- Author, Mariana Alvim
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
- Twitter, @marianaalvim
Ao encontrar o corpo da irmã mais nova que tinha acabado de se suicidar, em 2012, Késia Mesquita conta que saiu para a rua gritando: “Meu Deus, para onde ela foi?!”
Afinal, não é incomum que evangélicos como ela ouçam que quem tira a própria vida cometeu um pecado e vai para o inferno.
A ideia de que tirar a própria vida é um pecado segue vigente entre fiéis, pastores e lideranças evangélicas, embora grandes igrejas estejam adotando uma postura mais empática com pessoas afetadas pelo suicídio, segundo especialistas.
Késia Mesquita, hoje com 39 anos, cresceu em Teresina, no Piauí, frequentando com a família a Assembleia de Deus.
Após a morte da irmã Débora, a vida de Késia mudou de direção.
Depois da perda e de um doloroso luto, ela fundou em homenagem à irmã um centro dedicado à prevenção do suicídio e aos cuidados com pessoas que perderam alguém que se matou, a chamada posvenção.
Formada em letras antes da morte da irmã, Késia decidiu depois fazer uma pós-graduação sobre o assunto, escreveu vários livros e passou a viajar pelo Brasil fazendo palestras e pregações sobre saúde mental em igrejas evangélicas.
Uma pregadora ou um pregador é quem espalha a crença evangélica para outras pessoas, mas não tem a função e as obrigações de um pastor.
Embora já veja mudanças entre os pastores e igrejas, ela afirma que ainda é uma minoria que está preocupada em quebrar o tabu religioso em relação ao suicídio.
“É uma porcentagem pequena, mas já conseguimos ver uma luz no fim do túnel”, afima.
“Nos últimos dez anos, tive a oportunidade de falar em muitas igrejas e vi a preocupação que muitos líderes têm em entender do assunto para acolher melhor.”
A trajetória de Késia e o tratamento do suicídio entre os evangélicos são o tema da segunda reportagem da série “Suicídio & Fé”, que aborda o tabu religioso com o ato, com foco nas religiões com mais adeptos no Brasil.
‘Foi a cena mais triste que os meus olhos já viram’
Késia conta que, antes da morte da irmã, não tinha qualquer contato com o assunto da saúde mental.
Débora começou a apresentar “reações muito desproporcionais e agressivas”, nas palavras da irmã, e a família levou a caçula para um psiquiatra — que, em 2011, diagnosticou o transtorno bipolar e alertou para um alto risco de suicídio.
Débora não escondia que pensava em se matar.
“Ao contrário de algumas pessoas que são pegas de surpresa, ela verbalizava, porque, junto com transtorno, havia a questão da personalidade mesmo, que era muito forte. Ela sempre foi muito sincera”, lembra Késia.
A palestrante diz que a irmã teve vários surtos que mobilizavam a família, incluindo um que levou à internação em um hospital em janeiro de 2012.
Késia enumera então alguns “gatilhos” para morte de Débora aos 24 anos, em julho de 2012.
Segundo ela, a caçula decidiu interromper o tratamento psiquiátrico e enfrentava problemas no namoro.
Em um surto, a família teve dificuldades de achar um psiquiatra plantonista nas redes pública e privada.
“Ela saiu de casa em um táxi, e deduzimos que ela tinha ido para casa onde tinha planejado morar com o futuro marido.”
Késia conta que previu a tragédia que poderia acontecer e foi atrás da irmã.
“Por dez minutos, já tinha sido tarde demais”, diz.
“Fui eu que encontrei o corpo dela, mais uns dois primos viram. Eu não deixei meus pais verem. Foi a cena mais triste que os meus olhos já viram”, conta, afirmando que as duas eram muito próximas.
‘Nunca deixei de crer em Deus’
A partir daí, o tabu com o suicídio começou a aparecer — assim como o acolhimento.
“Experimentei de tudo. Até no momento do velório mesmo, muitas pessoas nos abraçaram, tentaram nos confortar de alguma maneira”, conta.
