Ana Morales andava pelos arbustos, atenta aos sinais captados por um receptor de rádio.
O aparelho havia captado um sinal de um transmissor que ela e seus colegas haviam acoplado a um tordo de Swainson (ou sabiá-de-óculos, como é chamado no Brasil) – um pequeno pássaro manchado de marrom e branco nativo do continente americano.
O mesmo sinal havia sido captado pelo receptor portátil de Morales poucos dias antes, vindo exatamente do mesmo arbusto em um parque na periferia de Montreal, no Canadá.
Isso era preocupante. Parecia muito improvável que o transmissor permanecesse conectado a uma ave viva. Era mais fácil que ele tivesse caído e estivesse pendurado em um ramo.
Para ter certeza, Morales, que é estudante de graduação da Universidade McGill, no Canadá, agitou suavemente o arbusto carregado de frutos – e um conjunto de penas esvoaçantes entre os ramos chamou sua atenção.
Para sua surpresa, a ave, viva e muito saudável, estava pulando entre os arbustos e protestando por ter sido molestada. O pequeno pássaro havia permanecido no local por mais tempo que ela esperava.
Os sabiás-de-óculos migram do norte do continente para a América Central e o norte da América do Sul todos os outonos. Mas alguns fazem um “pit stop” em cidades como Montreal.
Para um estudo que foi publicado em janeiro de 2022, Morales e seus colegas haviam pesquisado como os sabiás-de-óculos conciliam a necessidade de migrar rapidamente – para maximizar os benefícios da viagem – e a busca de reabastecimento, parando em lugares como Montreal.
Muitas aves migratórias visitam cidades em todo o mundo em suas extraordinárias viagens, que muitas vezes cobrem milhares de quilômetros. Nem sempre é evidente por que elas visitam locais urbanos. Alguns desses pássaros parecem ser atraídos pelas luzes.
Outros, como o sabiá-de-óculos no seu arbusto cheio de frutos, parecem apreciar a oferta de alimento. Mas as cidades nem sempre recebem bem seus visitantes.
A mortalidade, infelizmente, é assustadora. Alguns pássaros migratórios, por exemplo, são mortos por gatos domésticos, enquanto outros colidem com edifícios.
Milhares de aves morrem todos os anos somente em Nova York, nos Estados Unidos, batendo contra a luz brilhante das janelas dos arranha-céus, um problema muito conhecido nas megacidades. Mais recentemente, um bando de melros foi filmado caindo do céu sobre uma rua na cidade de Chihuahua, no noroeste do México. Muitos deles morreram.
E, mesmo assim, os cientistas estão descobrindo que as cidades, embora sejam perigosas, às vezes podem ajudar as espécies migratórias. Como podemos fazer para que as cidades funcionem mais como pousadas para essas aves viajantes e não como armadilhas para a morte?
Durante seu estudo, Morales e seus colegas capturaram e acoplaram transmissores de rádio a cerca de 80 pássaros. Eles concluíram que os sabiás-de-óculos fazem paradas surpreendentemente longas em Montreal, onde ocorre a muda de muitos desses pássaros – o processo em que as aves perdem algumas de suas penas, que crescem novamente. Isso os ajuda a preparar-se para a longa migração. É como colocar um novo jogo de pneus no carro.
“É surpreendente que essa pequena área verde possa abrigar um pássaro por 40 dias”, segundo Morales, maravilhada com a satisfação demonstrada pelos sabiás. As aves talvez se mudem para esse espaço verde urbano exatamente por ser rico em recursos como frutos e água.
Qualquer ave que pouse em um parque urbano poderá encontrar essas recompensas, mas o que traz os pássaros para uma metrópole agitada como aquela? Poderá, em grande parte, ser algo relacionado com a luz, segundo Barbara Frei, colega de Morales no departamento do governo canadense responsável pelo meio ambiente e mudanças climáticas, chamado Environment and Climate Change Canada.
