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Legenda da foto, Com decisão recente do STF, ao portar maconha o usuário não poderá mais ser submetido a um processo penal, nem terá um registro na sua ficha criminal

A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de fixar parâmetros que diferenciem o usuário do traficante de maconha pode ter impacto de reduzir a quantidade de pessoal presas por tráfico, dizem os defensores da medida.

No entanto, não haverá soltura automática de presos, já que as pessoas presas que possam ser beneficiadas pela nova decisão terão que apresentar um recurso à Justiça pedindo sua liberdade, explicou à BBC News Brasil a subprocuradora-geral da República Luiza Frischeisen.

Com a decisão, portar a droga passa a ser um ilícito administrativo e o usuário não poderá mais ser submetido a um processo penal, nem terá um registro na sua ficha criminal. Também não haverá mais a possibilidade de ser submetido à pena de prestação de serviços à comunidade.

Por outro lado, o STF manteve a possibilidade de aplicação de medidas educativas, como o comparecimento a um curso preventivo sobre consumo de drogas. Além disso, a polícia deverá apreender a droga.

O julgamento não tratou da venda de drogas, que continua sendo ilegal no país. Mas o STF decidiu estabelecer parâmetros para diferenciar usuários e traficantes, com objetivo de padronizar a atuação das polícias no país e evitar que pessoas com a mesma quantidade de drogas sejam tratadas de forma diferente.

A Corte estabeleceu que, até que o Congresso aprove uma lei sobre o tema, o parâmetro para diferenciar uso pessoal de tráfico será a quantidade de 40 gramas de cannabis sativa ou a posse de seis plantas fêmeas.

Isso significa que uma pessoa identificada pela polícia portando até 40 gramas de droga não poderá ser enquadrada como traficante, a não ser que existam outros elementos além da presença da droga que apontem para esse crime, como posse de arma, caderno com anotações sobre vendas ou balança para pesar a substância.

Defensores da medida, como a associação que representa os peritos da Polícia Federal (APCF) e integrantes da Procuradoria-Geral da República, afirmam que a falta de parâmetros objetivos para que policiais, promotores e juízes diferenciem o consumo da venda faz com que muitas pessoas detidas no país com pequenas quantidades de maconha, por exemplo, acabem presas por tráfico, mesmo quando não há outros elementos que apontem para esse crime.

Estatísticas citadas pelos ministros no julgamento mostram que o problema afeta principalmente pessoas negras e pobres.

“Na falta de critério, a mesma quantidade de drogas nos bairros mais elegantes das cidades brasileiras é tratada como consumo e, na periferia, é tratada como tráfico. O que nós queremos é acabar com essa discriminação entre ricos e pobres, basicamente entre brancos e negros”, disse Barroso.

Os ministros ressaltaram, porém, que os parâmetros adotados servirão como uma referência básica, podendo o juiz considerar o indivíduo como usuário, mesmo que esteja com quantidade maior, ou ainda enquadrá-lo como traficante, mesmo que tenha quantidade menor.

‘Não haverá soltura automática de presos’

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Legenda da foto, Presos terão de apresentar recurso à Justiça solicitando a revisão da pena

Há mais de 180 mil pessoas presas hoje no país por tráfico de drogas. A decisão do STF pode beneficiar pessoas que foram detidas com até 40 gramas de maconha, sem outras provas do crime de tráfico.

No entanto, não deve ocorrer uma liberação automática de presos, explicou a subprocuradora-geral da República Luiza Frischeisen à BBC News Brasil, em entrevista em 2023, quando a Corte já analisava o caso

Cada pessoa detida pelo crime de tráfico de drogas e potencialmente impactada pelo julgamento, ressalta, terá que apresentar um recurso à Justiça solicitando a revisão de sua pena.

“O que vai acontecer [após a decisão do STF] é que, nos casos em que houver pequena quantidade [de droga apreendida], as defesas vão arguir que aquilo não seria crime. E isso vai ser analisado caso a caso. Então, será um impacto de médio prazo”, afirmou.

“O efeito mais imediato é que pessoas com pequenas quantidades não seriam mais presas e processadas, se não estiverem presentes outros elementos que denotem tráfico, como por exemplo, anotações de contabilidade [da venda de drogas], a balança [usada para pesar a droga vendida], o dinheiro, a arma, a munição”, acrescentou, na ocasião.

A fixação de parâmetros é apoiada também pela associação que representa os peritos da Polícia Federal (APCF).

Segundo Davi Ory, advogado que representa a associação, a APCF avalia que “o principal fator para o aumento do encarceramento foi a adoção de critérios subjetivos demasiadamente amplos e que transferiram à estrutura do Poder Judiciário o ônus de definição de quem seria usuário e traficante tendo por base ‘as circunstâncias sociais e pessoais’, bem como o ‘local e condições em que se desenvolveu a ação'”.

Isso, ressalta, estaria gerando prisões indevidas, principalmente, de pessoas negras e pobres.

Já o advogado Cid Vieira, que representa a Federação Amor Exigente no julgamento do STF, questiona o impacto do julgamento na redução dos presos.

A organização, que atua como apoio e orientação aos familiares de dependentes químicos, foi uma das instituições aceitas pelo Supremo para atuar no julgamento como amicus curiae (colaborador da Justiça que detém algum interesse social no caso, mas não está vinculado diretamente ao resultado).

