Crédito, Fernando Otto/BBC

Legenda da foto, A ideia de um ‘Vale dos Suicidas’ foi popularizada pelo livro ‘Memórias de um suicida’

A reportagem a seguir faz parte da série “Suicídio & Fé”, que aborda o tabu religioso com o ato, com foco nas religiões com mais adeptos no Brasil.

Entre as dezenas de livros espíritas que a tradutora Maria Cecilia Cencini, 63 anos, tem, há um que ela nunca conseguiu ler: Memórias de um Suicida, da médium Yvonne do Amaral Pereira (1900-1984).

O livro relata o que seria o sofrimento após a morte — ou desencarne, para os espíritas — de almas de pessoas que se suicidaram, segundo relatos que a médium teria recebido de espíritos.

A obra traz histórias, por exemplo, de espíritos desencarnados que tiveram que observar, a partir do plano espiritual, o próprio corpo em decomposição, ou testemunhar parentes encarnados em sofrimento por conta da morte.

Cencini, que segue o espiritismo há mais de 15 anos, já havia tentado há algum tempo ler o livro, mas abandonou a leitura por considerá-la muito “forte”.

Entretanto, em 2021, aconteceu algo que a afastou completamente da possibilidade de retomar a leitura: o filho dela se suicidou quando estava prestes a completar 32 anos.

Crédito, Fernando Otto/BBC

Legenda da foto, Maria Cecilia ao lado da última pintura que o filho, que era ilustrador, fez antes de morrer

“É uma obra que com certeza veio elucidar algumas coisas, que eram talvez desconhecidas. Mas é uma literatura bastante forte, bastante impactante. Estudando a doutrina, a gente vê que não funciona bem dessa forma”, aponta Cencini.

“Eu acho que não é esse caminho. Eu acredito muito mais na misericórdia divina”, diz, indicando acreditar que o filho foi perdoado pelo ato.

O suicídio é visto no espiritismo como um ato repreensível — embora se admita algumas atenuantes — desde as obras organizadas pelo fundador da religião, o francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, mais conhecido por seu pseudônimo Allan Kardec (1804-1869)

A história de Maria Cecilia e a forma como os espíritas tratam o suicídio são o tema da terceira reportagem da série “Suicídio & Fé”, que aborda o tabu religioso com o ato, com foco nas religiões com mais adeptos no Brasil.

Igrejas evangélicas veem o suicídio como um pecado, de acordo com especialistas ouvidos na segunda reportagem da série. Há relatos de que é comum, nesse meio, escutar que alguém que se suicidou vai para o inferno.

O número de suicídios no país vem aumentando ano a ano desde 2016, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Apenas em 2022, houve 16.262 mortes.

Um estudo publicado na revista científica The Lancet Regional Health Americas em fevereiro mostrou que a taxa anual de suicídios a cada 100 mil habitantes no Brasil cresceu em média 3,7% entre 2011 e 2022.

As religiões têm, como apontam especialistas, uma forte influência não apenas na forma como as pessoas lidam individualmente com o suicídio, mas também em como as famílias lidam com a perda de quem tirou a própria vida.

O que dizem os textos espíritas

Vários livros importantes de Kardec abordam o suicídio.

Neles, tanto as mensagens relatadas como recebidas dos espíritos quanto as anotações de Kardec indicam que o suicídio contraria as leis divinas e gera algum tipo de punição ao espírito de quem se matou.

Em O Céu e o Inferno, são frequentemente usadas palavras como “castigo” e “pena” para quem se mata.

Um trecho diz ser comum que espíritos de suicidas sintam vermes corroendo o corpo, embora as consequências do ato variem de “duração e intensidade conforme as circunstâncias atenuantes ou agravantes da falta”.

Em outro, é dito que “longa e terrível deve ser a pena dos culpados por se terem voluntariamente refugiado na morte para evitar a luta” — nesse caso, referindo-se especificamente ao caso de suicidas que tenham escolhido essa saída para escapar de forma honrosa de alguma situação.

No Livro dos Espíritos, médiuns fazem uma série de perguntas sobre o ato de se matar.

