- Mariana Schreiber – @marischreiber
- Da BBC News Brasil em Brasília
Em meio a cobranças por maior representatividade de evangélicos no futuro governo, o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), continua sem uma estratégia clara para se aproximar desses fiéis – segmento que é crescente na população brasileira e, majoritariamente, apoiou o presidente Jair Bolsonaro (PL) na eleição deste ano.
Dentro da equipe de transição, há consciência sobre a necessidade de estabelecer pontes com esse grupo, estimado em ao menos um terço da sociedade e com forte representação no Congresso.
No entanto, até o momento, não há previsão de nomear um ministro com representatividade entre os evangélicos ou criar uma área específica dentro do governo para essa temática, apesar da expectativa de representantes do segmento.
“O que as pesquisas dizem é que os evangélicos em 2030 serão metade da população. Então, se quiser ter um diálogo bom com esse povo, ter um diálogo bom conosco, tem que ter sinalizações de que não é contra a gente, de que terá pessoas que nos representem em lugares importantes. Tem que entrar por esse caminho, se não fica difícil”, disse à BBC News Brasil o deputado Cezinha de Madureira (PSD-SP), importante liderança da Frente Parlamentar Evangélica.
Vice-líder do governo Bolsonaro no Congresso, Cezinha tem mantido diálogo com o governo de transição. Ele se reuniu em novembro com o vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, e apontou como interlocutores com o futuro governo também o prefeito de Araraquara, Edinho Silva (PT), e o deputado Alexandre Padilha (PT-SP), cotado para assumir o ministério que cuidará da articulação política.
Para ele, porém, não basta a equipe de Lula ter abertura para conversar com o segmento de dentro para fora. É preciso ter lideranças que integrem o novo governo.
Cotada para o ministério do Meio Ambiente, a ex-ministra da pasta e deputada eleita, Marina Silva (Rede-SP), é evangélica, mas não tem conexão com as lideranças das maiores igrejas e com a bancada de parlamentares.
“A Marina não nos representa. Eu nunca conversei com a Marina, não sei nem quem é a Marina direito. Então, não sei nem se ela é evangélica”, afirmou Cezinha, que é pastor da Assembleia de Deus Ministério Madureira.
Questionado se haveria uma lista de propostas do segmento evangélicos, Cezinha não quis detalhar. “É o governo que tem que nos propor coisas. Nós não temos nada a questionar, e nada a pedir. Quem precisa de voto (no Congresso) é o governo, não somos nós”, respondeu.
Religião não deve ser critério, dizem petistas
Chefe de Gabinete da Presidência da República nos dois primeiros governos de Lula e quadro histórico do PT, Gilberto Carvalho disse à BBC News Brasil que a questão evangélica deve ser tratada de forma “transversal” no futuro governo. Ou seja, será abordada nos diferentes ministérios, mas sem uma estrutura especial.
“O foco agora da equipe de transição está sendo muito a montagem do governo e as nomeações (dos ministros). E não está se pensando em estruturar uma área específica para isso (a relação com os evangélicos). Vai ser mais uma coisa transversal ao governo. Então isso não foi avançado, não”, disse, ao ser questionado sobre a aproximação com o segmento.
A deputada Benedita da Silva (PT-RJ), evangélica e também quadro histórico do partido, defende que a religião não seja um critério definidor para a formação do governo. Segundo ela, a gestão Lula resgatará o Estado Laico e o princípio da liberdade religiosa.
“O governo não vai partir dessa premissa: quem é religioso, quem é de que religião, para poder estar sendo convidado a ser ministro ou ministra. Nós temos muitos evangélicos dentro do PT, com formação, fora do PT também tem evangélicos que estão fazendo o trabalho conosco na transição, mas não houve uma preocupação maior de que tem que ter evangélico aqui, tem que ter católico aqui”, afirmou.
“Nós estamos, no momento, recuperando o curso natural da história, onde o governo do Lula, o governo da Dilma, foram governos que trataram muito bem as igrejas evangélicas. Sempre houve uma relação institucional do ponto de vista de um Estado laico”, disse ainda Benedita.
Para o pastor Ariovaldo Ramos, coordenador da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, que representa cristãos mais progressistas, a presença de evangélicos no futuro governo será “natural”, dado grande número desses fiéis no Brasil hoje. Ele, porém, também é contra o uso do critério religioso para nomeações.
“Eu acho que tem que ter distribuição de gênero e de raça (na nomeação dos ministério). De religião, não. O Estado é Laico”, disse à reportagem.
Um primeiro passo, simbólico, de aproximação foi tomado com a decisão de convidar dois cantores gospel para o show que ocorrerá no dia da posse presidencial. Kleber Lucas e Leonardo Gonçalves gravaram com outros músicos, durante a campanha eleitoral, a música Messias, crítica ao presidente Bolsonaro. E, mais recentemente, Lucas gravou em parceria com Caetano Veloso uma versão da sua música Deus Cuida de Mim.