“Mas, pelo fato de até então, pelo menos no nosso meio, nunca ter ocorrido um suicídio, eu sentia que as pessoas não sabiam muito bem o que falar.”
Késia lembra que, durante o culto fúnebre, um pastor fez uma fala indelicada.
“Ele praticamente disse que o filho havia passado por situações emocionais graves, mas que eles [familiares] haviam orado. Então, deu a entender que não tínhamos feito nossa parte como pessoas que creem Deus.”
Késia diz que sentiu muita raiva naquele momento e pediu que tirassem o microfone das mãos do pastor.
Hoje, ela consegue ver com “uma certa compaixão e misericórdia” a situação, por entender que o pastor não estava preparado para aquilo.
“As pessoas não foram ensinadas a lidar com esse tipo de morte. As pessoas, na verdade, não são preparadas nem para lidar com a própria morte”, aponta.
Mas Késia diz não se arrepender de ter tirado o microfone do pastor, “porque a ignorância não pode dar liberdade para que as pessoas sejam cruéis”.
Ela relata ter ouvido de pessoas próximas falas que também a incomodaram.
“Muitas pessoas ligaram para mim e disseram que ela ia para o inferno. Assim, na lata”.
Esse tipo de fala é comum também fora das igrejas evangélicas, diz a pregadora, que por seu trabalho já participou de velórios de diferentes religiões.
Késia diz ter percebido, nessas ocasiões, que outras religiões tratam do suicida como alguém “condenado” na vida após a morte.
“Foi aí que a minha ficha começou a cair de que essa incompreensão do tema vem realmente arraigada numa construção histórica que, de uma certa forma, atingiu todas as religiões”, diz a pregadora.
“Há pessoas que realmente são massacradas com essa falta de acolhimento ou com frases colocadas de uma forma inapropriada [no contexto religioso]”, afirma.
“Isso inclusive pode levar as pessoas que ficam a um profundo adoecimento mental tanto pela sensação de culpa quanto pela sensação de que perdeu a esperança de rever aquela pessoa [após a morte].”
Sobre o destino de sua irmã após a morte, Késia diz que ainda “não tem essa resposta”, mas isso não a “inquieta mais”.
“Por que me tranquilizo? Porque o assunto ‘salvação’ é exclusivo de Deus.”
Ela responde que tampouco teve a fé abalada por conta do suicídio.
“Não, não mesmo. Foram mais questões teológicas de entender: será que toda pessoa que cometeu o suicídio está condenada?”
A palestrante afirma que, apesar de “não saber como”, sua fé “se fortaleceu” após o suicídio da irmã.
Mas, durante o luto, Késia teve depressão.
“Nunca deixei de crer em Deus, mas depois que eu encontrei o corpo da minha irmã, eu não consegui mais dormir”, relata.
Ela credita seu adoecimento mental à falta do sono: “Não foi a falta de fé”.
“Precisei passar por toda essa situação para entender que sim, uma pessoa que crê em Deus, que tem fé, que está alimentando a sua vida espiritual, fazendo bem, ela pode adoecer [mentalmente], como adoece de qualquer outra enfermidade”, diz Késia.
Ela afirma que buscou forças para se reerguer principalmente por conta da mãe, que já havia perdido uma filha, e aceitou se tratar.
Em 2013, ela fundou o Centro Débora Mesquita, que atuou até 2020 na divulgação de informações para prevenção ao suicídio e no atendimento à população com psicólogas voluntárias e grupo de apoio a enlutados.
Uma igreja da Assembleia de Deus que Késia frequentava cedeu algumas salas para esse tipo de atendimento.
Mas, com a pandemia, as atividades foram interrompidas, e Késia fundou com o marido, Fernando Gutman, o projeto Espiritualmente Saudável, que promove palestras e cursos sobre a prevenção do suicídio no meio religioso.
O casal assina junto também o livro Não é falta de fé: prevenção e posvenção do suicídio no contexto religioso, lançado em 2020.
Ela diz terem escolhido o título para atingir um público que muitas vezes deixa de buscar ajuda porque tem medo de ser julgado “como uma pessoa que não tem fé”, explica Késia, que também é cantora.
