- Author, Orla Guerin
- Role, Da BBC News no Líbano
À medida que a guerra em Gaza continua, há receios crescentes de que possa eclodir outro conflito no Oriente Médio — com consequências devastadoras para a região e além dela.
Israel e o grupo armado libanês Hezbollah (apoiado pelo Irã) têm trocado tiros através da sua fronteira comum durante os últimos nove meses. Além de um grupo armado, o Hezbollah também é um partido político.
Se esse conflito evoluir para uma guerra, poderá ofuscar a destruição em Gaza, atrair milícias apoiadas pelo Irã no Iraque, na Síria e no Iêmen, espalhar faíscas por todo o Oriente Médio e envolver os EUA. O próprio Irã poderia intervir diretamente.
A Organização das Nações Unidas (ONU) alerta para uma “catástrofe além da imaginação”.
Por enquanto, uma guerra de baixa intensidade ferve no calor do verão, ao longo de um trecho de fronteira de 120 km. Uma faísca aqui poderia incendiar o Oriente Médio.
Sobre o som das ondas e do ruído das brincadeiras na praia, um barulho surge — um estrondo repentino e profundo.
Em pouco tempo, há nuvens de fumaça vindas de uma encosta distante após um ataque israelense.
Ao redor da piscina de um resort, alguns banhistas ficam parados por um tempo para observar o horizonte.
Outros não movem um membro bronzeado.
As explosões fazem parte do som do verão de 2024 na histórica cidade libanesa de Tiro, enquanto o Hezbollah e Israel trocam tiros através da fronteira, a 25 quilômetros de distância.
“Mais um dia, mais uma bomba”, diz Roland, de 49 anos, encolhendo os ombros. Ele mora no exterior, mas está de férias em sua terra natal.
“De alguma forma, nos acostumamos com isso ao longo dos meses”, diz seu amigo Mustafa, 39 anos, “embora as crianças ainda estejam um pouco assustadas”. Ele acena para sua filha, Miral, de 7 anos, que está toda molhada da piscina.
“Quando ela ouve uma explosão, ela sempre pergunta: ‘vai ter uma bomba agora?'”, diz ele.
No início deste mês, houve uma grande explosão no bairro de Mustafa em Tiro, enquanto a família de quatro pessoas estava fazendo uma refeição.
Israel matou um alto comandante do Hezbollah, Mohammed Nimah Nasser.
“Ouvimos o barulho”, diz Mustafa, “e continuamos comendo”.
Mas a presença de banhistas livremente na praia de Tiro pode estar com os dias contados. Esta cidade estará na linha de fogo em caso de guerra total, juntamente com o resto do sul do Líbano, um reduto do Hezbollah.
Estamos agora à beira de uma guerra potencialmente devastadora que ambos os lados dizem não querer. O Irã também não parece querer isso.
Então como chegamos aqui?
A escalada do conflito
No dia 8 de outubro de 2023 — um dia depois de homens armados do Hamas terem saído de Gaza e terem matado cerca de 1,2 mil israelenses e terem feito 251 reféns — o Hezbollah disparou contra alvos israelenses a partir do Líbano.
O grupo armado islâmico xiita disse que estava agindo em apoio a Gaza.
Logo, Israel revidou.
O Hezbollah, que também é um partido político, é a força mais poderosa no Líbano.
Tal como o Hamas, é classificado como organização terrorista por muitos países, incluindo o Reino Unido e os EUA.
Mas, ao contrário do Hamas, o Hezbollah tem poder de fogo para ameaçar seriamente Israel.
Acredita-se que tenha um arsenal de mais de 150 mil foguetes e mísseis — alguns guiados com precisão — capazes de causar grandes danos em todo o país.
Simplificando, o Hezbollah — palavra que pode ser traduzida como “Partido de Deus” — tem mais armas do que muitos países.
O seu apoiador, o Irã — que nega o direito de existência de Israel — tem o prazer de treinar e financiar os inimigos do Estado judeu.
O conflito tem escalado, com milhares de ataques transfronteiriços.
Alguns países como a Alemanha, os Países Baixos, o Canadá e a Arábia Saudita já disseram aos seus cidadãos para deixarem o Líbano imediatamente.
O Reino Unido desaconselhou todas as viagens ao país e está aconselhando os britânicos que estão no país a partirem — enquanto ainda podem.
Até agora, ambos os lados estão atacando principalmente alvos militares, perto da fronteira — mantendo-se dentro das conhecidas linhas vermelhas.
