- Author, Courtney Subramanian
- Role, De Chicago (EUA) para a BBC News
Ao subir ao palco da Convenção Nacional do Partido Democrata, iniciada ontem (19/8) em Chicago, para ser confirmada como a candidata do partido à Presidência americana, Kamala Harris sabe que boa parte da audiência que a aplaude não a apoiava inicialmente.
Ao fazer um discurso que marca sua última convenção democrata como presidente dos Estados Unidos, Joe Biden exaltou a escolha da senadora para concorrer com o republicano Donald Trump à Presidência em novembro.
“Escolher Kamala foi a primeira decisão que tomei ao ser confirmado candidato e foi a melhor decisão que tomei em toda a minha carreira”, disse Biden.
“Ela é uma mulher dura, experiente e de grande inegridade”, acrescentou o presidente.
Mas, na verdade Harris, de 59 anos, enfrentou anos de dúvidas de algumas pessoas do seu próprio partido sobre sua capacidade de concorrer ao cargo público mais alto dos Estados Unidos. E estas pessoas incluem o próprio presidente Joe Biden, a quem ela continua a servir como vice-presidente.
Desde que substituiu Biden na candidatura democrata à Casa Branca, em meados de julho, Harris presenciou uma onda crescente de entusiasmo pela sua candidatura. Esta onda se reflete nas pesquisas, na arrecadação de fundos de campanha e nas enormes multidões que compareceram para acompanhar seus comícios pelo país.
Mas o momento político e a energia que ela gerou entre os democratas nas últimas semanas não vieram de graça.
Depois do fracasso da sua rápida candidatura presidencial em 2019, Harris começou a vice-presidência de forma instável, marcada por tropeços em entrevistas importantes, rotatividade de pessoal e baixos índices de aprovação. E, nos últimos três anos e meio na Casa Branca, ela teve dificuldade para atingir os eleitores americanos.
Seus aliados e assessores afirmam que, nos anos que se passaram desde aquelas dificuldades iniciais, Kamala Harris melhorou suas habilidades políticas, criou coalizões leais dentro do seu partido e estabeleceu credibilidade sobre temas importantes para a base democrata, como o direito ao aborto.
Ou seja, ela se preparou exatamente para o momento atual.
Na quinta-feira (22/8), quando ela aceitar formalmente a nomeação do Partido Democrata, Kamala Harris terá a oportunidade de se reapresentar no cenário nacional americano – menos de 80 dias antes da eleição que poderá torná-la a primeira mulher presidente dos Estados Unidos.
Mas, paralelamente, ela terá que provar que é capaz de comandar um partido que nunca a considerou sua líder natural e permanece dividido em relação à guerra em Israel e na Faixa de Gaza.
E, acima de tudo, ela precisará afastar qualquer dúvida remanescente entre a base democrata de que ela pode enfrentar o desafio de vencer o ex-presidente Donald Trump em uma eleição que permanece acirrada e imprevisível.
O caminho rumo à Casa Branca
Antes de se tornar uma figura de expressão nacional, Kamala Harris foi promotora pública de São Francisco e procuradora-geral da Califórnia. Ela construiu sua reputação de estrela em ascensão no seu partido – e esta posição lhe valeu o apoio do então presidente Barack Obama para que se tornasse a principal advogada do seu Estado, em 2010.
Mas quem acompanhou sua carreira de perto observou seus altos e baixos.
Como promotora, ela enfrentou protestos do público por se recusar a pedir a pena de morte para um homem condenado por matar um jovem policial. E, como procuradora-geral, ela defendeu a pena de morte vigente no Estado, mesmo com a sua oposição pessoal.
Após chegar ao pico da política estadual, Harris foi eleita para o Senado americano na mesma noite em que Donald Trump venceu Hillary Clinton, na eleição presidencial de 2016.
No seu curto mandato, Kamala Harris chegou às manchetes ao criticar e questionar diretamente o juiz da Suprema Corte Brett Kavanaugh, durante sua agitada audiência de confirmação para o cargo, em 2018.
“Você consegue se lembrar de alguma lei que dê ao governo o poder de tomar decisões sobre o corpo masculino?”, perguntou ela ao juiz, indicado por Trump. O diálogo reverberou nas redes sociais e nos programas noturnos de TV.
Como Obama, ela foi uma jovem senadora com ambições sem limites. E, a meio caminho do seu primeiro mandato, ela lançou sua candidatura à Presidência.
Foi uma campanha recebida com grande alvoroço, como a atual. Mais de 20 mil pessoas se reuniram na sua cidade natal de Oakland, na Califórnia, para o lançamento. Mas sua tentativa de se tornar a candidata democrata desmoronou antes mesmo das primeiras eleições primárias do partido.
