- André Biernath – @andre_biernath
- Da BBC News Brasil em Londres
A história de Yasmin Garcia é daquelas em que um episódio corriqueiro, desses que a gente passa todos os dias, pode mudar uma vida inteira.
Uma brincadeira de cabo de guerra na escola desencadeou uma série de eventos que, em poucas horas, exigiu que a menina de sete anos precisasse viajar mais de 500 quilômetros para ser submetida a uma cirurgia de urgência.
Felizmente, o que poderia resultar na perda da visão e num prejuízo estético permanente foi resolvido com uma cirurgia minimamente invasiva, feita com uma agulha, e realizada de forma inédita no Brasil.
Para entender essa verdadeira epopeia, porém, é preciso voltar cinco anos no tempo.
Atenção: algumas imagens que aparecem ao longo da reportagem podem ser sensíveis para algumas pessoas.
Primeiros sinais
Cleci Haerter, mãe-avó de Yasmin, relata que o primeiro sinal de algo errado no olho apareceu quando a menina tinha apenas dois anos.
À época, a família morava na cidade de Santo Ângelo, no interior do Rio Grande do Sul.
“Ela acordou com o olho direito levemente inchado e achamos que era uma conjuntivite”, lembra.
“Com o passar do dia, começamos a notar que o globo ocular começou a inchar demais.”
Na manhã do dia seguinte, elas já estavam em Porto Alegre, capital gaúcha, para uma batelada de exames.
A primeira suspeita dos médicos era a de que se tratava de um linfoma, tipo de câncer que afeta o sistema linfático, uma rede de vasos e gânglios importantíssima para o funcionamento do sistema imunológico.
Os testes mostraram, porém, que o problema era outro: Yasmin tem linfangioma, uma doença marcada pela formação anormal dos vasos linfáticos (e também de vasos sanguíneos), que se aglomeram em determinada região e podem se dilatar, causar inchaços e promover o acúmulo de líquidos.
Segundo os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, essa doença é rara e acomete um indivíduo a cada 10 mil nascimentos.
Só que o quadro da menina de sete anos era ainda mais atípico: essas malformações linfáticas costumam se desenvolver na região da cabeça e do pescoço.
Na Yasmin, o linfangioma estava localizado atrás do olho — o globo ocular é “empurrado” para frente por causa do inchaço dos vasos e do acúmulo de líquidos ali.
Esse tipo da enfermidade é tão incomum que nem existe uma estatística oficial de quantos casos são conhecidos no mundo.
Após esse primeiro episódio aos dois anos — que foi tratado com uma drenagem do líquido — a vida de Yasmin seguiu relativamente normal.
“Quando víamos que o olho dela começava a inchar, já fazíamos compressas de gelo para reduzir o edema”, diz Haerter.
“Na escola, sempre conversava com a direção e os professores para que a Yasmin não fizesse muito esforço físico, pois isso poderia ser o gatilho para uma nova crise”, acrescenta a mãe-avó.
O exercício mexe com os batimentos cardíacos, altera a pressão arterial e dilata os vasos sanguíneos. Isso, por sua vez, poderia levar a um transbordamento de líquidos no linfangioma de Yasmin.
Nesse meio tempo, a família se mudou para a cidade de Cascavel, no Paraná.
E é justamente aí que entra o fatídico episódio do cabo de guerra: no colégio, a menina participou da brincadeira com os colegas e, horas depois, já apresentava da alteração típica do linfangioma.
Tudo começou com uma pequena mancha roxa na pálpebra, que logo evoluiu para a projeção do olho para frente.
“Tentamos controlar o inchaço em casa e a levamos para dois oftalmologistas, mas ninguém sabia do que se tratava”, conta Haerter.
“O olho começou a ficar muito saltado, estava pressionado para fora do crânio. Ela também estava com dor, não conseguia comer e só vomitava.”
Haerter ligou então para o Hospital Pequeno Príncipe, que fica a cerca de 500 km de distância, em Curitiba, e é referência na área de pediatria.
Ela já havia cadastrado Yasmin para uma avaliação na instituição e aguardava na fila de espera para atendimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
“Eles nos orientaram a levá-la com urgência. Saímos daqui por volta do meio-dia e chegamos em Curitiba às dez da noite.”
“A Yasmin ficou internada e passou por radiografia, tomografia e ressonância magnética enquanto os médicos decidiam o que fazer”, resume.
Região delicada
A pediatra Rafaela Wagner, que trabalha no hospital e atendeu Yasmin, se recorda como a situação causou um impacto instantâneo.
“Ela estava com uma lesão deformante quando a vimos pela primeira vez”, diz.
Naquele momento, o olho da menina estava tão projetado para fora que as pálpebras não eram mais capazes de fechar completamente.
“Além da alteração física, o problema acometia uma região nobre e delicada, onde passa o nervo óptico”, detalha.