Mas aqui, do lado libanês, temos visto destruição em áreas civis, com campos arrasados, casas destruídas e vilarejos abandonados.
E a atual retaliação já expulsou dezenas de milhares de pessoas das suas casas — mais de 90 mil no Líbano e cerca de 60 mil em Israel.
Autoridades israelenses dizem que 33 pessoas foram mortas até agora em ataques do Hezbollah, a maioria soldados.
As perdas do Líbano são muito maiores, com 466, de acordo com o Ministério da Saúde local. A maioria dos mortos eram soldados.
Sally Skaiki não estava lutando no conflito.
‘Não podemos perdoá-los’
“Nunca a chamei de Sally”, diz seu pai, Hussein Abdul Hassan Skaiki. “Eu sempre a chamei de ‘minha vida’ — ela era tudo para mim.”
“Ela era a única garota da casa e nós a mimávamos, eu e seus três irmãos.”
Sally, 25 anos, era paramédica voluntária. Ela foi morta por um ataque israelense após o pôr do sol de 14 de junho, enquanto estava na porta de seu prédio.
Seu pai usa o preto do luto e o lenço verde do movimento xiita Amal, aliado do Hezbollah.
Encontramos com ele na comunidade de Deir Qanoun En-Naher, a 30 km da fronteira.
A estrada principal está repleta de cartazes desbotados pelo sol de combatentes mortos na batalha contra Israel — alguns nos últimos meses, outros em 2006, quando os dois lados entraram em guerra pela última vez.
Naquele ano, o Hezbollah combateu Israel até a paralisação do conflito, mas a um custo enorme para o Líbano e o seu povo.
Houve destruição massiva e mais de 1 mil civis libaneses foram mortos — segundo dados oficiais — juntamente com um número não confirmado de combatentes do Hezbollah.
O número de mortos em Israel foi de 160, segundo o governo, a maioria deles soldados.
Ao lado de Hussein há um grande pôster de Sally, com lenço na cabeça e uniforme de paramédica. Ele fala da filha com orgulho e angústia.
“Ela adorava ajudar as pessoas”, diz ele. “Qualquer problema que acontecesse, ela corria para ajudar. Ela era muito querida na comunidade. Sempre teve um sorriso no rosto.”
Enquanto conversamos, ouvimos um forte estrondo que sacode as janelas.
Hussein diz que é uma ocorrência normal e diária.
“Há muito tempo que Israel mata o nosso povo aqui”, diz ele.
“Não podemos perdoá-los. Não há esperança de paz com eles.”
Desta vez, não há morte ou destruição. Em vez disso, os aviões de guerra israelenses estão quebrando a barreira do som para espalhar o medo.
E, desde outubro, Israel tem espalhado outra coisa no sul do Líbano — aglomerados sufocantes e ardentes de fósforo branco, contidos em munições.
A substância química inflama imediatamente ao entrar em contato com o oxigênio. Ela adere à pele e às roupas e pode queimar os ossos, de acordo com a Organização Mundial da Saúde.
Moussa al-Moussa, um agricultor de postura curvada pelos seus 77 anos, sabe muito bem.
Ele diz que Israel disparou bombas de fósforo branco contra as suas terras na comunidade de al-Bustan todos os dias durante mais de um mês, o que lhe roubou o fôlego e o seu sustento.
“Eu estava com meu lenço e o enrolei na boca e no nariz até ser levado ao hospital”, ele me conta, apontando para o keffiyeh vermelho e branco, o tradicional lenço árabe, em sua cabeça.
“Não tínhamos máscaras. Eu não conseguia respirar. Eu não conseguia ver um metro à minha frente. E, se você tocar em um fragmento [da bomba] uma semana depois, ele irá pegar fogo e queimar novamente.”
O organização internacional de direitos humanos Human Rights Watch identificou o uso de fósforo branco em várias áreas povoadas no sul do Líbano, incluindo al-Bustan.
O grupo aponta que o uso de fósforo branco por Israel é “ilegalmente indiscriminado em áreas povoadas”.
As Forças de Defesa de Israel (IDF, na sigla em inglês) contestam isso, dizendo que o uso de projéteis de fósforo branco para criar uma cortina de fumaça “é legal segundo o direito internacional”. Afirmam ainda que esses projéteis não são usados em áreas densamente povoadas, “com algumas exceções”.
Assim como muitos agricultores ao longo da fronteira, Moussa teme que Israel tenha envenenado a sua plantação de tabaco e as suas oliveiras.
