectares.
“Em paralelo, trabalhamos com o governo de Minas Gerais para a criação do Parque Estadual de Botumirim, que tem 35 mil hectares”, conta o biólogo.
A primeira missão estava cumprida: a área onde as raras rolinhas-do-planalto foram observadas depois de tanto tempo estava finalmente protegida.
Começava, então, a próxima etapa. “A gente precisava entender a biologia dessa ave. O que ela come, onde vive, se faz migração, como se comporta nas temporadas de chuva ou seca, como se reproduz…”, lista Develey.
E, ao longo dos estudos, os cientistas depararam com uma boa notícia.
“A rolinha-do-planalto é prolífera quando o assunto é fazer ninhos e botar ovos. Ela pode fazer até três posturas de ovos durante a temporada reprodutiva, que acontece durante a primavera e o verão”, explica.
Isso significa, portanto, que os especialistas poderiam colher ovos logo no início desse período de reprodução sem prejudicar o futuro da espécie na natureza, já que a fêmea botaria outra unidade na sequência, sem prejuízos.
“A gente também percebeu que a predação dos ovos era muito alta”, acrescenta o biólogo.
Outras aves maiores costumam entrar nos arbustos onde a rolinha-do-planalto esconde o ninho para roubar os ovos e usá-los como alimentos.
Ao retirar o primeiro ovo, portanto, os cientistas evitariam o “desperdício” de um material tão precioso.
“Vale ressaltar que temos todas as licenças ambientais para realizar esse trabalho e, antes de iniciar o projeto, fizemos um workshop com 20 instituições e quase 30 especialistas do mundo todo”, pondera Develey.
“Foi nessa reunião que planejamos todas as ações de acordo com as evidências científicas e as experiências prévias”, completa.
O nascimento
Todo o planejamento de quase oito anos foi colocado em prática na última temporada reprodutiva, entre o final de 2022 e o início de 2023.
Os cientistas coletaram dois ovos da rolinha-do-planalto na natureza. Eles foram colocados numa incubadora artificial e tiveram todos os parâmetros monitorados de perto.
O processo de desenvolvimento dos embriões foi marcado por alguns sustos.
“Certo dia, aconteceu uma queda de luz e não podíamos ficar sem energia. Tivemos que comprar um gerador para garantir o funcionamento dos aparelhos”, relata Develey.
“Passamos momentos de muita tensão, pois tínhamos que cuidar de dois ovos de uma das espécies mais raras do mundo”, constata ele.
Felizmente, deu tudo certo: os dois filhotes nasceram nos dias 21 e 22 de fevereiro, sob o olhar atento e um tanto apreensivo da equipe de especialistas.
Nos primeiros dias, eles foram alimentados com papinhas entre às 6 horas da manhã e às 18h da tarde.
Ambos se desenvolveram bem e estavam prontos para alçar um voo precoce — e inédito.
A viagem
“Nós, da Save Brasil, conhecemos muito sobre a conservação das aves na natureza, mas não temos expertise sobre o manejo e o cuidado delas em cativeiro”, admite Develey.
“Foi daí que surgiu a parceria com o Parque das Aves.”
Localizada em Foz do Iguaçu, no Paraná, a instituição tem como foco a conservação das aves da Mata Atlântica e aceitou a missão de abrigar os filhotes da rolinha-do-planalto.
Tinha início, assim, a terceira etapa dessa missão: o transporte das aves por 1,5 mil km.
“Nós planejamos praticamente uma operação de guerra para trazer essas aves para cá”, contextualiza a veterinária Paloma Bosso, diretora técnica do Parque das Aves.
No dia 23 de março, a caixinha com os dois filhotes foi transportada de carro por 160 km até a cidade de Montes Claros, onde fica o aeroporto mais próximo de Botumirim.
Ali, elas foram embarcadas num jatinho particular da Azul — a companhia aérea fez o trajeto aéreo sem custos para a Save Brasil ou o Parque das Aves.
A aeronave saiu de Minas Gerais às 9h30 da manhã e pousou em terras paranaenses às 13h15.
Bosso, que acompanhou as rolinhas-do-planalto durante o voo, explica que tudo correu bem. “Ficamos preocupados com a altitude e a temperatura, mas não tivemos intercorrências”, diz.
Após o pouso, elas fizeram mais uma rápida viagem de carro até entrar no parque.
“Quando elas chegaram, uma coisa que me chamou a atenção foi como elas ficam juntinhas, grudadas uma na outra. E elas continuam muito próximas”, observa Develey.
A adaptação
Desde então, a dupla é monitorada numa habitação provisória o tempo todo por uma equipe de veterinários, biólogos e outros profissionais.
Aos poucos, a alimentação delas foi modificada da papinha para as sementes que a espécie tanto aprecia.
“Elas estão super independentes, se alimentam, tomam banho de sol e fazem todas as atividades habituais das rolinhas”, destaca Bosso.
Agora, os responsáveis pelo Parque das Aves estão finalizando o viveiro onde os filhotes — que acabam de completar dois meses de vida — vão viver de forma definitiva.
E são muitos os detalhes envolvidos na construção desse local. “Uma das coisas que aprendemos nos workshops com especialistas é que muitas rolinhas morrem em cativeiro ao se chocarem com as telas dos viveiros. Para evitar isso, foi instalado um tecido maleável e suave, que evita esse tipo de acidente”, detalha a médica veterinária.
Por fora, o viveiro também conta com outra tela mais rígida para evitar a entrada de espécies predadoras.
Ao redor da moradia das rolinhas-do-planalto, foi instalado um fosso com água, para impedir a entrada de formigas no recinto.
Até o chão conta com um aquecimento especial, para imitar o clima da região de onde elas vieram.
“O teto que instalamos é retrátil, para permitir que as aves tomem sol e chuva. Também trouxemos o terreno arenoso do local e as plantas típicas do habitat delas”, acrescenta ela.
O futuro
Mas por que foi necessário criar um projeto desse tamanho para manter a rolinha-do-planalto em cativeiro?
Develey explica que, quando o número de indivíduos de uma espécie está muito baixo, preservar o local em que ela habita não basta.
“No último censo, só observamos 15 rolinhas-do-planalto na natureza. Nesse caso, apenas manter o habitat não é suficiente. Precisamos manejar esse problema com o auxílio da biologia reprodutiva”, diz.
A proposta dos especialistas, então, é criar uma espécie de reserva dessa ave em cativeiro. Os dois filhotes que acabaram de chegar em Foz do Iguaçu são os primeiros — e a ideia é mandar outros na próxima temporada de primavera/verão.
“Planejamos retirar mais ovos no início da postura, sem prejudicar as aves na natureza”, pontua Bosso.
Com isso, os pesquisadores esperam no futuro conseguir que esses indivíduos gerem descendentes no próprio viveiro do Parque das Aves.
Isso permitirá que, um dia, após muitos anos de trabalho, as rolinhas-do-planalto criadas em cativeiro sejam reintroduzidas de novo na natureza.
Para Develey, essa ave rara tem todas as qualidades para virar uma bandeira em prol da conservação do Cerrado.
“Metade desse bioma já foi perdido, o que ajuda a explicar a quase extinção da rolinha-do-planalto”, lamenta.
“Essa espécie é rara justamente porque boa parte do ambiente que ela habita não existe mais e foi transformado em terras agrícolas”, complementa.
Já Bosso destaca que toda a história dessa espécie representa um fio de esperança.
“A rolinha-do-planalto pode inspirar as pessoas a entenderem que nem tudo está perdido e é possível fazer alguma coisa em prol do meio ambiente e de uma relação mais harmônica com os animais e a natureza.”
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