Os espíritos respondem que o suicídio “voluntário” seria uma “transgressão” do direito de Deus sobre a vida — “voluntário” demarcaria a diferença do “louco que se mata” e “não sabe o que faz”.

Também afirmam que “muito diversas são as consequências do suicídio”.

“Não há penas determinadas e, em todos os casos, correspondem sempre às causas que o produziram. Há, porém, uma consequência a que o suicida não pode escapar: é o desapontamento”, respondem os espíritos, segundo o livro de Kardec.

“Mas, a sorte não é a mesma para todos; depende das circunstâncias.”

Crédito, Félix Lima/BBC

Legenda da foto, Trecho de ‘O livro dos espíritos’ aborda o suicídio

A historiadora e socióloga Celia Arribas, que estudou o espiritismo em seu mestrado e doutorado, resume que, do ponto de vista de Kardec, a escolha pelo suicídio seria uma “triste ilusão” — e isso tem a ver com a perspectiva de duração da vida para a religião.

“O espiritismo traz uma visão de que a vida é praticamente eterna, no sentido de que a gente tem várias existências: o que morre é o corpo, e não a alma”, diz Arribas.

“Não teria muito sentido se pensar em suicídio, porque o espírito continuaria vivo com as suas angústias, suas dores.”

Arribas, que é professora da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), explica que Kardec considerava que sua produção tinha um caráter científico — por isso, embora os livros dele sejam vistos como um “farol”, obras posteriores são bem-vindas.

“Há um princípio proposto pelo Kardec de que o espiritismo precisaria sempre estar ao lado da ciência e dos avanços científicos. Isso abre a possibilidade de uma renovação constante.”

Assim, um livro como Memórias de um suicida pode ganhar a dimensão que tomou, popularizando a ideia de que existe um “Vale dos Suicidas” — descrito na obra como um lugar onde a alma de quem se matou passa por um período de punição e sofrimento.

“O livro tem um cenário bastante excessivo, que olha para os suicidas condenando essas pessoas”, diz Arribas.

“Essa é uma visão que não necessariamente Kardec defendia, mas a gente tem uma certa autonomia do espiritismo no Brasil.”

O livro da médium Yvonne do Amaral Pereira foi lançado em 1956. A obra, publicada pela Federação Espírita Brasileira (FEB), já teve 27 edições em português e foi traduzida para inglês e francês, além de adaptado para radionovelas.

“Não havia então ali, como não haverá jamais, nem paz, nem consolo, nem esperança: tudo em seu âmbito marcado pela desgraça era miséria, assombro, desespero e horror”, diz um trecho do livro que descreve o Vale dos Suicidas.

“Aqui, era a dor que nada consola, a desgraça que nenhum favor ameniza, a tragédia que ideia alguma tranquilizadora vem orvalhar de esperança! Não há céu, não há luz, não há Sol, não há perfume, não há tréguas!”, diz outro trecho.

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Legenda da foto, ‘Memórias de um suicida’ já tem 27 edições publicadas

Após um intenso período de sofrimento, os espíritos de suicidas do livro pouco a pouco — ainda no mundo espiritual — refletem sobre sua decisão e passam por uma espécie de tratamento, com mentores e até uma universidade que os ajudam a se preparar para uma nova encarnação.

O Vale dos Suicidas também foi retratado na TV brasileira na novela A Viagem, exibida primeiro pela Tupi e depois em uma reedição pela Globo, que completa 30 anos esse mês e será reexibida este ano pelo canal Viva.

O personagem Alexandre sofre as consequências de seu suicídio no Vale — um lugar onde se escuta gritos, o fogo arde, moribundos perambulam e o personagem é torturado.

Herança católica no espiritismo

Crédito, Félix Lima/BBC

Legenda da foto, Um trecho no início do livro ‘Memórias de um suicida’ afirma que o Vale dos Suicidas seria um lugar de ‘miséria, assombro, desespero e horror’

Arribas lembra de outro livro posterior a Kardec, Missionários da Luz, do médium Chico Xavier.

“O livro traz o relato de um suicida que também vai descrever que ele vivia num vale de trevas, de aprisionamento, de muita dor”, diz a socióloga.