“A vida é um dom de Deus, e ninguém tem direito de tirar a própria vida, mas também compreendemos hoje que o adoecimento mental pode tirar uma pessoa da sua racionalidade”, diz.
“Mas, quando a gente antecipa a morte, aborta muitos sonhos, muitas experiências. A gente deixa de sentir a dor, mas a gente também abre mão do amor”, afirma.
“Mas eu não estou aqui de forma alguma julgando quem fez isso, porque alguns no momento do impulso não tiveram como escapar.”
A BBC News Brasil acompanhou um culto de que Késia participou na Igreja Batista da Lagoinha de Campinas.
Era o Setembro Amarelo de 2023, mês da campanha de prevenção ao suicídio criada por várias organizações brasileiras em 2015. A pregadora fez uma sequência de cultos e palestras na capital e no interior paulista.
A viagem a São Paulo foi emendada com uma anterior, ao Rio, onde ela e o marido lançaram Caminhos na Tormenta: a Graça de Deus Manifestada na Saúde Mental.
Os pais dela acompanham frequentemente Késia e Fernando em viagens pelo Brasil. O grupo brinca entre si lembrando de histórias que aconteceram no caminho.
Ao falar da morte de Débora, a família mostra serenidade.
No culto, Késia fala sobre saúde mental, canta e fecha os olhos ao se emocionar. Fernando fala de sentimentos e de cuidados de uma perspectiva masculina.
Késia, também bastante ativa nas redes sociais, afirma que a morte da irmã proporcionou novas atividades em sua vida, como palestras, livros e viagens, mas que essa percepção é agridoce.
“Para qualquer lugar que eu vá, eu sempre vou receber tudo com muito amor, com muita gratidão e até mesmo com felicidade — mas nunca com vaidade, nunca com orgulho, porque eu sei o que me custou.”
A posição de grandes igrejas evangélicas sobre o suicídio
Segundo o Censo 2010, as igrejas evangélicas formam o segundo segmento religioso com mais adeptos no Brasil — cerca de 42,2 milhões de pessoas, 22,2% do total da população —, atrás apenas da Igreja Católica Apostólica Romana (com 123 milhões de fiéis, 64,6% da população).
Os evangélicos foram o grupo que mais cresceu do Censo 2000 ao de 2010, passando de 15,4% para 22,2% da população.
São muitas as divisões internas do mundo evangélico, então a BBC News Brasil buscou saber como as três denominações com mais adeptos tratam a questão do suicídio: a Assembleia de Deus (12,3 milhões de adeptos), as igrejas batistas (3,7 milhões) e a Congregação Cristã no Brasil (2,2 milhões).
Mas os especialistas entrevistados pela BBC News Brasil afirmaram que, não só para essas três denominações, a interpretação geral das igrejas evangélicas é que o suicídio é um pecado.
Assim como no catolicismo, uma das principais bases para esse entendimento é um dos Dez Mandamentos da Bíblia: “Não matarás”.
O cientista social e pastor batista Clemir Fernandes, pesquisador do Instituto de Estudos da Religião (Iser), lembra também de Judas, o traidor de Jesus — que, segundo os textos bíblicos, se matou.
“Em tese, atentar contra sua vida ou de quem quer que seja de fato é pecado. É uma quebra de um princípio da relação saudável com Deus”, aponta Fernandes, doutor em ciências sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
“A compreensão na tradição evangélica e batista é que a vida pertence a Deus: ele deu e só ele pode tirar.”
Falando especificamente das igrejas batistas, Fernandes afirma não ter notícias de pastores que se recusem a fazer cultos funerários para quem se suicida, como há relatos outras denominações.
“Quando a pessoa comete suicídio, não há qualquer tipo de discriminação nas igrejas para celebrar o culto de gratidão pela vida da pessoa”, afirma o pesquisador.
Fernandes explica que, segundo a crença evangélica, os ritos funerários têm um papel de conforto para quem ficou — e não a função de contribuir, com orações, por exemplo, para a salvação da alma de um falecido.
