- Author, Bruna Alves
- Role, De São Paulo para a BBC News Brasil
O câncer não é uma doença que causa infertilidade, a não ser que tenha atingido, especificamente, órgãos de reprodução. No entanto, tratamento com radioterapia pode levar à morte dos óvulos ou danificar outras partes da região — o que pode gerar infertilidade.
Pensando nisso, o pesquisador e cirurgião oncológico do Instituto de Cirurgia Robótica do Paraná, Reitan Ribeiro, desenvolveu a técnica, em fase experimental, que ficou mundialmente conhecida como transposição uterina.
O objetivo é preservar a fertilidade em mulheres que passam por sessões de radioterapia em tratamento contra o câncer.
O método, realizado dentro de um protocolo de pesquisa, consiste em transferir os órgãos reprodutivos para a parte de cima do abdômen, a fim de mantê-los intactos durante as terapias. Ao término do tratamento, é feita novamente a reposição do útero, trompas e ovários em seu local original.
Uma das beneficiadas com a transposição foi a maquiadora Carem dos Santos, de 33 anos.
Em junho de 2018, ela descobriu um lipossarcoma (tumor raro que se inicia no tecido gorduroso do corpo) na pelve e, como parte do tratamento, além da cirurgia, seria necessário passar por sessões de radioterapia para tratar as células cancerígenas. No entanto, as radiações afetariam seu útero, impedindo uma futura gestação.
“Eu não tinha namorado e nem filhos, mas pensava, depois dos 30 anos, em construir uma família. Então, essa notícia foi muito triste e o médico da radioterapia me deu um tempo para eu ver o que poderia fazer”, relembra.
Nesse período, ela soube da técnica de transposição uterina, um estudo em andamento que estava sendo realizado em Curitiba que visava justamente a preservação do órgão para uma gravidez posterior.
“O médico foi bem sincero ao dizer que ainda era um estudo e que nenhuma mulher tinha engravidado, então ele não poderia garantir que eu iria engravidar depois, mas eu escutei o meu eu e fiz a cirurgia”, diz a maquiadora.
Carem lembra que o pós-operatório foi bastante dolorido nos primeiros quinze dias, mas, fora isso, não houve complicações. Depois, três meses após as sessões de radioterapia, os órgãos foram realocados aos seus devidos lugares.
Passado o tempo, ela ainda descobriu mais dois cânceres, um na pleura e outro no pulmão, e fez os respectivos tratamentos. “Conheci meu marido em 2021 e, quando estava finalizando esses processos, descobri que estava grávida”, conta.
“Hoje eu olho e penso: meu Deus, essa foi a decisão mais certa que tomei em toda a minha vida, porque eu me apaixonei pela maternidade. A coragem e a fé foram muito importantes para mim e a gente tem que falar sobre isso, porque é o sonho de muitas mulheres”, conclui.
Câncer de colo de útero
Em 2020, a cabeleireira recém-casada Angelica Hodecker Azambuja, de 33 anos, foi diagnosticada com câncer de colo de útero, por meio de exames de rotina.
“A primeira opção do médico foi retirar útero, ovários e trompas, mas como meu câncer era apenas no colo, não tinha afetado esses órgãos. E mesmo assim eu cheguei a cogitar a hipótese”, lembra.
Inicialmente, diz Angélica, foi muito difícil assimilar a notícia de que além de estar doente, não realizaria, no futuro, seu sonho da maternidade.
“Fiquei destruída, porque a mulher pode até não querer ser mãe, e tudo bem, mas quando alguém diz que você não vai poder ter filhos, que você não tem escolha, mexe muito com a gente”, desabafa.
Ela passou por uma cirurgia para retirar parte do colo do útero e depois veio a difícil decisão. “Ou parava o tratamento para engravidar, ou perdia a chance de ter filhos, porque eu tinha que fazer radioterapia”, relata.
No entanto, ela não se contentou com as opções apresentadas e foi em busca de alternativa. Foi aí que conheceu a transposição uterina. “A princípio, fiquei insegura pelo fato de ser um estudo muito novo ainda e não ter a certeza se daria certo”, diz.
Mesmo assim, Angélica fez a transposição, e depois de quinze dias passou pelo tratamento com quimioterapia e radioterapia.
“Uma semana depois de ter terminado quimio e radio, fiz a cirurgia de transposição de novo, em março, e fiquei super bem, tive uma recuperação tranquila”, comenta a cabeleireira.
Já em outubro de 2021, ela recebeu o diagnóstico de remissão da doença e então decidiu que era a hora de tentar ter um filho. Para sua surpresa, engravidou naturalmente no ano seguinte.
“A transposição uterina foi a melhor opção que tive e a melhor decisão que nós (ela e o marido) tomamos”, afirma Angélica, mãe da Isabel, de cinco meses.
Como funciona a transposição uterina?
Trata-se de uma cirurgia minimamente invasiva, realizada com a tecnologia robótica, que retira o útero, as trompas e os ovários do seu local original e os reposiciona na parte de cima do abdômen, temporariamente, para preservá-los durante o tratamento de radioterapia realizado na região pélvica.
Isso porque, mesmo que não seja direcionada diretamente ao útero, o efeito colateral da radioterapia é nocivo aos óvulos, provocando infertilidade ou menopausa precoce.