Harris não conseguiu estabelecer uma identidade política clara que a diferenciasse de um grupo de rivais como Joe Biden e o senador de esquerda Bernie Sanders. Para os críticos, ela apoiou uma série de políticas progressistas, mas parecia não demonstrar claramente sua convicção a respeito.
Em um momento notório dos debates em junho de 2019, Harris questionou o histórico do seu então oponente Biden sobre o fim da segregação racial das escolas.
Ela atacou Joe Biden sobre um momento anterior da campanha, no qual ele relembrou, orgulhoso, seu trabalho com dois senadores segregacionistas. Harris o acusou de ser contrário ao transporte de estudantes entre as escolas para ajudar na integração.
“Havia uma menina da Califórnia que fazia parte da segunda classe integrada na sua escola pública e ela ia de ônibus para a escola todos os dias”, declarou Harris. “Aquela menina era eu.”
Mas os conflitos internos de campanha e a indecisão sobre quais questões deveriam receber mais importância acabaram afundando sua tentativa de chegar à Presidência.
A campanha foi marcada por “uma série de erros de principiante”, segundo Kevin Madden, assessor das campanhas presidenciais do republicano Mitt Romney em 2008 e 2012.
Para ele, “simplesmente não havia a substância necessária para que ela fosse aprovada no teste para ser comandante-chefe e realmente tirasse algumas das dúvidas dos eleitores. O resultado foi que seus oponentes preencheram essas lacunas para ela.”
Oito meses depois, Biden colocou de lado a rivalidade nas primárias e anunciou Kamala Harris como sua companheira de chapa. Ela se tornou a primeira mulher negra a ser indicada para o cargo – e, em janeiro de 2021, a primeira mulher vice-presidente dos Estados Unidos.
Começo acidentado
Cinco meses depois da posse como vice de Joe Biden, Harris enfrentou seu primeiro contratempo público, durante uma viagem internacional para a Guatemala e o México.
O objetivo da viagem era demonstrar seu papel no desenvolvimento de iniciativas econômicas para restringir o fluxo de migrantes da América Central para a fronteira sul dos Estados Unidos – uma missão de política externa atribuída a ela pelo presidente Biden.
Mas seu trabalho foi rapidamente ofuscado por uma entrevista constrangedora para o jornalista Lester Holt, da rede de TV americana NBC News. A vice-presidente ignorou repetidas questões sobre os motivos que a levaram a não ter ainda visitado a fronteira entre os Estados Unidos e o México.
Mais tarde, no mesmo dia, Harris tentou recuperar a narrativa durante uma entrevista coletiva com o então presidente da Guatemala, Alejandro Giammattei. Ela apresentou uma dura mensagem para os migrantes que pensavam em viajar para os Estados Unidos.
“Não venham”, disse ela. “Não venham.”
A entrevista à NBC News alimentou os ataques dos republicanos, que permanecem até hoje. Mas os comentários na segunda coletiva despertaram a ira dos progressistas e se espalharam rapidamente pelas redes sociais, embora outras autoridades do governo tenham manifestado a mesma retórica da vice-presidente.
Os aliados de Kamala Harris culpam a Casa Branca por não ter preparado adequadamente a vice-presidente e por atribuir a ela uma missão impossível.
Eles se queixaram de que, como a primeira mulher, afro-americana e asiático-americana a exercer a vice-presidência do país, ela sofreu expectativas desmedidas desde o início do mandato, sem que tivesse tempo para se estabelecer.
“No início, houve uma imensa pressão para assumir coisas”, declarou um antigo auxiliar, em condição de anonimato para que pudesse falar abertamente sobre sua época na Casa Branca.
Nos meses seguintes, Kamala Harris sofreu novos julgamentos com a alta rotatividade do seu pessoal, uma série de manchetes negativas sobre seu desempenho e aparições inexpressivas nos meios de comunicação. E, cerceada pelas restrições da pandemia de covid-19, seus compromissos públicos foram limitados, alimentando a percepção de que ela era invisível.
Quando os críticos a rotularam de “enfeite”, por ficar atrás do presidente Biden nas cerimônias de sanção de leis – da mesma forma que faziam regularmente seus antecessores homens no mesmo cargo –, optou-se por retirá-la desses eventos. E, segundo seus auxiliares, esta decisão trouxe para Harris novas críticas pela sua ausência.
“As pessoas tinham a expectativa de observá-la na vice-presidência como se ela fosse Michelle Obama, mas ela estava em um cargo… estabelecido para Al Gore ou Mike Pence”, afirma Jamal Simmons, estrategista democrata de longa data que trabalhou como diretor de comunicação de Kamala Harris durante seu segundo ano de mandato.
