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  • Author, Anthony Zurcher
  • Role, Correspondente da BBC News na América do Norte
  • Twitter, @awzurcher

O último mês, desde que Kamala Harris lançou sua campanha presidencial, tem sido um período sem precedentes na política americana: nunca uma campanha eleitoral moderna passou da estagnação para uma candidatura forte tão rapidamente.

Durante esse tempo, os democratas organizaram uma convenção nacional elaborada, com vídeos promocionais bem produzidos, eventos políticos e interlúdios musicais, tudo para promover a nova candidata.

Foi um teste notável de habilidade para os agentes do partido, sob extrema pressão.

Ao longo de quatro dias em Chicago – e nos comícios lotados que Harris realizou nas últimas semanas – os contornos de sua estratégia de campanha começaram a se delinear.

E não é exatamente o que se esperaria de uma vice-presidente em exercício que ocupou um cargo na Casa Branca por três anos e meio.

Harris está se esforçando para ser vista como a candidata da mudança nesta eleição. Alguém que, como disse em seu discurso na convenção na quinta-feira (22/8), pode “traçar um novo caminho para o futuro”.

Essa estratégia surge em parte da necessidade. Em todo o mundo, as democracias têm sido abaladas pela insatisfação dos eleitores.

À medida que as economias lutam para se recuperar da pandemia de covid-19, conflitos regionais fervilham e tensões sobre imigração surgem, os incumbentes políticos têm enfrentado eleitorados profundamente descontentes no Canadá, no Reino Unido, na Alemanha e na Índia, entre outros.

Pesquisas indicavam que o presidente Joe Biden, antes de abandonar sua campanha de reeleição no mês passado, estava prestes a enfrentar desafios semelhantes.

A vice-presidente virou essa situação de cabeça para baixo.

Seu histórico e sua história pessoal são um contraste acentuado com o atual presidente e com seu oponente republicano.

Também ajuda o fato de Harris estar concorrendo contra um ex-presidente que, embora também se apresente como um candidato de mudança, tem seu próprio histórico, às vezes controverso, às vezes impopular, na Casa Branca para defender.

“Esta eleição, eu realmente acredito, é sobre duas visões muito diferentes para o futuro”, disse Kamala em um comício na Carolina do Norte na semana passada.

“A nossa voltada para o futuro, e a outra voltada para o passado.”

Por que propostas vagas podem favorecer Harris

Na maior parte do tempo, Harris tem evitado descrever em detalhes como seria sua presidência.

Há discursos sobre unidade e um caminho além do partidarismo divisivo da América; um foco em fortalecer a economia e reduzir os preços para os consumidores; e uma ênfase significativa em direitos reprodutivos e aborto – um tema forte para os democratas.

Mas isso é vago. E essa falta de clareza pode ser adequada para a campanha de Harris.

Ao ser, em grande parte, um recipiente vazio de políticas, Kamala permitiu que diversos grupos dentro do Partido Democrata projetassem suas esperanças e prioridades nela.

Se ela conseguir manter todas essas peças juntas nos próximos meses, pode ser que ela vença.

Líderes trabalhistas expressaram otimismo de que Harris se concentre na proteção dos sindicatos e em questões econômicas fundamentais.

Ativistas climáticos destacaram a legislação de energia limpa da administração Biden e esperam que a candidata amplie esse esforço.

Líderes de direitos civis preveem que a primeira mulher não branca a ser a candidata de um grande partido avance a igualdade racial.

“A pergunta fundamental que as pessoas fazem é: você está lutando por mim ou está lutando por outra pessoa?”, diz Tom Perez, que serviu como secretário de Trabalho na administração Obama e tem sido conselheiro da Casa Branca de Biden.

“Acho que as pessoas têm uma ideia bastante clara de que ela vai lutar pelos direitos de todos, não apenas por certas pessoas em determinados lugares ou faixas de renda, não apenas por pessoas de certas raças ou etnias, mas por todos.”

Em outras palavras, a falta de clareza nas políticas da vice-presidente permitiu que ela atraísse o maior número possível de eleitores, em uma eleição onde cada eleitor indeciso conta.

Foi rotulada por alguns como uma campanha de “sensação” – baseada pelo menos em parte em sentimentos e impressões gerais.

Na quarta-feira, a ex-apresentadora de televisão, autora e celebridade internacional Oprah Winfrey, que se identificou como “independente na política”, disse que Harris e seu companheiro de chapa Tim Walz eram os candidatos que entregariam “decência e respeito”.

“Estou convocando todos vocês independentes, e vocês que estão indecisos”, disse ela. “Valores e caráter são o mais importante, na liderança e na vida.”

Ao longo da semana, uma série de republicanos – incluindo ex-ocupantes de cargos e apoiadores de Donald Trump – também subiu ao palco na convenção para promover Harris como a melhor opção para novembro.