De acordo com Ribeiro, cirurgião brasileiro responsável pelo desenvolvimento da técnica, a cirurgia é de baixo risco e as pacientes costumam receber alta um ou dois dias após o procedimento, podendo sentir dor ou desconforto no pós-operatório, “mas, no geral, elas têm uma vida relativamente normal, mesmo com o útero temporariamente numa posição anormal”.
Vale ressaltar que o útero continua funcionando normalmente, mesmo reposicionado, assim como a função ovariana. E, ao final das sessões, os órgãos reprodutivos são realocados no devido lugar.
A transposição pode ser indicada para pacientes que precisam de radioterapia para tratar tumores no reto, intestino, bexiga, vagina, vulva (entre outros) e casos de sarcomas, que são tumores malignos em tecidos moles, como os músculos, gorduras e tendões, em que apenas algumas sessões de radiação seriam o suficiente para gerar infertilidade.
Segundo Renato Moretti Marques, coordenador do Programa de Cirurgia Robótica em Ginecologia do Hospital Israelita Albert Einstein, há contraindicações para a transposição.
“É essencial que a doença não tenha comprometido o útero, trompas e ovários. E se essa paciente não tem ovários funcionantes, não é possível deslocar o útero, porque não teria como nutri-lo, e se ela já recebeu radioterapia pélvica também não dá para fazer essa cirurgia”, diz Marques, que também é coordenador do Departamento de Ginecologia Oncológica do Hospital Municipal Vila Santa Catarina.
Qualidade de vida das pacientes
Ribeiro enfatiza que hoje o propósito da oncologia não é apenas curar a paciente, mas também fazer com que ela tenha a mesma qualidade de vida que tinha antes de fazer o tratamento. Essa foi sua principal motivação para o estudo da cirurgia de transposição.
“Há dez anos, nós tentávamos curar o câncer a todo custo e até pecávamos pelo excesso. Hoje, não queremos só curar uma paciente com câncer, nós queremos curar e que ela tenha uma vida normal. Por exemplo, se tem um tumor na perna, nós não queremos amputar o membro, queremos curar e que a pessoa continue caminhando”, descreve o pesquisador, acrescentando que agora esse é um conceito muito importante em oncologia.
Para o coordenador do Programa de Cirurgia Robótica em Ginecologia do Hospital Israelita Einstein, existem outras alternativas reprodutivas, como técnicas de fertilização in vitro, “mas talvez essa seja a mais fisiológica, onde é possível preservar a fisiologia da parte interna do útero, que é chamada de endométrio, e a fisiologia do ovário, fazendo com que as pacientes possam ter gestações espontâneas. Por isso esse pode ser o melhor caminho a ser seguido”.
Transposição uterina em fase experimental
Embora já tenham sido realizadas várias cirurgias, a transposição uterina ainda é um estudo experimental.
A técnica já foi apresentada em um congresso internacional de ginecologia oncológica, em 2016, e atualmente está em fase de publicação do estudo.
A primeira cirurgia foi realizada em outubro de 2015 no Brasil pelo médico e pesquisador Reitan Ribeiro e, desde então, passou a ser adotada em vários países, como Alemanha, Rússia, Argentina, Colômbia, Estados Unidos, Israel, entre outros.
Dezenas de pacientes já fizeram a transposição uterina, sendo vinte só no Brasil.
Entretanto, há histórico de casos sem sucesso em que o útero necrosou após um coágulo ter entupido a artéria, impedindo a nutrição do órgão da paciente.
Marques diz que “ela iria perdê-lo de qualquer forma devido ao tratamento de radioterapia, então essa é uma chance de a paciente preservar o órgão reprodutivo”.
Esse é um estudo experimental em fase 3, feito com as próprias pacientes, a longo prazo.
“Tem duas cirurgias que servem de base e a combinação delas acaba se tornando essa terceira cirurgia, e agora estamos na fase 3 dos estudos, com grande número de pacientes para avaliar a longo prazo, porque têm pacientes que ainda nem tentaram engravidar ainda, porque são muito jovens”, explica Ribeiro.
A técnica ainda não está disponível no SUS (Sistema Único de Saúde).
“Para ser inserido ao SUS, precisamos fazer uma solicitação à Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde), responsável por avaliar o pedido, ver se é economicamente viável e se a literatura justifica. Então, eles precificam e, por fim, autorizam. Esse processo pode levar de um a dois anos e, talvez, até mais”, avalia Ribeiro.
Segundo Ribeiro, quatro hospitais no Brasil têm autorização da Conep (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa) para fazer essa cirurgia. São eles: Hospital Erasto Gaertner, Hospital Israelita Albert Einstein, A.C.Camargo Cancer Center e o Instituto de Câncer de Manaus.
“É bom deixar claro que é uma cirurgia que está sendo feita com aprovação da Conep, e está sendo realizada dentro de hospitais de referências, porque as pessoas podem questionar se eu realmente posso fazer isso, e sim, eu posso”, esclarece Ribeiro.
Para realizar o procedimento, mulheres em idade fértil diagnosticadas com câncer na região pélvica e que têm interesse em realizar a técnica de transposição uterina podem pedir ao seu médico uma guia de encaminhamento para o Hospital Erasto Gaertner (PR), solicitando a avaliação para inclusão no estudo.
A equipe médica vai avaliar o caso para checar se realmente está dentro das indicações da pesquisa, que é realizada desde 2017 sem custos às pacientes e, caso seja selecionada, será iniciado o protocolo de atendimento.
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