Roe x Wade e política de coalizão
Quando sua equipe buscava melhorar sua fraca imagem pública, Harris embarcou em uma função mais alta na política externa. Ela viajou para a Polônia logo após a invasão da Ucrânia pela Rússia, em 2022.
A vice-presidente também manteve reuniões bilaterais na Ásia, em meio ao aumento das tensões com a China, e substituiu Joe Biden na Conferência de Segurança de Munique, na Alemanha, naquele mesmo ano.
Mas, em maio de 2022, um terremoto político mudaria completamente a trajetória da vice-presidente.
Em um raro vazamento na Suprema Corte americana, veio a público o rascunho de um parecer revelando os planos de revogação da histórica decisão do caso Roe vs. Wade, que protegeu o direito federal das mulheres americanas ao aborto por quase meio século.
Harris aproveitou a oportunidade para ser a principal porta-voz de uma questão que Biden – católico devoto, descendente de irlandeses, que até evita pronunciar a palavra “aborto” – relutava em assumir.
“Como eles ousam? Como eles ousam dizer a uma mulher o que ela pode e o que não pode fazer com seu próprio corpo?”, declarou ela a uma multidão, em um evento de um grupo pró-escolha, no mesmo dia da publicação do vazamento bombástico.
Kamala Harris estava decidida a atacar os principais juízes do país antes que sua decisão fosse publicada oficialmente.
Esta questão se tornou uma força mobilizadora nas eleições de meio de mandato, poucos meses depois. Ela ajudou os democratas a atingirem resultados melhores do que o esperado no pleito legislativo e tomar o controle do Senado.
Ao buscar se tornar a porta-voz do governo americano sobre o aborto, Kamala Harris abordou a questão com “clareza de propósito”, segundo a ex-assessora de longa data Rachel Palermo. Ela reuniu legisladores estaduais, líderes religiosos, especialistas em direito constitucional, empresas de assistência médica e ativistas para participar de mesas redondas.
O movimento foi duramente criticado por alguns ativistas como não correspondendo à seriedade do momento, mas foi parte de uma estratégia para formar coalizões de políticos locais e estaduais. E também ajudou a estabelecer as bases da futura campanha presidencial.
Harris passou a maior parte da sua carreira entre o delicado leque de políticos democratas liberais e tradicionais. E ela sabia que todos os eventos eram importantes.
Sua equipe registrava cada reunião em planilhas detalhadas, mostrando cada oportunidade de fotografia ou jantar, seja com empresários negros ou com mulheres empreendedoras hispânicas. E Harris pôde usar estas informações no momento de convocar uma rede política de apoio mais profunda.
“Ela forçou a operação a se mobilizar em torno da sua visão da política, que são as coalizões”, declarou um alto funcionário.
O fato é que Kamala Harris sempre manteve em vista sua possível candidatura para a Casa Branca em 2028, como sucessora natural de Joe Biden, após um segundo mandato a ser conquistado por ele nas eleições de 2024.
Mas, quando surgiram os clamores pela substituição de Joe Biden como candidato, após os tropeços no debate contra Donald Trump no final de junho, alguns democratas a negligenciaram abertamente.
Eles e muitos analistas sugeriram governadores populares – como Gavin Newsom, da Califórnia, Josh Shapiro, da Pensilvânia, ou Gretchen Whitmer, de Michigan – como melhores substitutos para motivar os eleitores e assumir a luta contra Trump.
Até que, em 21 de julho, Biden telefonou para Harris e a informou dos seus planos de sair da disputa e apoiá-la como sua sucessora. A decisão tomou muitos dos seus aliados mais próximos de surpresa, mas a vice-presidente logo entrou em ação.
Naquele domingo, em um intervalo de 10 horas, ela ligou para mais de 100 autoridades do partido, membros do Congresso, líderes trabalhistas e ativistas. E, em questão de dias, todos os seus possíveis rivais, incluindo os poderosos governadores, já haviam desistido da disputa.
Ficava claro que Harris assumiria a candidatura democrata sem grandes dificuldades.
Como candidata, a atual vice-presidente ainda precisa definir uma agenda política detalhada ou se preparar para uma rigorosa entrevista coletiva.
Ela publicou um rascunho econômico na sexta-feira (16/8), propondo reduções de impostos para as famílias e um esforço mais amplo para limitar o preço dos medicamentos – sua visão mais detalhada para o futuro do país até aqui.
Embora os republicanos a acusem de evitar avaliações, sua equipe não vê necessidade de suspender o entusiasmo construído por ela no último mês. Estrategistas políticos afirmam que a campanha está pronta para capitalizar toda essa energia acumulada.
“O que Kamala Harris está vivenciando é uma maciça necessidade reprimida das pessoas de votar em alguém que não se chame Biden nem Trump”, afirma Kevin Madden. “Mas o teste sempre vem com a exposição a entrevistas, à imprensa, aos debates e aos desconfortáveis holofotes da campanha.”