Esse nervo é o responsável por transmitir a luz e os elementos visuais do olho ao cérebro, onde essas informações serão interpretadas.
O primeiro passo do tratamento envolveu controlar os sintomas, como a dor, e evitar outros problemas secundários, como uma infecção, por meio do uso de antibióticos.
Mas como resolver o problema em si e colocar o olho de volta no lugar?
Por ser uma doença rara e que envolve múltiplos sistemas do organismo, o linfangioma pode ser tratado por diversas especialidades médicas, que vão desde a oncologia e a neurologia até a oftalmologia e a cirurgia.
Essa situação exigiu um verdadeiro batalhão de profissionais da saúde, que analisaram o caso para encontrar a melhor alternativa.
No final das contas, a solução para o problema da Yasmin caiu nas mãos da radiologia intervencionista, uma área relativamente nova na medicina que usa equipamentos de radiografia para analisar partes do corpo em tempo real durante um procedimento.
Uma picada
A menina foi encaminhada para a sala da hemodinâmica, que possui os equipamentos necessários para realizar uma operação do tipo, e ficou aos cuidados dos radiologistas intervencionistas pediátricos Pedro Santini e Helder Groenwold Campos.
Depois de realizar o planejamento cirúrgico por meio de alguns exames, a dupla inseriu uma agulha na região entre a base superior do nariz e o olho lesionado.
Para guiar o procedimento, eles contaram com uma máquina que faz radiografia em tempo real, e permite que visualizem o local exato onde iriam intervir.
“O primeiro passo foi drenar o líquido que havia se acumulado ali”, descreve Campos.
Os especialistas retiraram 12 mililitros de um material vermelho-escuro de aspecto pegajoso.
Essa quantidade pode até parecer pouco, mas quando ela se acumula no espaço tão apertado atrás do olho, é capaz de causar muitos problemas.
O próximo passo foi aplicar um quimioterápico, remédio que destrói apenas as células defeituosas que constituem o linfangioma.
“A ideia é fazer com que a malformação pare de secretar os líquidos que causam o inchaço e todas as complicações relacionadas”, resume Santini.
‘Parece mágica’
Finalizado o procedimento, Yasmin ficou em observação por algumas horas.
Quando Haerter finalmente pode ver a filha-neta de novo, não acreditou no que seus olhos mostravam.
“Foi maravilhoso ver como ela já estava com um aspecto 98% normal”, estima.
“Eu estava super nervosa, porque a cirurgia aconteceu numa região muito delicada. Mas nem parecia que ela tinha passado por um procedimento ali”, confessa.
Para Santini e Campos, recuperações rápidas e pouco traumáticas não são exatamente uma novidade.
“Não fazemos grandes incisões. Todo o material é guiado por agulha, através de pequenos furos na pele”, diz Campos.
“As pessoas às vezes esperam que o paciente vai sair com curativos e cicatrizes quando, na verdade, às vezes nem dá pra ver o furinho da agulha depois”, complementa.
Um tratamento desses pode ser feito até com anestesia local quando o paciente é adulto — no público infantil, os especialistas fazem uma sedação para evitar que a criança se mexa ou fique muito assustada.
Mas mesmo para Wagner, a pediatra que acompanhou todo o caso, os resultados são “impressionantes” e “parecem mágica”.
“Essa é a beleza do procedimento minimamente invasivo. Foi muito significativo ver o antes e depois da Yasmin”, conta.
Cura ou controle?
Passado o momento mais grave da crise, os especialistas avaliam agora qual será o futuro do tratamento da menina.
Ela toma um comprimido de 12 em 12 horas, para manter a inflamação sob controle e evitar novos inchaços.
A intervenção cirúrgica inédita foi considerada um sucesso pelos radiologistas intervencionistas.
“Tivemos uma redução superior a 75% e, após um mês de acompanhamento, não tivemos a formação de uma quantidade significativa de líquidos novamente”, pontua Santini.
Mas os especialistas são cautelosos em usar a palavra cura para um caso desses.
“Precisamos acompanhar por mais tempo para ver se não ocorrem mudanças e o problema volta daqui a dois, três ou cinco anos”, afirma Campos.
Do ponto de vista prático, a Yasmin está liberada para seguir uma rotina normal.
“A nossa recomendação é que ela seja criança e possa brincar livremente”, orienta Wagner.
Para Haertner, essas notícias representam um alívio dos grandes.
Ela também acredita que contar histórias como essa ajuda a alertar outros pais que podem estar numa situação parecida e ainda não conseguiram fazer o diagnóstico adequado ou encontrar o tratamento mais efetivo para um problema.
“Parece que saiu uma tonelada das minhas costas”, compara.
“Não tem palavra que possa resumir o sentimento de ver a Yasmin feliz e com qualidade de vida de novo”, conclui a mãe-avó.
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