“Uma pessoa para ser salva, na tradição batista e do mundo protestante de maneira geral, é uma relação entre ela e Deus mediada por Jesus e só, não passa pelo sacerdote. Não passa por ninguém a não ser ela.”
Por isso mesmo, o pesquisador explica que a questão do destino pós-morte de uma pessoa que tirou a própria vida, na crença evangélica, depende completamente de um juízo divino.
Fernandes lembra que as igrejas batistas têm grande autonomia, sendo independentes para não seguir até mesmo as orientações de convenções a que são filiadas.
As convenções são organizações que reúnem várias igrejas locais. Segundo o pesquisador, elas são órgãos de “cooperação e não de imposição”.
Mesmo assim, ele aponta que não há menção ao suicídio e questões relacionadas ao ato em grandes documentos como a Declaração Doutrinária da Convenção Batista Brasileira (CBB) e os Princípios Batistas.
A CBB, convenção que reúne o maior número de igrejas batistas no país, disse à BBC News Brasil que não se manifestaria sobre o assunto.
Ex-pastor da Assembleia de Deus, psicólogo e mestre em ciência da religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Jimmy Pessoa avalia que, na interpretação desta denominação, o suicídio é um pecado.
“Eles entendem que a pessoa que se suicida não tem salvação. Isso é muito claro, só não se fala isso. Mas eles acreditam”, aponta Pessoa, que é doutorando e, no mestrado, pesquisou sobre saúde mental de pastores da Assembleia de Deus.
“Todas as igrejas evangélicas cristãs têm essa interpretação. Não existe nenhuma igreja cristã que diz assim: suicídio não é pecado.”
A única exceção poderia acontecer se a “pessoa nos seus últimos momentos antes da morte tenha se arrependido e pedido perdão”.
O pesquisador afirma não haver qualquer documento da igreja acerca do suicídio e diz que o assunto é evitado publicamente por lideranças.
“Em questão de costumes, hoje há um cuidado muito maior quando vai se falar sobre isso, porque eles sabem que a mão da Justiça pesa”, diz Pessoa, referindo-se a processos judiciais que podem surgir como consequência de falas públicas de pastores.
Entretanto, o pesquisador afirma que os pastores têm autonomia para decidir sobre a realização de cultos fúnebres para suicidas — e diz já ter sabido de casos em que estes não foram realizados, o mais recente deles em 2019.
“É uma questão que fica a cargo e critério do pastor. O pastor não vai ser penalizado se fizer o culto fúnebre de alguém que se suicidou ou não.”
À semelhança das batistas, o pesquisador diz que, na Assembleia de Deus, os cultos fúnebres não são voltados à pessoa que morreu, mas a quem fica.
“Ao morrer, aquilo que vai acontecer com a pessoa não tem mais relação nenhuma com o que vai acontecer aqui na Terra.”
Pessoa, que foi pastor por quase 12 anos e diz não frequentar mais qualquer culto religioso, avalia como psicólogo ser “muito problemática” a doutrina que condena o suicídio.
“Eles deveriam buscar se inteirar mais do assunto relacionado à saúde mental para aprender diferenciar o que é de fato espiritual do que é relacionado à saúde emocional”, defende, para referir-se então à morte de Judas.
“Esse exemplo bíblico não foi analisado, não teve a catalogação sobre o sofrimento daquela pessoa, uma análise, uma descrição sintomática. A gente só se baseia em algo que está escrito em um texto de aproximadamente 2 mil anos.”
A reportagem buscou por telefone, e-mail e redes sociais duas grandes convenções da Assembleia de Deus, a Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil (CGADB) e a Convenção Nacional das Assembleias de Deus no Brasil (Conamad), mas não teve retorno.
Congregação Cristã no Brasil
A terceira denominação evangélica com mais adeptos no Brasil é a Congregação Cristã no Brasil (CCB).
Em grupos de enlutados pelo suicídio nas redes sociais, algumas pessoas comentam que essa igreja tem como regra não realizar funerais para pessoas que se suicidaram.
A informação foi confirmada pelo pesquisador Públio Azevedo, que estudou essa igreja no doutorado em ciências da religião pela PUC-SP, e pelo youtuber Josafá Agra, que diz ter frequentado a CCB por anos, até aproximadamente 2018, e tem hoje um canal com denúncias contra ela.
