- Author, Sofia Bettiza
- Role, Correspondente de Gênero e Identidade do Serviço Mundial da BBC
As imagens das boxeadoras Imane Khelif, da Argélia, e Lin Yu-ting, de Taiwan, no pódio em Paris serão consideradas algumas das mais inesquecíveis das Olimpíadas de 2024.
Há um enorme debate sobre o fato de o Comitê Olímpico Internacional (COI) ter liberado a dupla para competir no boxe feminino, apesar de ambas terem sido desclassificadas do Campeonato Mundial no ano passado por não cumprirem critérios de elegibilidade. As lua«tadoras teriam apresentado certas características biológicas que excederiam os limites para classificação de feminilidade.
Em meio ao calor das discussões, a Ciência lança cada vez mais luz sobre as diferentes composições cromossômicas — e as vantagens que elas podem trazer no esporte.
Mas uma investigação está em curso e mesmo entre especialistas que dedicam a vida profissional a estudar o tema, há diferentes interpretações sobre o que dizem as evidências.
Sabemos que o processo de determinação do sexo começa quando o feto está em desenvolvimento. A maioria das mulheres recebe dois cromossomos X (XX), enquanto a maioria dos homens recebe um cromossomo X e um cromossomo Y (XY).
No entanto, em algum momento da gravidez, os órgãos reprodutivos de alguns bebês não se desenvolvem da mesma forma do que acontece na maioria das pessoas.
Isso é conhecido como diferenças de desenvolvimento sexual, ou DDS.
Esse grupo abarca cerca de 40 condições, que envolvem genes, hormônios e órgãos reprodutivos durante o desenvolvimento uterino.
Isso significa que o desenvolvimento sexual de algumas pessoas é diferente do desenvolvimento da maioria.
Essas anomalias cromossômicas são raras — mas ganharam destaque por causa da disputa do boxe nas Olimpíadas.
O que sabemos sobre as duas boxeadoras no centro do debate?
O presidente-executivo da Associação Internacional de Boxe, Chris Roberts, disse à BBC Sport que cromossomos XY — marcas do sexo masculino — foram encontrados em “ambos os casos”.
Mas a questão não é tão simples.
Como as variações genéticas são tão diversas, alguns especialistas dizem que é impossível estabelecer que todas as pessoas com cromossomo Y são homens e todas as pessoas sem cromossomo Y são mulheres.
“Apenas observar a presença de um cromossomo Y não é suficiente para responder se alguém é homem ou mulher”, diz Alun Williams, que pesquisa fatores genéticos relacionados ao desempenho esportivo no Instituto de Esporte da Universidade Metropolitana de Manchester, no Reino Unido.
“O cromossomo Y é obviamente um marcador muito bom, já que a maioria das pessoas com ele são do sexo masculino… Mas não se trata de um indicador perfeito.”
Para algumas pessoas com diferenças de desenvolvimento sexual (DDS), o Y não é um cromossomo masculino típico, totalmente formado. Pode haver algum material genético ausente, danificado ou trocado pelo cromossomo X, a depender da variação encontrada.
Quando se trata de ser homem ou mulher, geralmente o mais crucial é um gene específico, chamado SRY, sigla em inglês para região determinante do sexo do cromossomo Y.
“Isso é o que chamamos de ‘gene do macho'”, diz Emma Hilton, bióloga do desenvolvimento que estuda doenças genéticas.
Ela também é curadora da instituição Sex Matters, que defende que Imane Khelif e Lin Yu-ting não deveriam competir até que mais testes sejam feitos.
Hilton acrescenta: “O SRY é a chave mestra do desenvolvimento sexual.”
Há algumas pessoas nascidas com cromossomos XY que perderam o que a bióloga chama de gene “criador de machos”.
“Essas pessoas não produzem testosterona. Eles desenvolvem uma anatomia feminina muito típica”, diz Hilton.
Portanto, um teste que identifica os cromossomos XY não oferece uma imagem completa. No caso de Imane Khelif e Lin Yu-ting, a IBA não divulgou detalhes sobre a forma como ambas foram examinadas.
No entanto, Hilton também diz que, na maioria das pessoas com cromossomos XY, o gene SRY está presente. Essas pessoas geralmente têm testículos, que ficam dentro do corpo.
“Quando atingem a puberdade, elas começam a produzir testosterona — e isso representa uma vantagem masculina nos esportes”, complementa Hilton.
O exemplo mais famoso do DDS é o da sul-africana Caster Semenya — duas vezes medalhista de ouro olímpica e três vezes campeã mundial nos 800m.
No entanto, o professor Alun Williams pondera que não há evidências diretas de que os atletas com DDS tenham a mesma vantagem de homens típicos.
O obstáculo aqui está em um gene necessário para gerar a genitália externa — algo que os meninos precisam para desenvolver um pênis.
Qualquer pessoa com a mesma condição de Caster Semenya tem uma mutação nesse gene, que o impede de funcionar normalmente.
No útero, elas desenvolverão uma anatomia masculina até o estágio final de crescimento do pênis — e quando o órgão não se desenvolve, começarão a criar uma vulva e um clitóris.