“O fósforo branco queima o solo, queima as pessoas, as plantações e os edifícios”, diz ele.
Mesmo que possa voltar para casa, ele tem medo de fazer a colheita, pois teme que o material colhido prejudique a sua família ou os seus compradores.
Ele vive no limbo – na sala de aula 4B de uma escola profissional em Tiro. Cerca de 30 famílias que fugiram da zona fronteiriça estão abrigadas no prédio.
A roupa lavada está espalhada pelo pátio da escola. Um garotinho solitário corre de bicicleta pelos corredores vazios.
Quando pergunto a Moussa quantas guerras ele viu, ele começa a rir.
“Passamos nossas vidas em guerras”, diz ele. “Só Deus sabe se vem outra.”
‘Não temos medo’
Como um dos comandantes mais graduados do Hezbollah, Mohammed Nimah Nasser, era um homem procurado.
Ele lutou contra Israel em 2006, já lutava antes e continuou lutando na Síria e no Iraque. Nos últimos meses, ele “planejou, liderou e supervisionou muitas operações militares contra o inimigo israelense”, segundo o Hezbollah.
Israel o localizou em Tiro em 3 de julho. A morte veio do céu em plena luz do dia, com um ataque aéreo que transformou seu carro em uma bola de fogo.
No reduto do Hezbollah, no sul de Beirute, ele recebeu um funeral de herói, ou melhor, de “mártir”.
O evento foi cuidadosamente coreografado e rigorosamente segregado – homens numa área, mulheres em outra– incluindo a imprensa.
Seu caixão, envolto na bandeira amarela do Hezbollah, foi levado por carregadores em uniformes camuflados e boinas vermelhas. Muitos outros soldados ficaram em posição de sentido. Havia uma banda de música com uniformes brancos impecáveis, embora não em perfeita harmonia.
Parecia um funeral de Estado – num país que carece de um Estado funcional.
O Líbano não tem presidente, tem um governo provisório e uma economia destroçada.
O país está dividido pelo grupo armado e esvaziado pela corrupção, e os seus cidadãos são deixados à própria sorte. Muitos libaneses estão cansados. A última coisa que querem é outra guerra.
Mas quando as orações fúnebres terminaram, a conversa entre os enlutados era de “martírio” e não de morte, e de prontidão para a guerra, se ela vier.
Hassan Hamieh, um enfermeiro de 35 anos, diz que lutaria. “Não temos medo.”
“Na verdade, ansiamos por uma guerra total. O martírio é o caminho mais curto para Deus. Jovens ou velhos, todos nós participaremos desta guerra, se ela nos for imposta.”
O líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, afirmou que o grupo armado está pronto, mas não ansioso, para a guerra. Ele diz que se houver um cessar-fogo acordado em Gaza, o Hezbollah cessará também, imediatamente.
Isso satisfará Israel? Talvez não.
O país vê o Hezbollah como uma ameaça permanente muito próxima. No mínimo, quer que o seu inimigo fortemente armado se retire da fronteira.
Houve muitas ameaças de guerra. O Ministro da Educação de Israel, Yoav Kish, disse que o Líbano seria “aniquilado” O ministro da Defesa, Yoav Gallant, entrou na conversa, dizendo que o país voltaria “à idade da pedra”.
À medida que os ataques e contra-ataques continuam, as famílias são destruídas. Este mês, os pais foram arrancados dos filhos, e os filhos dos pais.
Um casal israelense foi morto em seu carro por foguetes do Hezbollah enquanto voltava para casa nas Colinas de Golã, ocupadas por Israel, na Síria. Eles deixaram três filhos adolescentes.
E no sul do Líbano, três crianças foram mortas em um ataque israelense no início desta semana. Tinham entre quatro e oito anos e os seus pais eram trabalhadores agrícolas sírios.
As Forças de Israel aprovaram “planos operacionais para uma ofensiva no Líbano” há um mês.
Por enquanto, nenhum tanque está passando pela fronteira. Não houve nenhuma decisão política de ataque. Israel ainda está em guerra em Gaza, e os combates em duas frentes podem sobrecarregar os militares.
Mas, sem uma solução diplomática entre Israel e o Hezbollah – dois velhos inimigos –, uma guerra total pode estar a caminho, se não agora, então mais tarde.
Reportagem adicional de Goktay Koraltan e Ghassan Ibraheem
Fonte: BBC
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