Questionada sobre sua conduta em relação ao funeral de suicidas e à saúde mental, a congregação preferiu não se manifestar.
Públio Azevedo explica que ser muito fechada é uma das principais características da CBB — embora a pandemia tenha levado a uma flexibilização em alguns pontos, como na recente prática de transmitir cultos na internet.
O pesquisador atribui isso a características pessoais do fundador da CCB, o missionário italiano Louis Francescon (1866-1964), que ele descreve como tímido e de origem simples.
Embora tenha começado a se formar em 1910, a igreja só iniciou sua oficialização nos anos 1920.
“Eles têm por princípio a não comunicação externa. Há um sigilo muito forte no que diz respeito às próprias questões ministeriais e administrativas”, afirma Azevedo, que também é pastor batista.
Outro resultado desse fechamento é o próprio distanciamento de outras igrejas evangélicas e cristãs — e por isso a própria CCB rejeita a sua classificação por pesquisadores como uma igreja pentecostal, aponta Azevedo.
Por tudo isso, é difícil ter acesso à doutrina da congregação em relação a questões como o suicídio.
Mas, em sua pesquisa, Azevedo diz ter obtido alguns “tópicos de ensinamento” — regras compartilhadas internamente entre líderes das igrejas, chamados de anciãos.
Em seu site, a CCB disponibiliza tópicos somente a partir de 2021. Mas é comum encontrar compilados na internet, reunidos por membros ou dissidentes.
Segundo os entrevistados, os tópicos se acumulam, e não são revogados — por isso, a não ser que tenha sido publicado algum tópico explícito anulando um ensinamento antigo, tópicos de décadas atrás seguem vigentes.
Públio Azevedo afirma que conseguiu reunir tópicos a partir de alguns documentos e contatos com membros da igreja.
Sobre o suicídio, um tópico de 1964 obtido pelo pesquisador com orientações sobre serviços funerais afirma: “Quanto aos suicidas não tem parte no Reino de Deus; não se faz serviço algum. Se os familiares são crentes, pode-se orar por eles depois que o féretro (caixão) saiu, para conforto de seus corações”.
Outro, de 1969, diz: “Compreenda-se que para suicidas não se faz serviço de funeral, mesmo que tenha sido orado por ele antes de morrer.”
A BBC News Brasil encontrou em um site que divulga a crença e materiais da CCB um tópico mais recente, de 2009, que reafirmaria o veto a funerais de suicidas.
A reportagem tentou contactar os responsáveis pela página por e-mail, mas não houve retorno. Portanto, não foi possível confirmar a veracidade desse tópico mais recente.
“Dentro dos tópicos, fica muito claro que a Congregação entende que todo e qualquer suicida cometeu um pecado que não tem perdão. A danação eterna já está determinada e não se deve prestar serviços fúnebres”, aponta Azevedo.
Josafá Agra aponta que o suicídio e os chamados pecados sexuais — como sexo antes do casamento e adultério — têm a mesma gravidade para a CCB.
“Não deve se fazer velório ou funeral para quem se suicidou porque eles acreditam que a pessoa perdeu a salvação”, diz Agra.
“É como se a pessoa fosse manchada, como se fosse um grande um pecador. Então ele não merece ter o funeral, porque o funeral na Congregação é uma espécie de último selo de qualidade que a pessoa recebe para poder entrar no céu.”
Religião: entre papel protetor e fator de risco
Para Késia Mesquita, mais líderes de igrejas evangélicas estão sentindo necessidade de falar sobre o assunto porque casos de suicídio chegaram “tanto aos espaços religiosos quanto nas famílias deles”.
“Eles sabem que não conseguem lidar com essa questão sozinhos”, diz Késia, apontando que os pastores não têm preparação técnica para lidar com questões psicológicas e psiquiátricas.
Os dados indicam que, de fato, mais e mais pessoas estão sendo afetadas pelo suicídio no Brasil.
De acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de suicídios no Brasil tem aumentado desde 2016.