Mas elas também não desenvolvem órgãos reprodutivos femininos, pois não têm colo do útero ou útero.
Essas pessoas também não menstruam e não podem engravidar. Fazer sexo pode ser difícil para elas.
Descobrir esse tipo de mutação genética pode ser um choque.
“A mulher mais recente que nós diagnosticamos com cromossomos XY tinha 33 anos”, relata Claus Højbjerg Gravholt, professor de endocrinologia na Universidade de Aarhus, na Dinamarca, que passou os últimos 30 anos lidando com DDS.
Essa paciente veio vê-lo porque não tinha ideia do que causava as dificuldades para engravidar.
“Descobrimos que ela não tinha útero, então nunca seria capaz de ter um filho. Ela ficou absolutamente arrasada.”
Gravholt diz que as implicações decorrentes do questionamento da identidade de gênero de alguém podem ser desestabilizadoras — e o especialista frequentemente encaminha os pacientes para um psicólogo.
“Se eu te mostrasse a foto dela, você diria: é uma mulher. Ela tem corpo feminino, é casada com um homem. Ela se sente como uma mulher. E esse é o caso da maioria de meus pacientes.”
Quando Gravholt perguntou por que a paciente não consultou um médico após notar que não menstruava, ela disse que havia outra mulher mais velha em sua família que nunca menstruava — então achou que era algo normal.
O Dr. Gravholt encontrou outro tipo de mutação em seus pacientes.
O médico detectou casos de homens com cromossomos XX — que normalmente só são vistos em mulheres.
“Esses homens são inférteis. Eles se parecem com homens normais, mas os testículos deles são menores que a média e não produzem espermatozoides. É sempre devastador quando eles descobrem. À medida que envelhecem, param de produzir testosterona, como a maioria dos homens faz.”
Em algumas culturas, falar abertamente sobre menstruação e anatomia feminina não é algo culturalmente aceitável. Em algumas partes do mundo, as mulheres podem não ter as informações necessárias para compreender que há algo atípico no corpo delas.
E é por isso que os especialistas acreditam que muitas DDS nunca são diagnosticadas — o que significa que dados sobre o número de casos no mundo são escassos.
A controvérsia de gênero mudará as Olimpíadas?
As pessoas com DDS têm alguma vantagem injusta na prática esportiva? A resposta curta é que não há dados suficientes para chegar a uma conclusão definitiva.
“Não me surpreenderia se algumas pessoas com algum tipo de DDS tivessem algumas vantagens físicas sobre as mulheres”, avalia o professor Alun Williams.
Essas vantagens incluem maior massa muscular, além de ossos maiores e mais longos.
Ele acredita que esses indivíduos também podem ter níveis mais elevados de hemoglobina no sangue, o que leva a um melhor fornecimento de oxigênio para o trabalho de músculos.
O especialista acrescenta que sua opinião representa um consenso geral entre os estudiosos da área, mas que são necessárias mais evidências para ter certeza sobre isso.
Quando se trata de Imane Khelif e Lin Yu-ting, não há informações suficientes para saber se elas têm um DDS.
A regulamentação dos esportes de elite, que normalmente fazem divisões entre categorias binárias de homens e mulheres nas competições, é complicada porque a biologia do sexo em si é complexa — e não exclusivamente binária.
Alguns especialistas apelam à obrigatoriedade de testes sexuais nos próximos Jogos Olímpicos. Esse grupo inclui Reem Alsalem, relatora especial da ONU sobre a violência contra mulheres e meninas.
“A triagem de DNA agora é muito fácil”, diz Hilton. “Um simples esfregaço na bochecha seria suficiente e é um teste minimamente invasivo.”
Mas há divergências sobre essa necessidade entre os cientistas.
“Uma amostra da bochecha não permitiria chegar a uma conclusão sólida sobre o sexo de alguém e uma vantagem potencial no esporte”, contrapõe Williams.
Ele argumenta que um teste sexual abrangente teria que incluir ao menos três categorias:
- Genética, incluindo a procura de um cromossomo Y e do gene SRY;
- Hormônios, incluindo, mas não se limitando a testosterona;
- A ponderação do fato de que algumas pessoas podem ter um cromossomo Y, mas serem completamente insensíveis à testosterona.
Ele acredita que isso não está sendo feito atualmente porque envolve métodos caros, requer pessoas com conhecimentos muito específicos e há preocupações éticas sobre o procedimento de avaliação.
“Esses testes podem ser humilhantes. Eles incluem medidas das partes mais íntimas da anatomia, como o tamanho dos seios e do clitóris, a profundidade da voz e a extensão dos pelos no corpo.”
Uma coisa é certa: esta controvérsia não vai desaparecer.
Por enquanto, a Ciência ainda não é capaz de oferecer uma visão definitiva sobre como as pessoas com diferentes composições cromossômicas devem ser categorizadas no esporte de elite.
Para aqueles que passam a vida no mundo das pesquisas, a esperança é que o atual debate traga mais atenção e investimento para esse ramo de investigação.
Fonte: BBC
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