Não se sabe exatamente por que os pássaros são atraídos pelas luzes artificiais à noite, mas existem amplas evidências a respeito. Uma possibilidade, segundo Frei, é que as aves – que usam as luzes das estrelas e outros fenômenos para navegar – sejam naturalmente atraídas pelos pontos de luz.
Estudos centenários
Mais de 100 anos atrás, o anatomista e ornitólogo irlandês Charles Patten foi trabalhar em um farol no litoral da Irlanda, onde observou esse fenômeno ao vivo. Segundo seus relatos, revoadas alucinantes de pássaros migratórios voavam em direção ao farol e, infelizmente, batiam em suas janelas.
Muitas dessas aves morriam, o que permitiu que Patten as recolhesse e estudasse. Mas, naquela época, as fontes de luz artificial muito brilhante eram pouco comuns, enquanto hoje a luz elétrica é visível à noite em praticamente todos os lugares.
Muitos milhões, talvez até bilhões, de aves migratórias morrem como resultado desse fenômeno todos os anos. Os edifícios mais altos e brilhantes situados ao longo de rotas conhecidas dos voos migratórios são provavelmente os mais mortais. Pesquisas indicam, por exemplo, que o enorme centro de convenções McCormick Place em Chicago, nos Estados Unidos, causou a morte de até 11.567 pássaros entre 2000 e 2020.
“Muitas das luzes realmente não são necessárias”, afirma Frank La Sorte, da Universidade Cornell, nos Estados Unidos, ao referir-se à iluminação urbana em geral. “É um exagero.”
Desligar mais luzes à noite durante a migração das aves poderá salvar a vida de milhares de pássaros, segundo ele. Um estudo publicado em 2021 estimou que, se a metade das luzes de McCormick Place for desligada na primavera e no outono, a mortalidade das aves poderá ser reduzida em cerca de 60%.
A atração das aves migratórias pelas luzes urbanas provavelmente não é exclusiva das cidades grandes. Simon Gillings, da organização British Trust for Ornithology, vive em Cambridge, no Reino Unido – uma cidade com apenas 130 mil habitantes. Seu edifício mais alto, a torre da biblioteca da Universidade de Cambridge, tem menos de 50 metros de altura. “É muito diferente de Manhattan”, admite ele.
Gillings queria descobrir se mesmo uma pequena cidade como Cambridge seria um farol emissor de luz significativo, atraindo aves migratórias à noite. Ele e diversos voluntários instalaram gravadores de som nos seus jardins durante o outono de 2019 e juntos gravaram milhares de horas de áudio noturno.
“Qualquer pessoa que comece a fazer isso perceberá rapidamente que existe uma enorme quantidade de aves se movimentando”, afirma Gillings, maravilhado com a variedade de cantos de pássaros capturados nas gravações.
Para selecionar os dados, ele usou um sistema de inteligência artificial que contava automaticamente nas gravações a quantidade de cantos de três espécies migratórias: o sabiá-ruivo, o tordo-comum e o melro.
Revelou-se uma correlação clara. O maior número de cantos dessas espécies foi gravado em jardins localizados em áreas densamente povoadas, iluminadas com luzes brilhantes. Gillings ressalta que é possível que os pássaros voando sobre os jardins no estudo simplesmente fizessem mais barulho ao voar perto de luzes brilhantes. Mas é pelo menos alguma evidência de que existe maior atividade dos pássaros migratórios em locais com mais iluminação.
Gillings afirma que nossa primeira medida deveria ser reduzir as luzes emitidas em áreas urbanas, para evitar atrair desnecessariamente espécies como o sabiá-ruivo e o tordo-comum para as cidades durante a sua migração.
Ele sugere que as pessoas poderiam fazer com que as luzes de segurança sejam viradas para baixo, por exemplo, ou que as ciclovias sejam iluminadas apenas com luzes mais fracas. Outra pesquisa indica que a luz vermelha pode ser menos atrativa para os pássaros durante a migração.