“Então, a gente tem essas trilhas um pouco pesadas, deterministas, condenatórias [para suicidas], que têm a ver com a tradição católica de pensamento.”

A pesquisadora explica que algumas crenças do catolicismo e do espiritismo têm semelhanças, mas também diferenças. Por exemplo, enquanto o castigo de uma alma é eterno na crença da Igreja Católica, no espiritismo é transitório.

“O céu e o inferno não existem para o espiritismo. A ideia é que são estados mentais para onde os espíritos acabam indo por conta da semelhança vibratória”, explica Arribas.

Sociólogo e um dos diretores da Sociedade Brasileira de Estudos Espíritas (SBEE), Rui Simon Paz diz que ele e colegas da entidade não acatam a crença de que exista um Vale dos Suicidas ou o umbral — também comumente apontado como um lugar transitório de sofrimento para espíritos de suicidas.

Simon Paz aponta que essas crenças têm origem no que chama de “ranço” da cultura católica no Brasil, trazendo ideias de punição e castigo.

Na SBEE, são priorizadas as obras de Kardec e sucessores de uma época próxima, como Camille Flammarion (1842-1925), Léon Denis (1846-1927), Ernesto Bozzano (1862-1943) e Gabriel Delanne (1857-1926) — que, segundo o sociólogo, perpetuaram a leitura de Kardec sobre o suicídio.

Embora as obras de Kardec indicassem algum tipo de punição para os suicidas, Simon Paz diz que é preciso sempre levar em consideração o contexto dos livros.

“Toda obra sofre o curso do tempo”, diz o membro da SBEE. “A comunicação é uma integração de 50% do espírito, 50% do médium. Mas a estética que será registrada é a estética do médium, e essa estética envelhece.”

“Não vemos [o suicídio] como castigo, vemos como um passivo”, explica, falando em nome da entidade.

“Você se ausentou antes do tempo que deveria permanecer aqui, e, ao mesmo tempo, deixou de fazer o seu crescimento. É como se você abandonasse um curso na metade do ano, trancasse matrícula: vai ter que voltar para refazer”, diz, acrescentando que esse passivo pode ser “difícil”, mas tem sempre um “sentido construtivo”.

‘Um ato falho e humano’

Crédito, Fernando Otto/BBC

Legenda da foto, ‘Lembro do meu filho com alegria’, diz Maria Cecilia, que tem pela casa várias fotos do jovem, além de pinturas e desenhos feitos por ele

Ao adentrar no apartamento de Maria Cecilia Cencini, logo percebe-se de certa forma a presença do filho dela ali — em fotos e em muitas pinturas e desenhos que ele, que era ilustrador, fez e estão expostos pela casa.

Também não há uma fala sobre ele que pareça vir sem alguma emoção — às vezes saudade, às vezes carinho, talvez um choro contido que não chega e desaguar e, muitas vezes, sorrisos.

“Eu lembro do meu filho com alegria”, diz a mãe, ao mostrar uma foto dele que diz sempre despertar um sorriso nela.

Diferente de muitas famílias enlutadas pelo suicídio que ela conheceu em grupos de apoio, Maria Cecilia diz que não quis passar a evitar e isolar o quarto do filho onde ela própria encontrou o corpo.

Cerca de um mês após o suicídio, ela doou as roupas e materiais de trabalho dele e passou a usar o espaço como seu escritório. Para ela, que tem mais uma filha, essas atitudes exemplificam sua crença de que já havia sido preparada no plano espiritual para esta morte.

“Dentro da doutrina espírita, a gente já vem para a vida com um roteiro programado. Aquilo que não está definido depende do livre arbítrio. Acho que realmente fui preparada para esse momento da minha vida”, diz a tradutora.

“Transformei o quarto dele no meu escritório. Fiz questão disso, porque o meu filho não se resumia àquilo ali. Eu trouxe a minha força de trabalho aqui para dentro”, conta.

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Ela também deixou ali no cômodo, no cavalete, a última pintura que o filho fez antes de morrer — que mostra uma mulher com os olhos fechados, aparentemente em prece e com um manto.