“Harris vai querer ser de centro-esquerda, não extrema esquerda”, diz Chris Shays, um ex-congressista republicano de Connecticut que compareceu à Convenção Democrata deste ano.

De acordo com Shays, a vice-presidente será puxada para o centro político americano porque é lá que a nação está.

No entanto, a estratégia de Harris não está isenta de riscos. Assim como os grupos democratas estão projetando suas ideias na campanha da vice-presidente, seus oponentes republicanos também estão.

E eles estão usando o passado de Harris, com posições e declarações mais liberais – e às vezes controversas – como evidência de que a falta de especificidade é apenas uma máscara para uma agenda de esquerda.

“O discurso dela foi o exemplo perfeito do que acontece quando você não tem soluções para oferecer para os problemas que você colocou na porta dos americanos, então você manipula e desvia”, disse a campanha de Trump em uma declaração respondendo ao discurso da vice-presidente na convenção.

Harris também tem evitado grandes coletivas de imprensa e entrevistas mais incisivas com veículos de imprensa tradicionais até agora – entrevistas que poderiam responsabilizá-la por posições passadas e pressioná-la por mais detalhes sobre políticas.

Seu discurso na semana passada abordando a economia foi uma das poucas ocasiões em que a vice-presidente apresentou propostas novas e concretas.

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Legenda da foto, Kamala Harris e seu marido Doug Emhoff de mãos dadas com Tim Walz e sua esposa Gwen Walz, durante a Convenção Nacional Democrata

Mas, nos últimos quatro dias, alguns indícios de como Kamala governaria começaram a surgir.

Ela propôs um crédito tributário de US$ 25 mil (cerca de R$137 mil) para cidadãos que queiram comprar um imóvel pela primeira vez.

A candidata também prometeu usar o poder do governo para reduzir o custo dos medicamentos vendidos sob receita e punir a exploração de preços nos alimentos.

Ela apoiou uma legislação bipartidária sobre imigração que foi bloqueada no Senado no início deste ano.

Kamala também prometeu lutar por uma lei federal que garantiria um direito básico ao aborto em todo os EUA, anulando proibições estaduais conservadoras.

Para alguns democratas, os detalhes até agora não são suficientes.

“Precisamos ouvir algumas coisas reais sobre políticas públicas”, diz Lewanna Tucker, presidente do Partido Democrata no Condado de Fulton, Georgia.

“Ela precisa nos mostrar um pouco mais o que está por trás das cortinas e falar sobre medidas estruturais que serão tomadas.”

Talvez detalhes mais concretos de política não sejam necessários. Em um momento em que a política americana é vista por grande parte do público americano como divisiva e tóxica, pode haver benefício em construir uma campanha política não em torno de especificidades políticas, mas sim uma campanha que apele à emoção.

Em 2008, Barack Obama fez uma campanha bem-sucedida baseada em esperança e mudança – o que não é exatamente a base de um plano claro.

“É um retorno a um nível de esperança que não creio que tenhamos experimentado coletivamente desde 2008”, diz Yasmin Radjy, que dirige o grupo de organização de base liberal Swing Left.

Ela diz que houve um cansaço entre os voluntários da esquerda nos últimos oito anos, mas a mudança para Kamala foi “como se um peso tivesse sido tirado dos ombros deles”.

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Legenda da foto, Apoiadora de Kamala Harris durante a Convenção Nacional Democrata

A disposição dos democratas em atacar o Projeto 2025 da Heritage Foundation – um plano controverso para uma nova administração republicana que Trump e sua campanha têm repetidamente desmentido – também revela os riscos de estar, mesmo que de forma tangencial, associado a detalhes de governança.

Em seu discurso de quinta-feira à noite, Harris prometeu superar as divisões partidárias e encontrar um terreno comum compartilhado.

“Eu prometo ser uma presidente para todos os americanos”, disse ela.

“Vocês podem sempre confiar em mim para colocar o país acima do partido e de mim mesma.”

Essas promessas não são inéditas na política americana, é claro. Garantias semelhantes foram feitas nas últimas décadas. Mas há algo diferente nesta candidata democrata e nesta convenção democrata.

A quantidade de estrelas desta semana – com aparições de Pink, Stevie Wonder e Lil Jon, entre outros – e o forte apoio da campanha em conexões com a cultura pop, como Charlie XCX (cantora britânica que batizou Harris com o termo em inglês brat, que vem sendo utilizado pela democrata em sua campanha), sugerem que ela está tentando se posicionar como um movimento cultural, e não político.

Ainda não se sabe se essa será uma estratégia eficaz.

Mas, pelo menos por enquanto, ela tirou o Partido Democrata da apatia e desespero do início de julho e o colocou em um empate técnico com Trump e os republicanos, à medida que se aproximam os meses finais cruciais desta campanha.