Naquele ano, foram registrados 9.623 casos, enquanto, em 2022, foram 16.262.
Já no quadro mundial, o Brasil tinha em 2019 uma taxa de suicídios de 6,4 mortes para cada 100 mil habitantes — abaixo da média global, de 9 para 100 mil, de acordo com números da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Para a psicóloga Karen Scavacini, fundadora e diretora do Instituto Vita Alere de Prevenção e Posvenção do Suicídio, a situação pode ser ainda mais grave, por conta das subnotificações de suicídios no país.
“Eu não tenho dúvida que tem um aumento real acontecendo, especialmente no período pós pandêmico — de tentativa e de suicídio completo”, aponta Scavacini, doutora em psicologia pela Universidade de São Paulo (USP).
“A pandemia foi uma tempestade perfeita. A gente já estava com aumento de depressão, de ansiedade e de números de suicídios. Vem então a pandemia onde teve os impactos sociais, econômicos, familiares, de uso de substâncias… Foram muitos fatores de risco para o suicídio.”
A psicóloga destaca que, embora entidades como a OMS apontem para o grande papel de condições psiquiátricas nas tentativas e nos suicídios, esse fenômeno é multifatorial: pode envolver desde como uma pessoa usa redes sociais até sua situação financeira.
A religião pode ser um desses fatores.
Scavacini aponta que há muitas evidências de que, em geral, a espiritualidade é um “fator de proteção” que evita que pessoas se matem. Mas pode ter também o papel inverso.
“Em alguns casos, a religião pode ser um fator de risco, especialmente se traz para a pessoa vergonha e exclusão”, diz.
A psicóloga cita como exemplo desde pessoas não aceitas por sua sexualidade ou identidade de gênero àquelas que estão pensando em se matar ou já tentaram.
Uma comunidade religiosa também pode atrapalhar a busca por ajuda profissional, ela aponta.
“Algumas religiões vão falar que depressão é falta de Deus. Não falam com todas as letras — se falassem, talvez fosse até mais fácil de lidar. Fica nas entrelinhas.”
Scavacini lembra também das pessoas que perderam alguém para o suicídio. Para elas, diz, a religião pode trazer “muito mais dor”.
A psicóloga exemplifica frases que os enlutados relatam escutar, como “você não percebeu?”, “por que você não levou mais na igreja?” ou “agora, ele está sofrendo no inferno”.
“Esse tipo de frase é dita no velório”, diz a especialista.
“Colocam na família, que já está passando por essa perda que é absurda, a culpa de ter ocorrido o suicídio.”
Scavacini conta que já lidou com vários casos como esses no consultório.
“A gente trabalha com essas famílias enlutadas que tipo de resposta elas vão dar quando a comunidade religiosa vem com uma fala preconceituosa”, diz.
“Muitas famílias chegam à conclusão de que aquela crença ainda não conseguiu entender exatamente o que é o suicídio.”
“Se uma comunidade religiosa está fazendo mais mal do que bem, a pessoa enlutada tem o direito de repensar sua presença ali e procurar uma outra que faça mais sentido e seja mais acolhedora”, conclui.
Esta reportagem faz parte da série “Suicídio & Fé”, que aborda o tabu religioso com o ato, com foco nas religiões com mais adeptos no Brasil. Leia mais aqui.
*Caso seja ou conheça alguém que apresente sinais de alerta relacionados ao suicídio, confira alguns locais para pedir ajuda:
– Para jovens de 13 a 24 anos, a Unicef oferece também o chat Pode Falar;
– Em casos de emergência, outra recomendação de especialistas é ligar para os Bombeiros (telefone 193) ou para a Polícia Militar (telefone 190);
– Outra opção é ligar para o SAMU, pelo telefone 192;
– Na rede pública local, é possível buscar ajuda também nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), em Unidades Básicas de Saúde (UBS) e Unidades de Pronto Atendimento (UPA) 24h;
– Confira também o Mapa da Saúde Mental, que ajuda a encontrar atendimento em saúde mental gratuito em todo o Brasil.
Fonte: BBC
Você precisa fazer login para comentar.