Na base, ela deixou vários pequenos objetos que a lembram dele, como um cachorrinho de brinquedo que ele gostava e uma foto 3×4 do jovem.

O filho dela tomava antidepressivos, mas Cencini desconfia que ele tivesse um transtorno bipolar que não foi diagnosticado corretamente. A tradutora está cursando uma pós-graduação em Suicidologia para entender o que aconteceu com o filho.

“O estado de saúde dele se agravou com a pandemia: ele ficou mais recluso e tinha medo de sair na rua”, relata a mãe.

Maria Cecilia acredita que o filho agora está passando por um período de aprendizado, guiado por espíritos bondosos que estão ajudando-o a refletir sobre o ato do suicídio e preparando-o para uma futura encarnação.

“Não digo que não haja um período de sofrimento para o espírito quando ele desencarna, porque existe uma confusão”, diz a tradutora, dizendo que espíritos desencarnados de várias formas, não só pelo suicídio, passam por um período de angústia para entender onde estão e o que aconteceu com eles.

“Mas isso é absolutamente normal. É nesse ponto que o espírito é auxiliado [por espíritos benfeitores].”

A tradutora cursou por anos uma formação em espiritismo, que ela prefere definir como uma doutrina de vida em vez de religião.

Dos escritos de Kardec, Cencini foca nos “atenuantes” que podem suavizar as consequências do suicídio para o espírito.

“A bondade de coração dele [do filho] com certeza contribuiu para ele hoje estar bem”, diz a tradutora.

Ela também destaca a diferenciação que Kardec faz entre o suicídio voluntário e a decisão de um “louco”.

“Simplesmente todas as pessoas que tinham qualquer tipo de transtorno mental eram classificadas como louca”, aponta a tradutora, referindo-se à época das obras de Kardec.

“Então, o ‘louco’ é acolhido, é perdoado, porque ele tem um transtorno.”

Para Cencini, o suicídio é um “um ato falho e humano de um espírito que estava com sérios comprometimentos”.

Segundo ela, o espiritismo foi importantíssimo no luto.

“Quem tem fé e entende o propósito das coisas na vida consegue superar as dificuldades e buscar dentro delas o aprendizado”, afirma a tradutora.

“E quando você vibra amor, faz chegar isso até o seu ente querido desencarnado. Ele recebe todos os seus bons pensamentos, todas as suas preces.”

“Aprendi a me dirigir ao meu filho como ‘meu filho amado’. Quando repito isso, sinto que vai direto para ele. Sinto como se saísse do meu coração uma luz de amor que chega até ele”, diz a mãe.

Crédito, Fernando Otto/BBC

Legenda da foto, O suicídio é abordado por vários livros fundamentais do espiritismo

O espiritismo é a terceira religião com mais seguidores no Brasil, atrás do catolicismo e das igrejas evangélicas.

Tem 3,8 milhões de adeptos, cerca de 2% da população segundo o Censo 2010. Houve um aumento em relação ao Censo 2000, quando os espíritas eram 1,3% da população, ou 2,3 milhões de pessoas.

Mas Celia Arribas afirma que o número é na prática maior, porque, na pesquisa demográfica, o participante geralmente só indicava uma religião, e não várias.

Segundo o IBGE, no Censo 2010, os entrevistados até podiam declarar pertencer a várias religiões, mas os funcionários responsáveis por coletar os dados não tinham sido tão bem orientados sobre essa possibilidade quanto em 2022 (cujos resultados sobre religião ainda não foram divulgados).

“As pessoas transitam no centro espírita. Muitas. Há uma forte circulação de livros espíritas, e as pessoas leem sem necessariamente se autodeclararem espíritas”, diz a pesquisadora.

“Tem o que a gente chama de simpatizantes do espiritismo, e aí essa quantidade aumenta absurdamente, não vai ficar só em 2%.”

Bruno*, de 46 anos, é uma das pessoas que está fora desses 2%, mas diz ter uma afinidade com o espiritismo e conhecimento sobre a religião.

Ele cresceu em uma família católica, deixou de seguir essa fé, mas afirma seguir uma “crença cristã”.

