- André Biernath – @andre_biernath
- Da BBC News Brasil em Londres
Depois de dois anos e meio imersos na maior pandemia das últimas décadas — em que temas relacionados à ciência ganharam um destaque nunca antes visto — a expectativa entre os pesquisadores era a de que os candidatos à presidência tivessem mais propostas sobre como desenvolver esse setor no Brasil.
Na prática, porém, isso não aconteceu como o imaginado: entre aqueles postulantes ao cargo que citam ciência, tecnologia e inovação nos planos de governo, as ideias são genéricas e pouco detalhadas, apontam as análises.
Além disso, entidades que representam e reúnem a área acadêmica, de pesquisa e de divulgação científica do Brasil foram pouco consultadas — ou até ignoradas — pelos postulantes ao principal cargo do poder executivo.
“Tudo isso é muito triste, a ciência não entrou em debate”, observa o advogado e psicólogo Paulo Almeida, diretor executivo do Instituto Questão de Ciência (IQC)
“Imaginávamos que, com a relevância que a área ganhou ao longo dos últimos dois anos e meio, teríamos uma qualificação maior das discussões sobre esse tema”, lamenta.
“A ciência brasileira se encontra neste momento em uma situação extremamente preocupante de desmonte, e caberá ao próximo governo a sua recomposição estrutural e orçamentária, que devolva aos cientistas um ambiente propício para desenvolverem as pesquisas”, avalia o geneticista francês Hugo Aguilaniu, diretor-presidente do Instituto Serrapilheira.
Conheça a seguir algumas das ideias e análises das principais entidades e associações científicas do país — e como elas foram recepcionadas pelos candidatos à presidência.
‘Poucos detalhes’
Em agosto, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) fez um levantamento sobre as propostas dos candidatos à presidência relacionadas à pesquisa e inovação.
A entidade admite que, dos 12 postulantes registrados à época no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), dez possuíam ideias e projetos direcionados especificamente ao desenvolvimento científico do país.
Entretanto, mesmo com a CT&I (Ciência, Tecnologia e Inovação) ganhando algum destaque nas propostas de governos, “as candidaturas em geral ainda pecam por não detalhar como serão realizadas as ações desses governos caso eleitos”, aponta o relatório.
Nos planos de governo disponibilizados pelos partidos políticos, “a ciência apareceu fortemente atrelada ao cenário empreendedor, como uma frente importante para o desenvolvimento econômico do país”, analisa o texto.
“A maioria dos candidatos também defendeu o fortalecimento de um sistema nacional para CT&I, o aumento das bolsas de pesquisa disponibilizadas pelos órgãos federais e uma melhor estrutura orçamentária para as universidades públicas.”
O professor Renato Janine Ribeiro, presidente da SBPC, conta que durante o Encontro Anual da entidade, realizado em julho, foi feito um convite para que os três candidatos com maior intenção de votos — Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Jair Bolsonaro (PL) e Ciro Gomes (PDT) — participassem do evento.
“Lula e Ciro aceitaram e estiveram presentes. Bolsonaro não respondeu e, após insistirmos, recebemos uma mensagem que ele não iria”, relata.
“Os dois candidatos que foram se comprometeram a assinar o ‘Projeto para um Brasil Novo‘ elaborado pela SBPC”, complementa.
Ciência como política de Estado
A Academia Brasileira de Ciências (ABC), por sua vez, divulgou em junho uma carta aberta em que detalha algumas ideias para o futuro governo.
“A prioridade é encarar a ciência como uma política de Estado, e não de governo”, resume a biomédica Helena B. Nader, presidente da ABC.
O documento, elaborado por mais de uma dezena de acadêmicos, sugere que ao menos 2% do Produto Interno Bruto (PIB) seja investido na ciência nos próximos quatro anos, “como fazem nações bem-sucedidas”.
A entidade também vê como urgente a necessidade de formar mais mestres e doutores. A meta sugerida é ter, em dez anos, 2.000 pesquisadores a cada um milhão de habitantes.
Atualmente, essa taxa está em 900 — valor inferior ao encontrado em outros países da América Latina. Entre as nações desenvolvidas, a proporção é de 4.000 cientistas a cada milhão de indivíduos.
A ABC também indica que conselheiros estratégicos em ciência, tecnologia e inovação auxiliem mais ativamente os três poderes — Legislativo, Judiciário e, principalmente, o Executivo — “para que políticas públicas sejam desenhadas com aporte do conhecimento sobre cada tema”.