“Eu não tenho notícia que dependente químico esteja preso. O artigo 28 da atual legislação de drogas não prevê a prisão daqueles que sejam surpreendidos com posse de droga para consumo pessoal. É uma colocação que não existe. Não é sob esse aspecto que as prisões vão estar mais lotadas ou não”, afirmou Vieira, que conversou em 2023 sobre esse tema com a BBC News Brasil.

Presos por tráfico são quase um terço da população carcerária

Estudos indicam, no entanto, que a atual Lei de Drogas, sancionada em 2006 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, contribuiu para o aumento do número de pessoas presas por crimes relacionados ao tráfico de drogas.

Essa lei acabou com a pena de prisão para usuários e aumentou a punição para traficantes. A expectativa era que isso reduziria o número de prisões, mas o efeito foi o oposto, afirma o advogado Pierpaolo Bottini, que era secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça naquela época.

“A impressão que se tinha é que isso ia desencarcerar, porque as pessoas que estavam presas por uso iam sair [da prisão]. Mas acabou aumentando o encarceramento porque justamente as autoridades policiais acabaram jogando tudo para o tráfico, então acabou tendo efeito absolutamente inverso”, disse em entrevista à BBC News Brasil em maio de 2023.

Segundo dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais, órgão do Ministério da Justiça e Segurança Pública, quase um terço da população carcerária no país está preso por crimes previstos na Lei de Drogas.

No caso das prisões estaduais, por exemplo, onde havia um total de 644.316 pessoas detidas provisoriamente ou condenadas no segundo semestre de 2023 (dado mais recente), 199.731 estavam presas por esse tipo de delito, 31% do total.

Um estudo de 2023 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que analisou uma amostra dos processos julgados na primeira instância judicial de todo o país no primeiro semestre de 2019, estimou que 58,7% dos réus que respondiam por tráfico de maconha portavam até 150 gramas. E apenas 11,1% levavam mais de dois quilos da droga.

Uma análise semelhante dos réus em processos por tráfico de cocaína identificou que 62,3% dos processos se referem a 100 gramas ou menos, enquanto 6,8% dos casos tratavam de apreensões de mais de um quilo.

Limite de 40g poderia impactar 33% dos condenados por tráfico de maconha

Esse mesmo estudo estimou quantas pessoas condenadas por tráfico de maconha poderiam ter sua pena revista caso fossem fixadas quantidades máximas de porte para consumo dessas drogas.

Foram analisados processos de 5.121 réus por tráfico de drogas julgados na primeira instância judicial no primeiro semestre de 2019, uma amostra representativa do total de pessoas presas por esse crime no país.

A conclusão do estudo do Ipea foi que, com o parâmetro de 40 gramas, 33% dos condenados por tráfico de maconha podem ter sua pena revista.

Os cenários testados pelo Ipea levaram em conta parâmetros propostos em uma nota técnica do Instituto Igarapé, de 2015, que analisou pesquisas sobre uso de drogas no Brasil e experiências internacionais de fixação de quantidades para diferenciar tráfico e consumo.

No caso da cocaína, 31% dos condenados por tráficos poderiam ter sua pena revista caso o STF fixasse um parâmetro de 10 gramas para consumo – o que não ocorreu neste julgamento.

“Os cenários acima constituem um exercício interpretativo para projetar o alcance de referidos parâmetros exclusivamente aplicados à quantidade de drogas, mas somente a análise dos casos concretos permitiria a reclassificação da conduta como consumo pessoal”, ressalta o estudo.

Crédito, Antonio Augusto/SCO/STF

Legenda da foto, O STF estabeleceu que parâmetro para diferenciar uso pessoal de tráfico será a quantidade de 40 gramas

As conclusões desse estudo, no entanto, não permitem calcular o potencial de presos que poderiam ser soltos caso o STF adote parâmetros para diferenciar tráfico e consumo, pois nem todos os réus processados por tráfico de drogas são condenados a regime fechado ou semiaberto, explicou a BBC News Brasil a coordenadora da pesquisa, Milena Karla Soares.

Soares ressalta que um elemento que dificulta essas análises é a falta de padronização do registro das quantidades apreendidas nos processos criminais.

Para identificar as quantidades apreendida com cada réu, a equipe do Ipea pesquisou diversos documentos processuais, como laudos periciais, denúncias do Ministério Pública e as sentenças dos juízes. Foi selecionada, então, “a melhor informação disponível” nesses vários documentos, em cada caso, para realizar o estudo.

Por isso, uma das recomendações da pesquisa é “o estabelecimento de um protocolo nacional para padronização das informações de natureza e de quantidade de drogas nos processos criminais”.

Entenda melhor o que foi julgado

O julgamento do STF analisou um recurso extraordinário com repercussão geral. Ou seja, a decisão tomada pelos ministros vale pra todos os casos judiciais semelhantes.

A discussão girava em torno do artigo 28 da Lei de Drogas, que prevê que é crime adquirir, cultivar, guardar ou transportar droga para consumo pessoal.

O recurso foi movido pela Defensoria Pública de São Paulo em favor de um réu flagrado com três gramas de maconha na prisão e condenado a prestar serviços comunitários.

A Defensoria argumentava que a lei fere o direito à liberdade, à privacidade, e à autolesão (direito do indivíduo de tomar atitudes que prejudiquem apenas a si mesmo), garantidos pela Constituição Federal.

Alguns ministros como Gilmar Mendes e Toffoli chegaram a defender a descriminalização do porte para consumo de todo tipo de droga, mas a maioria dos ministros preferiu restringir a decisão à maconha, que era o caso concreto em julgamento.