Em junho de 2023, o irmão de Bruno se matou, aos 42 anos. Ele enfrentava uma depressão, frustrações profissionais e a perda do pai e da mãe em um curto período de tempo.

Bruno acredita que o irmão não estava seguindo o tratamento para depressão corretamente.

Antes da morte, Bruno já tinha se aproximado do espiritismo com a leitura de livros de Kardec, Chico Xavier e do médium Divaldo Franco — mas nunca foi a um centro espírita.

Foi então que, após a perda, ele buscou na internet qual seria o destino de alguém que se matou segundo o espiritismo.

“Quando ocorreu o problema com meu irmão, fui procurar saber. Eu queria uma explicação”, diz Bruno.

Ele chegou então a um vídeo com milhares de visualizações em que um influenciador espírita fala das possíveis consequências para a alma de um suicida.

Entre elas, a obrigação de conviver por décadas, no plano espiritual, com o próprio corpo em decomposição e, ao reencarnar, sofrer com doenças debilitantes.

“Ele era uma pessoa boa, não fazia mal a ninguém. Um cara totalmente do bem. Conheço pessoas muito piores. Por que ele [meu irmão] sofreria tanto?”, questiona Bruno.

“Acho que se ele parasse para pensar mais meia hora, talvez ele não tomaria aquela atitude”, diz.

“Será que por uma decisão tomada de supetão, a pessoa pode ser condenada a passar por um martírio após a morte?”

Bruno conta que, até hoje, não está “lidando muito bem” com a perda.

“Penso nele todos os dias. Acho que penso em todas as horas. Tenho muita pena dele, né? Queria tanto que ele tivesse conversado comigo…”, lamenta.

Bruno relata frequentemente pedir a Deus que dê algum “sinal” de como seu irmão está.

“Queria sentir que ele tá bem. Como está o espírito dele? Será que está sofrendo? Está arrependido?”, indaga.

Alento e dor

Celia Arribas cita que começaram a surgir nos últimos anos autores e obras espíritas que tratam do suicídio com “um pouco mais de sensibilidade”.

Ela vê isso com bons olhos, porque leituras como a de Memórias de um Suicida intensificaram sua própria dor.

A mãe de Arribas se suicidou quando a socióloga tinha 20 anos. Seu irmão fez o mesmo duas décadas depois.

A pesquisadora procurou o espiritismo no final da vida da mãe para entender melhor o adoecimento mental dela, que tinha transtorno afetivo bipolar.

Hoje, Arribas sê vê mais como estudiosa do que praticante do espiritismo.

Mas a socióloga diz que a religião teve um papel misto no seu luto — em alguns momentos, trouxe alívio e, em outros, dor.

“O espiritismo foi muito reconfortante para tentar entender algum sentido para morte, para dar uma explicação de que a vida continua e para eu não adoecer fisicamente.”

“São princípios que me confortaram e me confortam até hoje.”

Por outro lado, Arribas conta ter abandonado a leitura de Memórias de um Suicida quando a morte da mãe ainda era recente.

“Eu falei: ‘Não, não tem condição’. Mas foi por conta disso que pensei: ‘Bom, será que é só essa visão mesmo?’”, afirma a pesquisadora.

“Aí, fui tentando estudar, entender, e não fiquei só nas explicações espíritas.”

Rosana Amado Gaspar, presidente da União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo (USE-SP) e membro da Federação Espírita Brasileira (FEB), cuja editora publica Memórias de um suicida, não recomenda que a obra seja lida por quem tenha acabado de perder uma pessoa por suicídio.

A editora tem outros livros que retratam o sofrimento de espíritos suicidas, como O martírio dos suicidas e Suicídio e vida após a morte: amargura e remorso de poetas suicidas.

Crédito, Vitor Serrano/BBC

Legenda da foto, ‘As pessoas ficam amedrontadas, mas ele [o livro] está contando a história de um grupo de espíritos que estão naquela região’, diz Rosana Gaspar sobre ‘Memórias de um suicida’

Gaspar destaca que Memórias de um Suicida não retrata um destino único no mundo espiritual — o Vale dos Suicidas — para quem se mata e mostra, no final, o perdão divino para quem tira a própria vida.