A assessoria de comunicação da ABC afirmou que, após a divulgação do documento, houve um contato da chapa encabeçada por Lula e Geraldo Alckmin (PSB) e “foi realizada uma mesa de diálogo em julho com representantes da comunidade acadêmica para abordar as propostas”.
“Desde então, não houve contato por parte de nenhuma outra coligação”, informam os responsáveis pela entidade.
Perguntas sem respostas (e memes)
Já o IQC se inspirou num projeto feito pela revista Scientific American para as eleições dos Estados Unidos de 2012 e elaborou uma lista com dez perguntas sobre ciência, que foram enviadas aos quatro candidatos que apareciam à frente nas pesquisas.
“Até o momento, não recebemos respostas de ninguém”, conta Almeida, que também é coordenador do Observatório de Políticas Públicas do instituto.
“Alguns assessores de Ciro e Lula até entraram em contato com a gente, mas não tivemos respostas concretas ou convites para conversas”, complementa.
As questões elaboradas pelo instituto, disponíveis na internet, envolvem pontos técnicos, como autonomia universitária, integração dos institutos de pesquisa e estímulo à ciência básica, e fenômenos globais, como mudanças climáticas, exploração dos recursos naturais e combate a novas epidemias.
O Instituto Serrapilheira, por fim, iniciou uma campanha lúdica chamada “Zé Gotinha Presidente“.
Segundo Aguilaniu, a ideia foi fazer “uma ação bem-humorada nas redes sociais em que usamos este mascote histórico dos brasileiros, que representa muito bem a saúde pública e a ciência, para conscientizar os eleitores da importância de votar em candidatos que valorizem esta causa”.
Inspiração que vem do passado
Os representantes ouvidos pela BBC News Brasil destacam que políticas científicas adotadas em décadas anteriores servem como exemplo do que é possível conquistar quando se investe na área.
“No início do século 20, tivemos o movimento sanitarista, cujo símbolo foi Oswaldo Cruz. Por meio dele, criamos toda uma política de vacinação e uma série de outras medidas que aumentaram consideravelmente a expectativa de vida da população brasileira”, cita Almeida.
O especialista também lembra de todo o investimento em pesquisas na área da agricultura — o trabalho da cientista Johanna Döbereiner sobre a fixação de nitrogênio no solo, por exemplo, permite que o país economize bilhões de dólares em plantações e seja uma das potências mundiais do agro.
“Não podemos nos esquecer da criação da Embraer, uma empresa de classe mundial que surgiu a partir do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA)”, acrescenta Nader, que também é professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
“E foi o Brasil quem mostrou ao mundo que dava para retirar petróleo do pré-sal, quando todos diziam que isso era impossível”, completa.
A ciência tem um fim?
Entre os acadêmicos, também chama a atenção o fato de os candidatos à presidência enxergarem a ciência como um meio para alavancar o desenvolvimento econômico do país.
Mas será que é válido enxergar a pesquisa sob essa ótica utilitarista, como uma forma de ganhar mais dinheiro?
Para Ribeiro, esse tipo de pensamento é natural. “Numa sociedade democrática, você tem que convencer que cada investimento feito com dinheiro público faz sentido”, acredita.
Na visão do professor, a grande questão está em estimular a ciência básica e experimental, que investiga aspectos e fenômenos que estão ao nosso redor e na qual não se sabe exatamente qual será o resultado prático ou imediato.
“Quando iniciaram as pesquisas sobre energia nuclear, ninguém sabia que isso poderia resultar em bombas, eletricidade, tratamentos contra o câncer ou métodos para restaurar obras de arte”, exemplifica.
“Mas todos esses avanços que existem hoje se devem à ciência básica, da qual não se tinha ideia exatamente o que poderia sair”, diz.
Almeida dá outro exemplo de como investir nesse ramo da ciência básica traz repercussões ao longo do tempo.
“Foi por meio de uma pesquisa básica dentro da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP sobre venenos de cobras que um cientista descobriu a bradicinina, uma molécula que resultou em um dos remédios contra a pressão alta mais prescritos em todo o mundo.”
Aguilaniu concorda e aponta que investir em ciência básica para buscar resultados financeiros futuros não representa duas noções antagônicas. “Faz sentido enxergar a ciência como um meio para alavancar a economia, até porque isso é verdade”.