“São dois cantores gospel muito conhecidos. Foi (feito o convite) já nessa linha de busca de diálogo”, confirmou Gilberto Carvalho, que integra o grupo de transição responsável pela organização da cerimônia de posse.
A participação dos dois foi celebrada pela Eliziane Gama (Cidadania/MA), parlamentar evangélica próxima a Lula.
“A festa da posse de @LulaOficial vai contar com a voz dos grandes cantores evangélicos @prkleberlucas e @leoorgoncalves . Sim, teremos nossa voz assegurada no próximo governo. #PosseLulaPresidente”, tuitou a senadora.
Integrante do Conselho Político da equipe de transição, ela sugeriu que o próximo governo mantenha uma novidade adotada por Bolsonaro: inclua o termo “família” no nome de um dos ministérios.
No atual governo, a pasta se chama Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, e foi comandada até março por Damares Alves, possivelmente a liderança evangélica de maior projeção da gestão Bolsonaro. Ela deixou o cargo para disputar uma vaga no Senado e foi eleita com ampla votação no Distrito Federal, pelo partido Republicanos.
A expectativa, porém, é que o atual ministério seja desmembrado, com uma pasta para Direitos Humanos e outra para a temática da Mulher. Durante a campanha, Lula também disse que criaria um ministério para a Igualdade Racial e outra para os Povos Indígenas.
A ideia de manter o termo Família em algum desses órgãos, porém, não está confirmada, segundo Gilberto Carvalho.
“Chegou essa sugestão. Ela está sendo debatida. Não sei se vai prosperar, mas está sendo debatida”, disse.
Benedita, por sua vez, minimizou a importância do nome do ministério. Na sua avaliação, políticas públicas implementadas nos governos do PT já tinham foco na família e serão retomadas no novo mandato de Lula.
“É o projeto já existente dentro do (Ministério do) Desenvolvimento Social, porque ninguém cuidou mais da família do que o (programa de habitação) Minha Casa, Minha Vida e o (programa de transferência de renda) Bolsa Família”, argumentou a deputada.
“E teve a questão também das cotas sociais e raciais nas universidades, a questão das cisternas que foram colocadas (para coleta de água da chuva em regiões de seca), o programa Luz Para Todos (que ampliou o acesso à energia elétrica). Então, todos os evangélicos e evangélicas que estavam na condição de pobreza, precisando de políticas, foram atendidos. Não é uma novidade para o PT”, disse também, elencando outros programas dos governos petistas.
Educação é área sensível
Questionada pela reportagem sobre por que, então, a maioria do eleitorado evangélico apoiou Bolsonaro na eleição, Benedita disse que parte desses eleitores foi convencida por histórias falsas que diziam, por exemplo, que o governo do PT faria “menino virar menina”.
Esse tipo de acusação é antiga e remonta ao chamado “kit gay”, como ficou conhecido pejorativamente um material que foi produzido no governo Dilma Rousseff, dentro do programa Brasil sem Homofobia, com objetivo de combater a violência e o preconceito contra a população LGBTQI (composta por travestis, transexuais, gays, lésbicas, bissexuais e outros grupos).
Devido à reação de grupos conservadores, o material acabou não sendo distribuído para os professores da rede pública em 2011, como previsto.
A abordagem da questão sexual nas escolas voltou a gerar embates políticos nas eleições de 2018 e 2022. Enquanto, na esquerda e em outros grupos progressistas a educação sexual nas escolas é vista como forma de promover igualdade de gênero, respeito à diversidade e também uma forma de proteger crianças do assédio, alguns segmentos conservadores entendem essa iniciativa como sendo uma “sexualização” indevida da infância e a promoção de uma suposta “ideologia de gênero” que deturparia a formação familiar tradicional.
Para os entrevistados pela BBC News Brasil, essa questão continuará sendo o ponto mais delicado da relação entre o futuro governo e o segmento evangélico, criando o desafio de conciliar pautas importantes para o campo progressista com as preocupações de um segmento predominantemente conservador.
“A questão da escola o Ministério da Educação vai ter que tomar muito cuidado”, alerta o pastor Ariovaldo Ramos.
“Porque, se o segmento evangélico entender que está havendo o que os evangélicos chamam de erotização das crianças, uma tentativa de ensinar que o gênero é uma coisa que não está determinada, etc, aí o segmento evangélico vai reagir”.
Questionado pela BBC News Brasil sobre qual será a estratégia para conciliar essas duas visões tão opostas dentro do governo, Carvalho disse que esse debate “vai ser encarado na hora certa”.
“É um debate evidente, um debate que o governo vai ter que encarar. Não tem como não encarar, na área de direitos humanos sobretudo, mas não vi nenhuma antecipação deste debate para agora, na transição propriamente”, afirmou.
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