“As pessoas ficam amedrontadas, mas o livro está contando a história de um grupo de espíritos que estão naquela região”, diz.

Gaspar ressalta que os livros de Kardec preveem destinos variados para as almas de suicidas.

“A pessoa que está pensando no suicídio, ao ler uma obra dessa [Memórias de um Suicida], fala assim: ‘Esse grupo teve essa experiência ruim. Então, eu não vou ter essa mesma experiência’. Ele faz uma prevenção”, afirma.

“E o Memórias de um Suicida é interessante porque, quando o espírito realmente se arrepende, ele conta com a misericórdia divina.”

Na doutrina espírita, explica Arribas, Deus não é necessariamente uma figura personificada, mas tem papel importante.

“No espiritismo, não há esse Deus com barba branca, esse homem gigante. É uma força, é algo que não tem forma, que seja. Mas é Deus: onipresente, onipotente, onisciente”, esclarece a socióloga.

“A figura de Cristo também é muito central no sentido de uma moral. Tanto que a ideia de caridade se espelha na vivência do Cristo.”

Gaspar afirma que, para o espiritismo, o suicídio é uma “transgressão à lei de Deus”, mas não existe o conceito de pecado.

“Nada no espiritismo é proibido”, diz ela, destacando que o que há são “consequências”.

Gaspar afirma que iniciativas pela prevenção ao suicídio de organizações espíritas normalmente se juntam a “campanhas de valorização da vida” que se colocam contra o aborto e a eutanásia.

Uma dessas iniciativas fez surgir, em 1962, uma das organizações brasileiras mais conhecidas na prevenção ao suicídio: o Centro de Valorização da Vida (CVV).

A entidade, que atende gratuitamente em regime de plantão pessoas que pensam em se matar, nasceu da iniciativa de uma turma da Escola de Aprendizes do Evangelho da Federação Espírita do Estado de São Paulo (Feesp).

Jacques Conchon (1942-2018), fundador do CVV, foi quando jovem o responsável por mobilizar os colegas para a iniciativa.

A ideia foi inspirada no trabalho da organização Samaritans em Londres, comandado pelo sacerdote anglicano Chad Varah.

Assim, no início, a maioria dos primeiros voluntários do CVV era espírita, mas isso foi mudando com o tempo.

Carlos Correia, voluntário do CVV desde 1992 e porta-voz da organização, conta à BBC News Brasil que os voluntários usavam no começo um número de telefone da própria Feesp.

Ele relata também que, por motivos naturais, a iniciativa começou a circular primeiro no meio espírita.

“Claro, o espaço que eles tinham inicialmente para divulgar o trabalho eram os meios de comunicação espíritas, e naturalmente os leitores também eram.”

Entretanto, Correia garante que a doutrina religiosa nunca teve muito espaço no CVV.

“Não havia um lado espiritual, religioso, no sentido da doutrina espírita, mas sim o princípio de ajuda ao próximo”, afirma.

Ele acrescenta que, com o passar do tempo, o vínculo com o espiritismo foi desaparecendo.

“Eles perceberam que tinham que desvincular [da religião] para ampliar o crescimento, para acolher a todos. Isso [o caráter religioso] poderia ser uma barreira, porque as pessoas poderiam pensar que teria uma doutrinação”, explica Correia.

Para a psicóloga Karen Scavacini, doutora pela Universidade de São Paulo (USP), as religiões em geral têm o potencial de ajudar na prevenção do suicídio e nos cuidados com quem perdeu alguém que se matou, a chamada posvenção.

“Quanto mais religiosos falando abertamente sobre suicídio, sobre as questões de saúde mental, e mostrando através da sua fala e de seus atos que essas pessoas precisam ser cuidadas e acolhidas, cada vez mais a religião se torna um fator de proteção”, defende Scavacini, fundadora e diretora do Instituto Vita Alere de Prevenção e Posvenção do Suicídio.

A psicóloga diz que há muitas evidências científicas de que a espiritualidade auxilia a prevenir o suicídio por trazer esperança e sentimento de pertencimento a uma comunidade, dentre outros fatores.