“Não existe geração de riqueza e desenvolvimento econômico sustentável de um país sem a ciência”, diz.
“Cem anos após o surgimento da física quântica, por exemplo, um estudo da Scientific American mostrou que 30% do PIB dos Estados Unidos eram baseados em invenções que só foram possíveis por essa área da ciência”, cita.
“Ressalto que, embora seja papel do Estado o investimento em ciência básica, isso não impede que existam eixos estratégicos”, complementa o diretor-presidente do Instituto Serrapilheira.
“A Alemanha, por exemplo, investiu muito na informação quântica porque julgou que esse era um campo estratégico para o país. O Brasil, da mesma forma, pode ter como eixo de investimento a área de ecologia tropical por causa de seu potencial.”
Uma bancada da ciência no Congresso
Ainda nessa seara, os representantes das entidades destacam a iniciativa de alguns cientistas, que resolveram deixar a bancada dos laboratórios e se candidataram a cargos de deputado federal ou estadual.
Será que uma “bancada da ciência” no Legislativo ajudaria a fortalecer e estimular a pesquisa no país?
Ribeiro vê o movimento com bons olhos. “Mesmo se for pequena, uma bancada dessas pode ampliar o número de projetos aprovados em prol da ciência”, antevê.
Nader entende que ter esses profissionais no Congresso “vai enriquecer o debate, mas não soluciona todos os nossos problemas”.
“Precisamos, porém, de diversidade no Legislativo. De certa maneira, ter representantes lá mostra como a ciência pode funcionar e auxiliar na discussão entre deputados e senadores”, acredita.
Já Almeida entende que a estratégia para aumentar a relevância da ciência entre os políticos deveria ser um pouco diferente.
“Em vez de emplacar candidatos, o primeiro passo deveria ser criar uma pauta unificada e organizada”, sugere.
“A partir daí, poderíamos ter grupos de lobby e influência profissionais, que conversem com os parlamentares eleitos e possam explicar a necessidade de atender certas demandas do setor”, aponta.
“Se fizermos isso [a criação de um programa estruturado para que todos os parlamentares se familiarizem com o tema], a bancada da ciência se tornaria o parlamento inteiro”, resume Aguilaniu.
Qual o melhor caminho?
Questionados sobre o que fariam se tivessem o poder de determinar a política científica do presidente que estiver no cargo a partir de 2023, os representantes das entidades consultados pela BBC News Brasil parecem concordar em um aspecto: o investimento na pesquisa deveria ser uma política de Estado.
“Ciência e educação não podem continuar à mercê do governo da vez”, diz Nader.
“Se não retomarmos os investimentos nessa área agora, e produzirmos uma verdadeira revolução na educação, o Brasil perderá gerações e o estrago será irreversível”, complementa a presidente da ABC.
“Toda essa conversa sobre ciência precisa ser transformada num projeto de nação”, pontua Almeida.
Ribeiro, que também vê a necessidade de melhorar a educação básica, acredita que é hora de estabelecer quais são as áreas prioritárias para investimento.
“Temos que saber quais são as questões em que o Brasil pode e deve ser protagonista em termos de ciência”, propõe.
“Um ponto de partida são os nossos biomas. O conhecimento sobre a Amazônia e o Cerrado, por exemplo, nos permitem pensar em centros mundiais de pesquisa sobre essas regiões.”
“Apesar das limitações, o Brasil tem todas as condições para ser protagonista e produzir com destaque em alguns campos da ciência”, crê o presidente da SBPC.
Por fim, Aguilaniu entende que é urgente recompor o financiamento científico, frear a fuga de cérebros para o exterior e desenvolver o potencial de liderança do Brasil em combater a crise climática e a devastação de biomas.
“Afinal, temos os maiores laboratórios naturais do planeta: nossos ecossistemas. Amazônia, Cerrado, Mata Atlântica, Pantanal, oceanos… Cada um deles é extremamente rico e diverso e tem o potencial de gerar uma riqueza que se reverte diretamente para a população, a partir de uma economia verde”, vislumbra.
“O Brasil tem excelentes cientistas, mesmo com as condições precárias para pesquisa e a instabilidade orçamentária. Imagina o que eles serão capazes quando a ciência se tornar de fato uma política de Estado, e não apenas de governo, recebendo o devido valor”, finaliza o geneticista.
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