Dentre os muitos pássaros pequenos que migram por enormes distâncias todos os anos no continente americano, encontram-se algumas espécies de mariquitas, como a mariquita-de-asa-amarela e a mariquita-de-coroa-ruiva. Algumas aves dessas espécies cruzam toda a América do Norte, até chegarem ao México.
Quando o pesquisador Jorge Schondube e o estudante de doutorado Rodrigo Pacheco-Muñoz, que estudam ecologia na Universidade Nacional Autônoma do México, começaram a marcar e registrar as mariquitas em diversos locais na cidade mexicana de Morélia e em suas proximidades, eles rapidamente descobriram algo inesperado.
As aves capturadas por eles em áreas verdes na cidade eram tão saudáveis, em termos de massa do corpo, condições das penas e quantidade de parasitas, quanto os pássaros da mesma espécie capturados em locais fora da área urbana, incluindo em um parque nacional próximo a Morélia.
Schondube afirma que ficou surpreso com o sucesso das mariquitas nas áreas urbanizadas. “Por muito tempo, pensei que esses pássaros estavam indo morrer”. Mas agora ficou comprovado que isso não é verdade.
Ele também indica que, 10 anos atrás, não havia registros da mariquita-de-coroa-ruiva na área urbana de Morélia. Mas aparentemente o pássaro começou a se abrigar nas árvores adultas e úmidas das áreas verdes urbanas nos últimos tempos. Árvores bem desenvolvidas podem abrigar centenas de espécies de insetos e, por isso, conseguem abrigar as mariquitas, que são insetívoras.
Como as aves parecem tão satisfeitas entre as árvores das cidades, os dois pesquisadores argumentam que fornecer cobertura arbórea adequada poderá ajudar a acomodar aves migratórias que decidam ingressar nas áreas urbanas. Eles indicam que muito dificilmente encontram as mariquitas em espaços urbanos com menos verde, o que também pode indicar a importância dos parques como abrigo.
Mas os abrigos também podem tornar-se armadilhas, adverte Frances Bonier, da Universidade Queen’s em Ontário, no Canadá. Um espaço verde urbano poderá atrair os pássaros, mas não fornecer realmente todos os recursos de que eles precisam quando estão procriando, por exemplo. Isso é conhecido como armadilha ecológica.
Poluição luminosa
Simon Gillings acrescenta que, embora a oferta de árvores e telhados verdes em uma cidade seja benéfica para algumas aves, outras espécies precisam de pântanos ou grandes e densas florestas para prosperar de verdade. E ainda outras dependem de áreas costeiras preservadas e assim por diante.
Seria um erro pensar que podemos compensar a destruição desses habitats tornando as cidades um pouco mais verdes. Afinal, essas espécies específicas que dependem da rica diversidade de habitats do mundo são as que enfrentam maior risco.
Com essa advertência significativa em mente, mantém-se a importância de garantir que as cidades sejam acolhedoras para a vida selvagem, segundo Barbara Frei.
As rotas de migração das aves trazem-nas, por acaso, para perto de muitas cidades em todo o mundo e nossas luzes brilhantes as chamam para entrar. Frei propõe que o planejamento urbano leve isso em consideração.
Os projetistas de novos parques ou zonas residenciais poderão incluir, por exemplo, um pouco de vegetação apropriada para os pássaros e outras espécies.
“Deveríamos planejar para todos em conjunto – para que seja bom para as pessoas, bom para o planeta e bom para a vida selvagem”, afirma ela.
Pacheco-Muñoz concorda. As cidades parecem ser a antítese da natureza, mas não precisam ser assim porque, na verdade, elas já estão cheias de verde. E, como agora ficou claro, elas atraem muitas espécies migratórias.
“Precisamos pensar nas cidades como ecossistemas”, afirma Pacheco-Muñoz. “Se pensarmos assim, seremos os mestres desse ecossistema – e podemos decidir como administrar o local.”
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