Mas Scavacini afirma que, quando as religiões trazem “vergonha e exclusão” relacionadas ao suicídio, elas se tornam prejudiciais.

O impacto da religião em quem perdeu uma pessoa por suicídio pode ser particularmente “devastador”, diz a psicóloga.

É uma situação que ela diz já ter testemunhado muitas vezes no consultório.

“Os enlutados trazem muitas experiências. A própria fala de que foi ‘Deus que quis’. Que Deus é esse que quer que alguém que se mate? Não faz sentido.”

As famílias compartilham com Scavacini muitas histórias de falas inapropriadas em velórios e cerimônias religiosas.

“São falas que colocam na família, que já está passando por essa perda absurda, a culpa de ter ocorrido esse suicídio.”

Outra fonte de sofrimento é justamente o destino que terão as almas das pessoas que se suicidaram.

“Primeiro, lógico, há um acolhimento, mas depois [o estímulo a] um pensamento mais crítico do que faz sentido para ela. O que pode acalmar o seu coração? O que vai te ajudar nesse processo de luto?”, exemplifica.

“Então muitas famílias chegam à conclusão de que aquela crença ainda não conseguiu entender exatamente o que é o suicídio e que não pode falar que aquela pessoa está em sofrimento.”

No espiritismo, essa pergunta sobre o destino de uma pessoa que se suicidou muitas vezes encontra alívio nas cartas psicografadas — mensagens enviadas por um espírito por meio de um médium.

Scavacini relata ser muito comum pessoas enlutadas pelo suicídio buscarem essas cartas, mesmo quem não é espírita.

“Na maioria das vezes, elas recebem mensagens de que a pessoa está bem. Para o enlutado, é um alívio enorme”, diz a psicóloga.

Ela destaca que, na terapia, não importa tanto o questionamento sobre a veracidade dessas cartas e sim como isso vai ajudar no processo de luto.

Mas ela diz ser preocupante quando há a cobrança de valores muito altos em dinheiro para receber cartas psicografadas.

“Tem locais onde não se cobra nada e tem pessoas que cobram valores absurdos. Aí também é nosso papel olhar e trazer um pouco de reflexão”, diz.

“Como psicóloga, sempre vou tentar entender qual é o papel da espiritualidade, da religiosidade na vida daquela pessoa. Se perceber que tem um valor positivo, isso vai estar dentro do meu tratamento”, conclui.

O caminho que inclui refletir e às vezes superar o que diz uma religião sobre o suicídio, citado pela psicóloga, foi exatamente a trilha pela qual Bruno passou depois da morte do irmão.

“Tá certo que [o suicídio] é uma atitude antinatural. Mas a gente vê que Deus é misericordioso. Jesus na cruz falou para o ladrão: ‘Se se arrependeu de coração, eu te digo hoje, estarás comigo no paraíso'”, diz Bruno.

“Então, essa fala de Jesus é contraditória com essa afirmação do Vale dos Suicidas. Sempre me pauto por Cristo, as ações dele no Evangelho, e me pergunto: ‘Como ele lidaria com esse assunto hoje?'”

*Nome fictício, a pedido do entrevistado

**Esta reportagem faz parte da série “Suicídio & Fé”, que aborda o tabu religioso com o ato, com foco nas religiões com mais adeptos no Brasil. Leia mais aqui.

***Caso seja ou conheça alguém que apresente sinais de alerta relacionados ao suicídio, confira alguns locais para pedir ajuda:

– Para jovens de 13 a 24 anos, a Unicef oferece também o chat Pode Falar;

– Em casos de emergência, outra recomendação de especialistas é ligar para os Bombeiros (telefone 193) ou para a Polícia Militar (telefone 190);

– Outra opção é ligar para o SAMU, pelo telefone 192;

– Na rede pública local, é possível buscar ajuda também nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), em Unidades Básicas de Saúde (UBS) e Unidades de Pronto Atendimento (UPA) 24h;

– Confira também o Mapa da Saúde Mental, que ajuda a encontrar atendimento em saúde mental gratuito em todo o Brasil.