O historiador presidencial Douglas Brinkley, que ajudou a organizar uma reunião de historiadores na residência oficial de Kamala Harris no ano passado, declarou que o fato de ela ser um quadro em branco para os eleitores traz mais benefícios do que prejuízos.
“Ela pode não ter conseguido florescer totalmente com Biden, mas também nunca teve atritos com ele”, explica Brinkley. “Por isso, ela conseguiu se posicionar para este momento e pode assumir o que há de bom nos anos de Biden e descartar as malas que ela quiser, ou discordar levemente.”
Sua entrada na campanha trouxe uma onda de apoio entre os democratas, mas não está claro se ela conseguirá transformar este apoio em um apelo generalizado.
Harris conseguiu adentrar em alguns grupos demográficos fundamentais que haviam escapado de Joe Biden, particularmente os eleitores negros, latinos e jovens. Mas ela está atrasada em outros setores que compuseram a coalizão vencedora de Biden em 2020.
As pesquisas recentes colocam Harris à frente ou empatada com Trump em seis dos sete Estados decisivos, segundo o boletim Cook Political Report publicado na quarta-feira (14/8). Em maio, quando Biden ainda era o candidato democrata, Trump estava à frente ou empatado em todos os sete Estados.
O discurso da noite de quinta-feira (22/8), durante a convenção do Partido Democrata, será o momento mais importante da carreira política de Kamala Harris.
Enquanto a convenção republicana serviu de coroação para Donald Trump (nomeado candidato do partido pela terceira vez consecutiva), o súbito crescimento de Harris faz com que seu discurso passe a ser o momento fundamental para definir quem ela realmente é.
Harris já esteve no palco antes, mas um de seus altos auxiliares declarou que o discurso irá se concentrar mais na sua história pessoal do que fizeram os candidatos anteriores.
“Esta é a questão principal. Por que ela está concorrendo à Presidência? Qual é sua visão para o país?”, declarou Jamal Simmons. “[O discurso] irá ajudar a unir os cordões da sua política e da sua vida política, para que faça sentido para as pessoas.”
Mas, ao longo dos quatro dias de convenção, Kamala Harris precisa definir sua mensagem sobre criminalidade, inflação, economia e imigração – questões que a campanha de Trump irá discutir implacavelmente até o dia das eleições.
O estrategista republicano de longa data Whit Ayres afirma que Harris também precisará, em algum momento, esclarecer as posições à esquerda que ela assumiu em 2019, durante sua candidatura fracassada à Presidência.
“Sua maior vulnerabilidade é que existem muitas evidências de que ela é uma liberal de São Francisco com todo um conjunto de posições políticas de extrema esquerda que estão fora do pensamento americano comum”, afirma ele, “e ela ainda não precisou responder a respeito.”
Harris também irá enfrentar protestos sobre as ações de Israel na Faixa de Gaza. Esta é uma questão polarizadora que dividiu politicamente o seu partido.
A candidata tem sido mais dura ao convocar um cessar-fogo e condenar a morte de civis do que o presidente Biden, mas não questionou o firme apoio do governo a Israel. E esta posição pode levar ao afastamento da ala progressista do partido.
“O seu posicionamento [sobre Gaza] será sua jogada mais difícil”, afirma Douglas Brinkley.
Ainda assim, os aliados e assessores que a prepararam ao longo da última semana defendem que ela construiu as bases da sua candidatura presidencial ao longo dos últimos quatro anos – às vezes, com dificuldades – embora poucos esperassem que ela realmente fosse se encontrar nesta posição na eleição deste ano.
“A oportunidade é a preparação com um pouco de sorte”, afirmou um importante assessor político. “Eu não chamaria isso de sorte, já que ninguém queria que fosse desta forma, mas ela certamente estava preparada para este momento de oportunidade.”
A doadora democrata Susie Tompkins Buell é uma das fundadoras das empresas Esprit e The North Face. Ela ajudou Kamala Harris a arrecadar US$ 12 milhões (cerca de R$ 64,9 milhões) para a campanha em um evento em São Francisco, no início deste mês.
Tompkins Buell conhece Kamala Harris desde os anos 1990 e afirma que não se surpreendeu com seu desempenho nas últimas semanas.
Nos dias que se seguiram ao duvidoso desempenho de Biden no debate, Tompkins Buell compareceu a um evento com a vice-presidente. Ela declarou que pôde perceber a mudança em andamento.
A empresária conta que, quando disse a Harris que apertasse seu cinto de segurança, a futura candidata democrata brincou: “Eu nasci com um cinto de segurança.”
“Gostei da sua resposta”, comenta Tompkins Buell. “Foi rápida e certeira. Ela está pronta.”
Fonte: BBC
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